Quando os santos vão marchando...

04/09/2005
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Parecia que nada pior que a tsunami asiática poderia existir... ou que o furacão Denys na América Central e na Flórida... E, no entanto, os últimos dias têm povoado os jornais e a televisão, assim como toda a mídia, das imagens mais impressionantes que nos lembramos de haver visto. Nova Orleans, linda, alegre, musical e colorida, tornou-se uma cidade fantasma, evacuada, com centenas de mortos no fundo de suas águas fétidas. O furacão Katrina desviou-se da rota e atingiu em cheio a cidade do jazz e do Bairro Francês, da comida ³cajun², da música e da dança cadenciada, que marca o ritmo que têm os santos quando marcham e o arcanjo Gabriel quando este toca sua trombeta. O país mais poderoso e rico do mundo parece impotente para socorrer as vítimas da gigantesca tragédia. Sabedoras com antecedência de vários dias da chegada do furacão e dos estragos possíveis que sua passagem provocaria, as autoridades demoraram a providenciar a retirada da população da cidade. E Katrina abateu-se com todo o seu furor sobre Nova Orleans desarmada e surpreendida. Muitas centenas de pessoas encontram-se agora sem abrigo, sem comida, sem água e sem possibilidade de sair da cidade condenada. O desespero crescente de pessoas ilhadas, sem recursos, com fome e sede, em meio a cadáveres putrefatos e banheiros fétidos, ratos e escombros, vai se transformando em violência, em agressão, e torna quase impossível o socorro de sobreviventes. O prefeito da cidade enviou a órgãos de imprensa americanos um pedido aflito de ajuda, principalmente para as milhares de pessoas que aguardam socorro em um dos locais que serviram de abrigo. O Centro de Convenções da cidade está infectado, enquanto os suprimentos vão chegando ao fim e as pessoas se agridem umas às outras disputando comida. Há milhares de pessoas dispersas pela cidade, em telhados e sótãos, sob pontes e viadutos, ou simplesmente na rua. Algumas deambulam desesperadas sem saber que rumo tomar, tendo perdido tudo e todos que tinham na vida. Outras permanecem na calçada, esperando que alguém passe para resgatá-las. E aqueles que conseguiram chegar ao Texas, trasladados enquanto ainda funcionava o serviço de resgate, atualmente interrompido pelo caos da violência e do pânico, andam perdidos pelas ruas, em busca de proteção e comida. O que resta da cidade se degrada rapidamente. Transformada em cidade fantasma, sem nada do encanto e da sedução de antes, Nova Orleans apresenta um cenário de destruição total. A população, desesperada e sem perspectivas de saída, com o socorro interrompido, faz saques a supermercados e lojas em plena luz do dia. E os veículos de resgate não entram na cidade, por terra ou por ar, com medo de serem atacados pelos habitantes enfurecidos, revoltados, entregues à própria sorte. Estrangeiros que tentaram sair da cidade antes do furacão chegar foram impedidos porque as linhas aéreas americanas já não operavam para Nova Orleans. Não era interessante ou lucrativo voar com aeronaves vazias em direção à cidade ameaçada. Ninguém desejava ir para lá, apenas sair. Assim, pela lei do mercado que prioriza o lucro antes de tudo, inclusive da vida humana, morreram muitas pessoas que poderiam ter sido salvas. O Papa Bento XVI disse estar ³profundamente triste² com a tragédia, enviou telegrama de condolências às vítimas e suas famílias, incentivando as equipes de resgate a prosseguirem com seu trabalho e prometendo suas orações por todos os atingidos pelas funestas conseqüências do furacão Katrina. De todos os cantos se escutam protestos e mensagens de solidariedade. Mas esta solidariedade falada e proclamada, lamentavelmente não se transforma em socorro concreto e eficaz às vítimas. Isoladas, estas se desesperam e escolhem a inútil violência como catarse de sua ansiedade e seu sentimento de abandono. Enquanto isso, a morte passeia soturnamente sobre os escombros da que foi a alegria de tantos olhos, ouvidos e corações; inspiração de tantos artistas; berço de tantos talentos vocais, musicais, literários. A bela Nova Orleans levará anos para ser reconstruída. A marca mortal do feroz Katrina ficará como uma cicatriz definitiva sobre seu belo corpo urbano. Ao fundo da triste imagem da cidade destruída soa apenas a voz triste e pungente da negra súplica jazzística que identifica Nova Orleans em qualquer lugar do mundo: ³Quando Gabriel tocar sua trombeta... quando a lua se converter em sangue... quando o sol se recusar a brilhar... quando os santos forem marchando... Senhor, eu quero ser contado entre eles...² -Maria Clara Bingemer é autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)
https://www.alainet.org/pt/articulo/112888?language=es
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