Lições de Mumbai
10/02/2004
- Opinión
O Fórum Social Mundial, que este ano se realizou em Mumbai, na
Índia, adquiriu uma nova e importante faceta: mostrou ser de
dimensões universais.
O desafio de deixar Porto Alegre, onde tudo começou em 2001, foi
enorme. Como mobilização da emergente e diversa cidadania
planetária, o FSM continua crescendo. Foram em torno de 75 mil
delegados e delegadas, sendo 20 mil de fora da Índia. Havia também
cerca de 10 mil pessoas, da própria cidade de Mumbai, que
diariamente se juntavam aos eventos e mobilizações. Ao todo, quase
120 mil participantes mobilizados(as) pela idéia de que, diante da
globalização dominante e suas mazelas, "outro mundo é possível".
À primeira vista, uma cacofonia. A Índia em si mesma, com mais de 1
bilhão de seres humanos, é um mundo diverso, falando muitas línguas
mais de 40, sendo quase a metade oficial , com suas castas, com a
exclusão social de dalits (intocáveis ou sem casta) e quase 300
milhões vivendo na indigência.
No outro extremo, cerca de 200 milhões integrados ao mercado
globalizado. O impacto é atordoante, cultural e politicamente,
ainda mais para olhos aguçados de ativistas de um emergente
movimento de dimensões planetárias. Inevitavelmente, somos levados a
nos perguntar se fazemos o bastante, se nos indignamos
suficientemente diante da desumanidade a que muitas mulheres e
homens, crianças, adultos e velhos são condenados e se estamos sendo
verdadeiramente radicais nas propostas de mudança. Mais de 20 mil
dalits participaram, dando uma dimensão bem popular ao Fórum Social
Mundial. Juntou-se aos indianos e indianas uma rica expressão dos
povos da Ásia. Mas também europeus, européias e norte-
americanos(as), africanos(as) e latino-americanos(as). A destacar o
fato de mais de 480 brasileiras e brasileiros participantes, número
maior do que aqueles(as) da Ásia no FSM de 2003, em Porto Alegre. O
Nesco Grounds construções de uma indústria siderúrgica falida, na
periferia de Mumbai, adaptadas ao Fórum Social Mundial, com salas
improvisadas à base de bambu e divisórias, teto e piso de pano
rústico tornou-se a expressão plena do que está de alguma forma de
fora da globalização: gente em carne e osso, comungando de um mesmo
ideal de liberdade e dignidade humanas acima do mercado.
O êxito do FSM em Mumbai deve ser medido pela adesão política, de
mente e coração, no sonho e com vontade, à sua mensagem. A cacofonia
foi, na verdade, uma pujante demonstração da diversidade de
sujeitos sociais que aderem à idéia e querem ser artífices de um
mundo diferente, onde a referência sejam todos os direitos humanos
para todos os seres humanos. Se até 2003 éramos dominantemente
latinos, agora somos mais universais, bem implantados na Ásia onde
vive metade da humanidade. O Fórum Social Mundial passou a ser
assumido como espaço de expressão de identidades e propostas de
amplos setores populares. Foi um enorme salto de qualidade na
superação do déficit geográfico e social em termos de sujeitos
portadores do FSM.
As novas linguagens e a necessidade de tradução, que faça a liga da
igualdade na diversidade, é o desafio político e cultural maior que
emerge de Mumbai. A força de novas linguagens, exprimindo
identidades não reconhecidas e direitos negados na qual se
sobressaíram os movimentos dos dalits , somando-se à onda ascendente
clamando por outro mundo, foi a tônica das múltiplas marchas no
FSM. A poeirenta rua principal foi transformada em avenida da
cidadania planetária, das 8h da manhã às 10h da noite. Esse foi o
epicentro do Fórum Social Mundial, em Mumbai. Não foi preciso
entender literalmente o que diziam as marchas, bastava render-se ao
seu simbolismo cheio de denúncias e afirmações. A elas se somaram e
por elas foram requalificados os grandes atos (conferências,
painéis e mesas-redondas) sobre militarismo, unilateralismo e
guerra, sobre o poder global opressor e as trincheiras de
resistência, sobre os movimentos pela paz. No meio, o laboratório
vivo de mais de mil seminários e oficinas, a seu modo
desencontrados, mas afirmativos da possibilidade de iniciar aqui e
agora a construção de outro mundo.
No final, um Fórum que impactou pelo que carrega de surpreendente.
Sem dúvida, ainda patinamos na busca do método de diálogo e de
construção coletiva de propostas e estratégias. Temos consciência
que, com base na diversidade de atores sociais e no respeito ao
pluralismo, estamos diante da possibilidade de fazer emergir uma
nova cultura política, universalista, cosmopolita, includente,
enfim, um novo método de fazer política transformadora. Mas nos
demos uma tarefa que supõe muito mais ousadia e radicalidade do que
à primeira vista aparece. Diante da crise em que se debate a ordem
dominante do direito quase exclusivo do capital, a adesão à mensagem
é uma garantia da pujança da onda de cidadania. Mas precisamos
transformá-la em força de reconstrução de um mundo solidário,
democrático e sustentável, para nós e para as gerações futuras.
Essa á a principal lição a extrair de Mumbai.
* Cândido Grzybowski é sociólogo, diretor do Ibase.
www.ibase.org.br
https://www.alainet.org/pt/articulo/109397?language=en
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