Não sabem o que fazem

24/02/2004
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Distraída, sentada no banco de trás do táxi em plena São Paulo, engarrafada, pensava nos três programas de televisão que deveria gravar em seguida. Não percebi a moto que se aproximava e encostava-se ao carro, com dois rapazes sobre ela. O motorista, com a calma aprendida certamente em cursos de direção defensiva, chamou- me a atenção e mandou-me abrir a porta. Ainda sem realizar o que acontecia, olhei para fora, nos rostos dos dois. Visivelmente alterados, possivelmente drogados, começavam a impacientar-se e gritar por meu relógio. A ficha demorava a cair, eu não conseguia entender o que devia fazer. Foi nesse momento que senti ao lado de minha cabeça, no vidro do carro, os golpes violentos do revólver. Olhei para fora e encontrei o olhar transtornado do jovem que, entre gritos e palavrões, me intimava a entregar-lhe o relógio. Vagarosamente tirei do pulso o relógio, entreguei-o ao motorista, que o estendeu a eles. Um deles abriu a porta da frente do carro e agarrou o relógio. A moto arrancou e desapareceu em pressa costurada por entre os vãos deixados pelos carros. Foi a primeira vez que me aconteceu diretamente. Tantas vezes ouvira narrativas de amigos ou lera nos jornais, ou vira na televisão. Experimentá-lo em carne própria realmente é outra coisa. Senti que a roleta russa em que se transformou a vida nas grandes cidades brasileiras tinha chegado até mim. Não me acontecera nada, mas poderia ter acontecido, por minha demora em perceber o que se passava, minha lentidão em reagir. Quanta gente por menos que isso perdeu a vida com um tiro disparado pelo assaltante nervoso e inexperiente ou exaltado pela droga! Enquanto conversava com o motorista, que também se recuperava do susto, buscava dentro de mim os sentimentos que todos me disseram sentir nestas ocasiões: raiva, angústia, pânico, desejo de vingança, sensação de ser lesada, espoliada. Aquele relógio tinha mais valor sentimental que real. Veio-me à lembrança meu despertar da anestesia da cesariana de nossa filha mais velha, quando a primeira imagem que vi foi o rosto sorridente de meu marido recém papai, colocando-o no meu pulso e pronunciando o nome com o qual a batizamos: Maria Laura. Como lamentar a perda de um relógio quando a vida me tinha sido dada de novo como graça? O relógio não me fez nenhuma pena ou falta, a não ser quando buscava as horas, ao longo do dia, olhando inutilmente o pulso vazio. E dentro de mim não encontrava os sentimentos violentos que me haviam programado para sentir. Ao contrário, invadia-me uma profunda compaixão por aqueles dois rapazes. Em seus rostos, vistos de relance, pude perceber os traços da vida pobre, pesada, injusta; a devastação produzida pelo vício e pela droga; a atitude agressiva diante da vida que provavelmente não fez outra coisa senão agredi-los desde que nasceram. A família que talvez nunca tenham tido, o carinho que provavelmente nunca receberam, a justiça que nunca viram acontecer à sua volta os foram certamente forjando na rigidez do ressentimento e da descrença em tudo e em todos. A droga certamente cruzou o caminho de ambos como uma possibilidade nova de encontrar dinheiro fácil para ser gasto em uma vida que sabem curta. A arma lhes deu o poder que nunca tiveram, mas que mais dia menos dia se voltará contra eles mesmos, tirando-lhes a vida. Enquanto o táxi seguia rumo ao estúdio de gravação, tudo que me vinha ao coração eram as palavras de Jesus na cruz em relação aos que o matavam: "Eles não sabem o que fazem". Talvez pela primeira vez as tenha entendido realmente. Aqueles dois jovens que na manhã de terça feira levaram meu relógio não sabiam o que faziam. Rezei por eles e por todos nós, que construímos esta sociedade injusta que os produz. Pedi ao Deus que se encarnou para resgatar o que estava perdido que resgate nosso desejo de construir a justiça e a paz, antes que seja tarde demais e toda uma geração de brasileiros tenha sido perdida na voragem do crime e do tráfico. * Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga
https://www.alainet.org/pt/articulo/109466?language=es
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