A moeda e o muro
01/01/2001
- Opinión
Graças à moeda da política as pessoas logram criar regras de convivência
social. Como toda moeda, ela serve ao bem ou ao mal, produz ou reduz
desigualdades, favorece ou pune corruptos, implanta ou suprime a justiça,
amplia ou restringe a liberdade, infunde ou implode a paz.
Ética na política é um tema recorrente na literatura, da peça “Suplicantes”,
de Ésquilo, às tragédias de Shakespeare; da obra de Aristóteles à de
Maquiavel; do antiimperialismo romano do Apocalipse ao Manifesto Comunista de
Marx e Engels.
Fazer política significa fazer escolhas. E nesse terreno elas são singulares,
porque envolvem o destino de multidões. Ao decidir reter ou subir os juros em
0,5%, o Copom parece apenas lidar com um símbolo matemático aparentemente
insignificante. Na realidade são R$ 30 bilhões sugados de circulação. O
superávit primário asfixia o investimento público, enquanto o aumento da taxa
Selic asfixia o investimento privado.
Como todas as outras, a moeda política tem duas faces. A da corrupção
predomina quando se apela ao pragmatismo para garantir uma política de
resultados em detrimento da política de princípios. Então a ideologia cede
lugar à esperteza; a convicção ao agrado; o programa ao acerto. Instala-se a
casa da mãe-joana. Quem compra votos do eleitor acostuma-se também a negociar
o próprio no parlamento. É como o cafetão que, de tanto recolher dinheiro de
suas protegidas, acaba tabelando o próprio corpo.
Em que momento a esquerda brasileira começou a afastar-se de seus princípios?
Foi a partir de 1989, na queda do Muro de Berlim. Um setor reagiu qual freiras
que, de repente, admitem que Deus não existe e caem na esbórnia. Eleita para
governar o Brasil entre 1994 e 2002, essa esquerda, que padecera no exílio e
nas prisões, esqueceu o que escreveu, e também o que sofreu, e pactou-se com a
direita. Deixou de apurar os crimes da ditadura e o paradeiro dos mortos e
desaparecidos, entregou-se à fúria privatizadora do patrimônio público, acatou
o Consenso de Washington, trocou o projeto de nação pelas injunções do
mercado.
Outro setor, livre dos imperativos categóricos das teorias marxistas,
descobriu que tudo é possível se não há determinismo histórico. Esse setor
diferia do primeiro por seus vínculos com os movimentos populares que, uma vez
usados como trampolim eleitoral, foram colocados de escanteio, condenados a
gritar em marchas e concentrações, sem que ninguém no poder ouça-os a ponto de
tornar realidade seus anseios de justiça.
A cabeça pensa onde os pés pisam. Esse setor oriundo dos movimentos populares
e sindicais ficou deslumbrado ao ver-se na cobertura do edifício social,
cercado de mordomias, desfrutando da paisagem encantadora despoluída da
incômoda presença dos pobres. E convenceu-se de que inimigos históricos podem
ser aceitos como aliados conjunturais e, com eles, aprendeu táticas e métodos
de operar a política de resultados.
Um terceiro setor não abandonou seus vínculos com o mundo dos pobres. Foi o
menos abalado pela queda do Muro de Berlim. Até porque seu paradigma não se
constituía de teorias acadêmicas e noções históricas, mas estava enraizado no
fato mesmo que justifica a idéia de socialismo: a existência da pobreza como
fenômeno coletivo. E quanto mais próximo dos pobres, menos vulnerável esse
setor ficou das tentativas de cooptação, aos agrados da elite, às propostas de
dinheiro fácil.
O PT está na encruzilhada: como as paralelas também se encontram na
improbidade, pode ser que ele se olhe no espelho e veja o rosto do PSDB.
Então, como nas novelas medievais, haverá de se perguntar por que resistiu
tanto tempo a essa paixão escrita nas estrelas. E o Brasil terá encontrado o
seu caminho de promover a alternância de governo sem ameaça de poder, como nos
EUA ocorre entre republicanos e democratas. Será a versão democrática da Arena
e do MDB.
A outra via é fazer autocrítica, expurgar indícios de corrupção, retomar o
trabalho de base e de formação política, abraçando as razões e os princípios
que nortearam a fundação e a construção do partido. Nesse caso, Lula como
presidente não terá outra alternativa senão confiar menos nos chamados aliados
e mais no apoio popular que fez a esperança vencer o medo. Caso contrário,
todo o governo ficará contaminado pelo medo que, na política econômica, venceu
a esperança.
E por falar em moeda, levei em mãos, para a campanha de Lula em 1989, o
primeiro cheque do pecúlio recebido por Maria Amélia Buarque de Hollanda após
a morte de seu marido, Sergio Buarque de Hollanda. Não quero envergonhar-me de
gestos como aquele, pensando que o óbulo da viúva era ridículo diante da
montanha de dinheiro acumulada sem a transparência que se exige do PT.
- Frei Betto é escritor, autor do romance “O Vencedor” (Ática), entre outros
livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/112494?language=en
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