Acabou-se o que era doce...
25/07/2005
- Opinión
Criança gosta de doce. O açúcar se derrete na língua e faz esquecer outras coisas menos saborosas que as mães mandam as crianças comerem, tais como sopa, espinafre e abóbora. Por isso, criança guarda dinheiro da mesada para comprar doce, briga, disputa com outras uma bala, um chocolate. Por isso, está sempre perto de quem tem doces para dar. No dia 13 de julho de 2005, na semi-destruída Bagdá, soldados estado-unidenses encontravam-se na via expressa Mohammad al-Kassem, bloqueando as saídas de um bairro. Havia sido avisados da presença de um homem bomba que ameaçava fazer ataque suicida circulando no bairro al-Jadida. Ao ver que os soldados estendiam as mãos cheias de doces e sorriam, várias crianças se aproximaram e também estenderam as mãos para recebê-los. Talvez há muito não tivessem essa gratificação em seu paladar. Certamente muito tempo havia passado sem que provassem aquele gosto doce e agradável que atiçava imaginação e língua num constante "quero mais". Em meio à algazarra e à folia de mãos estendidas para agarrar os doces e levá-los sofregamente à boca, o ataque ocorreu. Em segundos acabava o que era doce, deixando em seu lugar o gosto amargo da morte. As informações de números variam entre 24 e 30 crianças. Que importa? Fosse uma só e o tamanho da tragédia seria o mesmo: sem medida e sem proporção. As mãozinhas que se estendiam buscando os doces agora jaziam inertes junto aos corpos. Tinham entre 10 e 13 anos. Como se chamavam? Não sabemos. Sabemos apenas que se tratavam de crianças, de vidas que apenas começavam a despontar e se abrir, e foram ceifadas em meio à loucura de uma guerra absurda e assassina. O ataque provocou ainda ferimentos em outras 18 crianças. Alguns soldados ficaram feridos e um foi morto. O homem bomba fez seu veículo explodir junto aos veículos do ocupante estrangeiro em nome da fidelidade à nação, à nacionalidade, a Deus, a sabe-se lá mais o quê. Mas aquele que desprezou a própria vida em nome de seu ideal ou sua fé destruiu igualmente as vidas de pequenos seres que só queriam comer doces e esquecer um pouco o barulho das bombas, as explosões, os toques de recolher e o cotidiano ameaçador e violento de uma guerra que não compreendem. Esse fato demonstra um dos lados mais perversos da violência. Sua ferocidade cega destrói tudo que encontra em seu caminho, sem se perguntar pela pertinência do alvo, sem sequer desejar saber se está eliminando inocentes ou culpados. Quando esta violência é, além disso, provocada por uma violência primeira que entra no terreno do outro, pisoteando sem dó nem piedade o que encontra pela frente em nome de um suposto ideal, se exacerba e se torna mais cega e mais feroz. Mira nos soldados estrangeiros, mas atinge compatriotas. Faz seres humanos explodirem seus próprios corpos e vidas e leva de roldão outras vidas, mais frágeis e desprotegidas. Vidas de mulheres que vão pelo caminho, levando filhos no ventre ou no colo; vidas de velhos e velhas que buscam acabar seus dias com dignidade e paz; vidas de crianças que só queriam, em sua inocência travessa, comer doces longe do olhar vigilante das mães. O peso da violência desta vez abateu-se sobre crianças indefesas e gulosas. Ainda não haviam esfriado os ecos horrorizados do atentado em Londres, que repetia, com cadência fúnebre, o de Madri, que por sua vez remetia ao de Nova York. E na enlutada Bagdá uma vez mais o luto se abatia sobre tantas famílias. Famílias que, no dia seguinte, a mídia nos mostrava em total desespero, velando os pequenos corpos vitimados pelo ataque suicida. Suicídio, homicídio, parricídio, infanticídio: radicais e desinências se confundem como um pianista que martelasse a mesma nota monótona e grave. Pois a melodia tocada é sempre a morte, fim de todas as harmonias e sinfonias possíveis. A morte não querida, prematura, brutal e sem piedade, que acaba com todas as doçuras, com tudo que era doce e com todos os sonhos infantis. Morte que, finalmente, concentra todos os "cídios" em um único vocábulo: "deicídio". Pois quando se acaba brutalmente com o que era doce e fazia a alegria das crianças, é o próprio Deus que, vulnerado mortalmente em seu infinito amor de Pai, se faz solidário de toda a dor do mundo e pode ser visto em Bagdá, em meio aos destroços do que já foi doce e se acabou: a vida humana. - Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape
https://www.alainet.org/pt/articulo/112520?language=es
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