Mumbai – 2004: um FSM mais popular que intelectual

26/01/2004
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O rodízio é uma prática salutar. O FSM se enriqueceu muito em Mumbai ao permitir que inúmeras organizações asiáticas, e grande número de gente do povo da Índia, participassem das marchas e dos debates que marcaram o FSM 2004. Todos os dias, milhares de manifestantes de diferentes países, com as mais diversas roupas, cores e idiomas marcharam pelas ruas poeirentas da grande área dedicada ao FSM na cidade litorânea de Mumbai, Índia: nela operou uma grande empresa no passado; os galpões abandonados foram reformados para abrigar as cerca de 150 mil pessoas que vieram participar do FSM 2004. A abertura atraiu uma multidão ao parque voltado para o por-do-sol, onde estava instalado um estrado e um sistema de som e vídeo. O chão estava totalmente coberto de sacos de aniagem, permitindo que a multidão assistisse ao show musical e aos discursos sentada no chão. Entre as pessoas que falaram no evento de abertura estavam o líder argelino Ahmed Ben Bella, a jovem escritora indiana Arundati Roy e Chico Whitaker. Os indianos tiveram o cuidado de falar em hindi e depois oferecer tradução ao inglês. O discurso do Chico foi resumido para o hindi com muito espírito pela animadora indiana. As ruas do FSM estavam cheias da manhã à noite, com japoneses e coreanos marchando contra a globalização neoliberal e o desemprego, mulheres indianas pelos direitos da mulher, monges budistas tibetanos pela Paz no Tibet e pela libertação de monges presos pelo Exército chinês, trabalhadores informais pelo direito a um trabalho digno, Dalits (a casta dos Intocáveis) contra sua condição desumana de recolhedores de dejetos humanos (scavengers) em troca de um salário de miséria, servidores públicos contra a privatização e o desemprego, portadores de deficiência, grupos tribais, etc. O FSM 2004 foi marcado muito mais pelo protesto, festa, alegria e comunicação do que pelos debates sobre os temas prioritários para a sociedade humana mundial. Os problemas locais continuam sendo prioritários para a gente do povo. A mensagem é que, para que os problemas como água, terra e alimento sejam resolvidos, é preciso que os povos se unam e lutem contra os seus opressores hoje globalizados, e por uma economia sob o controle das populações trabalhadoras e a serviço das necessidades humanas. As conferências e painéis ocorreram em grandes salões, com 4000 a 10000 lugares, mas os participantes preferiam estar se manifestando nas ruas do que ouvindo os debatedores. Estiveram no Fórum de Mumbai pelo menos 150 mil pessoas. A Conferência sobre "Terra, Água e Soberania Alimentar" atraiu alguns milhares de populares. São os assuntos aparentemente mais dramáticos para os mais de um bilhão de indianos. Os temas da economia do povo/economia solidária atraíram gente das Américas, Europa, e África, mas apenas os indianos que já estão envolvidos em atividades de comércio justo, produção cooperativa, microcrédito solidário, agricultura familiar e desenvolvimento local participativo e sustentável. As apresentações e os debates foram de ótima qualidade e progrediram em relação a 2002. Um seminário dedicado à economia do povo/solidária na Ásia focalizou experiências na Índia, Tailândia, Paquistão, e com elas contrastamos práticas do Brasil, da província canadense de Quebec e da França. Promovemos mais de 100 eventos sobre comércio justo. Se em 2003 tivemos 19 redes de economia solidária promovendo os eventos em Porto Alegre, em Mumbai tivemos 47 redes e entidades articuladas na organização desses eventos. Ao todo, estimamos ter alcançado umas 8000 pessoas. Os debates promovidos por Jubileu Sul e as diversas redes nacionais e internacionais sobre dívida, comércio internacional e agências multilaterais foram anunciados por faixas esticadas entre as árvores por toda a área do Fórum. Foi lançada a proposta de um Tribunal sobre Dívidas Financeiras e Dívida Ecológica em 2005. As campanhas contra a NAFTA, ALCA, CAFTA, o acordo africano e os acordos bilaterais neoliberais promoveram vigorosos debates. A mídia indiana cobriu o evento com algum destaque, inclusive promovendo debates com participantes mais conhecidos. A mídia internacional, porém, deu uma cobertura limitada e preconceituosa, pouco atenta para a riqueza dos debates e das propostas; bem inferior ao destaque com que brindou o Fórum Econômico Mundial (FEM), de Davos, Suíça, realizado uma semana depois do FSM. Davos, mais elitista do que nunca O FEM em Davos custou, apenas na rubrica segurança, cerca de 18 milhões de dólares. Contou com cerca de duas mil pessoas, entre grandes empresários e