Violência silenciosa
05/09/2004
- Opinión
Eric Weil observa com muita propriedade, em sua "Filosofia
Política", que a principal característica do Estado moderno é o
monopólio da violência. Outrora, senhores feudais maltratavam
seus servos, assim como chefes militares condenavam subalternos
à pena capital. Agora, só o Estado detém este direito. Só ele
pode legalmente suprimir a liberdade de um cidadão, cassar-lhe
os direitos, vasculhar as suas contas, grampear o seu telefone,
bani-lo e, em muitas nações, decretar a sua morte. Há países em
que nem mesmo os pais têm o direito de castigar fisicamente os
filhos, sob pena de estes buscarem proteção da lei e se
afastarem do convívio familiar.
O que os filósofos políticos não abordam é esta violência
silenciosa, porém não menos cruel, da progressiva condenação de
uma pessoa à exclusão social. Essa é uma característica
intrínseca ao sistema capitalista, que enriquece uns poucos à
custa da pobreza de muitos. Basta examinar a questão fundiária
no Brasil, onde há muita terra para poucos e pouca terra para
muitos.
A violência silenciosa do Estado não é legal, mas se legitima
pela "fatalidade" das atuais estruturas sociais e dos paradigmas
da economia de mercado. Assim, avalia-se o crescimento de uma
nação pelo aumento do PIB - mero exercício de econometria - e
não pela qualidade de vida da população.
Por força de medidas macroestruturais, como ajustes fiscais,
superávit primário, balanço de pagamentos, milhões de seres
humanos progressivamente são privados de acesso à renda, ao
trabalho, à terra, aos bens essenciais à sobrevivência.
Empobrecidos, vêem-se obrigados a morar em acampamentos rurais
ou favelas urbanas, sem direito à saúde, à educação e à
informação. E uma parcela desses excluídos, afetada por
distúrbios mentais ou pelo absenteísmo, acaba na rua,
sobrevivendo da mendicância.
A violência que ora nos escandaliza e desafia - a dos massacres
de moradores de rua por quem faz do preconceito uma arma letal -
é precedida e favorecida pela violência silenciosa do poder
público, que não se empenha o suficiente para promover políticas
emergenciais que ponham fim à população de rua, e políticas
estruturantes que erradiquem a miséria.
Como me disse o jornalista Chico Pinheiro, "o sangue do Cordeiro
foi derramado nas ruas de São Paulo". E também de outros
Estados. Mas ele não lava os nossos pecados; ao contrário,
denuncia-os. Pois como somos capazes de conviver tão
insensivelmente com pessoas - imagem e semelhança de Deus -
excluídas, não apenas da vida social, mas também de um teto ou
de uma terra onde possam se abrigar?
Condenadas às ruas, esses seres humanos se misturam com sucatas,
insetos e lixo, degradados em sua dignidade. Muitos, como
algumas das vítimas de São Paulo, não são apenas sem-teto.
Chegam ao extremo de ser sem-nome. Porque não mereceram a sorte
da loteria biológica: nenhum de nós escolheu a família e a
classe social em que nasceu. Se não estávamos no lugar daquelas
vítimas foi por mero acaso. O justo seria todos nascerem com
direito à plena cidadania, sem o risco de terem as suas vidas
abreviadas pela miséria e pela violência. Mas para isso é
preciso um Estado que renuncie à violência silenciosa e faça
desta opção uma prioridade, ainda que desagrade aos donos do
dinheiro e do poder.
* Frei Betto é escritor, autor de "Típicos Tipos - Perfis
Literários" (A Girafa), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/110483?language=es
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