Cinzas, conversão e sede zero
27/02/2004
- Opinión
Na quarta feira de cinzas, data que marca o início do tempo litúrgico da Quaresma, milhões de católicos no mundo inteiro apresentaram sua fronte curvada pelo desejo de conversão e mudança de vida. As mãos do celebrante traçaram-lhes sobre a mesma o sinal da cruz com as cinzas confeccionadas com os ramos de oliveiras ou de outras árvores, abençoados no ano anterior, no Domingo de Ramos. O momento ritual da distribuição das cinzas, para a liturgia católica, é altamente significativo das disposições que devem habitar o coração dos fiéis e pautar suas vidas nos quarenta dias que se seguirão. A cinza é um sinal de humilhação e penitência. Sinal de reconhecimento da situação de ambigüidade pecadora da condição humana. Marcada por este sinal, a comunidade fará o primeiro gesto da Quaresma, gesto este que continuará, depois, no esforço pessoal e comunitário para converter-se mais plenamente ao projeto de Deus. Por isto, o apelo que é pronunciado no momento do traçar das cinzas sobre a fronte de cada um são palavras exortativas a uma mudança de vida: "Convertei-vos e crede no Evangelho!" A Quaresma, com seu início sinalizado na pessoa de cada um pela cruz da penitência e do arrependimento "cinzelada" sobre o rosto, exorta a uma mudança de caminho e a uma reaproximação maior d´Aquele que se revelou com palavras humanas como o Caminho, a Verdade e a Vida. Seria, no entanto, um lamentável reducionismo viver essa conversão apenas em nível individual e subjetivo, fazendo em nossas vidas uma magra e acomodada reforma, que não chega a atingir os níveis mais profundos de nossa pessoa. O que nos é pedido é muito mais totalizante e radical, e refere-se não apenas à nossa conduta moral cotidiana, mas a algo que tem a altura, a largura, e a profundidade do projeto de Deus para a humanidade. É, portanto, alentador ver a Igreja do Brasil, por meio de sua Conferência Nacional de Bispos, buscar unir seus esforços com os do governo do país a fim de que essa conversão atinja os aspectos mais fundamentais das necessidades maiores de todo o povo brasileiro. Nesta quarta feira de cinzas, enquanto os católicos celebravam os ritos iniciais da Quaresma, o secretário da CNBB, Dom Odilo Scherer, ao lado do Ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Patrus Ananias, e da Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, lançava a Campanha da Fraternidade, com o tema "Água, fonte da vida". O alcance deste outro ritual celebrado no espaço público brasileiro mostra o alcance que a conversão do tempo da Quaresma exige de todo católico, mas igualmente propõe a todo cidadão: "Unir esforços para que tenhamos um país sem fome e sem sede", em palavras do próprio ministro Patrus. Cuidar das reservas hídricas, construir cisternas, proteger os rios e as fontes, atender privilegiadamente os habitantes do semi-árido nordestino, constantemente ameaçado por extensas e mortais estações de seca são, portanto, propostas concretas do programa do governo, ao qual se une o esforço da Igreja. O povo bíblico, acostumado à vida no deserto e a administrar a água como recurso escasso e indispensável, sabia bem como a vida humana estava irremediavelmente condenada se não tivesse acesso à água, se não pudesse desalterar-se e refrescar o corpo e hidratar o organismo com o líquido tão transparente como precioso, indispensável à manutenção da vida. Não é à-toa que o salmista, em pungente e inspirada poesia, compara sua alma que anseia pelo Deus vivo "a uma terra árida, sedenta, sem chuva" (Sl 63). O Novo Testamento chamará benditos aqueles que deram de beber ao sedento, irmão pequeno e necessitado, com o qual se identifica o próprio Salvador. "Tive sede e me destes de beber" dirá o Evangelho de Mateus, no seu capítulo 25, ao descrever o Juízo Final. Instigante programa Quaresmal, este que nos diz que se converter e crer no Evangelho implica não apenas aguçar sempre mais em nós mesmos a sede de Deus, Único que pode saciar-nos. Mas também, e inseparavelmente, zerar a sede do irmão que enlanguesce pela falta deste elemento que é a água, fundamental para beber e viver. Que as cinzas da Quaresma, traçadas sobre a fronte sofrida do Brasil, possam levá-lo à conversão que o fará não poupar recursos e esforços a fim de saciar a sede de todos. VISITE O NOSSO SITE - wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape. * Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga.
https://www.alainet.org/pt/articulo/109503?language=es
Del mismo autor
- Neto 114 14/08/2014
- Igreja profética em memória sombria 27/03/2014
- Sem sepultura 16/10/2013
- Papa Francisco: um pecador perdoado 26/09/2013
- Francisco e Gustavo: nova aurora para a teologia 22/09/2013
- La Moneda e as Torres Gêmeas: aniversário re-cordado 12/09/2013
- Gato e rato 08/09/2013
- Médicos cubanos: por que tanta gritaria? 29/08/2013
- A homilia do Papa em Aparecida e as três virtudes teologais 25/07/2013
- Realidade das ruas e euforia enganosa 26/06/2013