políticos de cerca de cem países, e jornalistas. Seu título: "Segurança e Prosperidade, Sinônimos da Paz". O Ministro da Justiça dos EUA, John Ashcroft, foi quem deu conteúdo a esta sigla, promovendo o que seu governo considera os temas globais prioritários, a luta contra o terrorismo e contra a corrupção oficial. Ashcroft sublinhou que estava se referindo à corrupção oficial dos governantes e não ao tipo de desvio corporativo que está na origem de grandes escândalos em empresas dos EUA e da Europa como a Enron, a Tyco e a Parmalat. A OTAN seguiu no mesmo tom, propondo a construção de uma "parceria de segurança" com Israel e os estados árabes em torno do Mediterrâneo a fim de promover a guerra ao terrorismo. O presidente do Paquistão, general Pervez Musharraf, distoou dizendo que a presença de tropas estadunidenses no Paquistão não é necessária para o combate a Al Qaida. O Secretário Geral da ONU, Kofi Annan, contrapôs ao discurso do falcão de Washington um chamado "ao equilíbrio da ordem do dia internacional", pedindo aos participantes que não se esqueçam do combate contra a fome no mundo e pelo desenvolvimento, ocultos pela luta contra o terrorismo e pela guerra no Iraque. Disse que a ONU está em condições de agir pela paz e pela segurança "não só para o mais privilegiado membro da Organização, hoje preocupado com o terrorismo e as armas de destruição em massa. A ONU deve proteger milhões de homens e mulheres da ameaça mais familiar da pobreza, da fome e das doenças mortais." A Suíça organizou uma reunião 'informal' para tentar desbloquear as negociações na OMC. Em 2004 não haverá reuniões ministeriais formais. A reunião ocorreu durante a sessão em que Kofi Annan falava ao FEM. A Conferência Alternativa "Olho Público sobre Davos" manifestou-se com ênfase contra a iniciativa suíça. "É escandaloso que Ministros do Comércio e da Economia se misturem com as grandes empresas sem consultar a cidadania dos seus países", disse Tony Juniper, de Amigos da Terra. "Eles deviam, sim, ter ido ao FSM em Mumbai para encontrar as pessoas diretamente afetadas pelas suas políticas." O criador do Fórum de Davos, Klaus Schwab, propôs que se buscasse mudar a atmosfera do FEM, para diminuir a vulnerabilidade do evento aos olhos dos seus críticos... "Nenhuma gravata, por um mundo sem fronteiras", foi o slogan que lançou, esperando que o ambiente mais informal aumentasse a legitimidade do Fórum aos olhos do mundo. Para completar, concebeu uma multa de 5 ou mais francos suíços para quem viesse de gravata. Este dinheiro iria formar um fundo para obras de beneficência, reforçando a imagem de uma elite global socialmente responsável!... Merece destaque um artigo crítico publicado no Corriere del Ticino, Suíça, de 24/1/04, em que Claudia Bergomi, de Fribourg, mostra que o jornal, que devia difundir a informação completa, usa etiquetas e estereótipos que distorcem a realidade: os manifestantes contra o FEM de Davos, assim como os que se manifestam contra a OMC, o Banco Mundial e o FMI, o G8 e outras expressões da globalização neoliberal, são etiquetados de "no global" ("não global"). O argumento desses manifestantes, de que as decisões sobre a economia e a política mundial são importantes demais para serem tomadas por um grupo restrito de políticos e empresários, fica oculto e enfraquecido debaixo de slogans fáceis, que simplificam e desfiguram a causa dos manifestantes. A autora denuncia que esta é uma tentativa de minimizar a influência que eles poderiam ter sobre nossa vida e nosso modo de pensar; tentam induzir o leitor a não levá-los a sério. A ideologia a transmitir é que a globalização é um processo irreversível e que só há uma globalização possível: a atual. Noutras palavras, só este mundo é possível: o das grandes corporações transnacionais, o da competição selvagem de todos contra todos, o da violência, da guerra, o do consumismo sem limites, o da desnaturalização do cotidiano, o da mercantilização da vida e dos bens comuns do Planeta, o da destruição sempre crescente da Natureza. Portanto, continua a autora, as elites do jornalismo trabalham para desacreditar os que se manifestam contra esta globalização, descartá-los como 'jurássicos' contrários ao progresso e a um futuro sempre mais poderoso para a 'humanidade'. "É inconcebível que, enquanto morremos das doenças do bem estar, entupidos de colesterol, do outro lado do mundo alguém deva morrer de fome depois de ter colhido o alimento que terminou no nosso prato, ou no estábulo do boi que terminou no nosso prato." * Marcos Arruda. PACS-RBSES. Mumbai
https://www.alainet.org/pt/articulo/109292?language=es
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