Viagem ao Planeta Mumbai

21/01/2004
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Opinión
-A +A
Quatro imagens do Forum Social Mundial na Índia, e uma pergunta: como o encontro evoluirá, depois de sentir na pele o que e a globalização da desigualdade e da injustiça? "O Fórum Social Mundial precisava pisar o chão de terra batida, respirar esta poeira, sentir o cheiro do povo", diz o cubano José Miguel Hernandez, que representa a campanha pan-americana contra a ALCA no Conselho Internacional do Fórum Social Mundial (FSM). Ele conversa com amigos diante de um enorme mapa das instalações do Nesco Conventions Ground, fixado à saìda Hall 1, o mega-auditório para 8 mil pessoas, e a poucos metros do Centro de Imprensa e dos escritórios do Comitê Organizador do evento. Aqui está o centro nervoso do Nesco, o parque de exposições de cerca de um quilômetro quadrado escolhido para sediar o evento. Ao redor de José Miguel há um formigueiro de gente, uma passeata eterna onde se sucedem ou se entrelaçam centenas de cordões humanos. Ainda que muito relevantes (aqui se avançou, por exemplo, na convocação do dia internacional de protestos contra a guerra em 20 de março, aniversário da invasão do Iraque), os blocos que expressam reivindicações políticas explícitas são minoritários. Muito mais numerosos são os que querem mostrar ao Fórum Social Mundial – e talvez a si mesmos, acima de tudo -- que têm identidade, beleza, cultura, expressão. Eles emergiram da pobreza abissal para dizer que existem. Vêm com todas as danças do mundo; com gestos desconcertantes; com sons exóticos (o mais marcante dos quais é o de uma corneta aguda, tocada em silvos longos); com tons de pele que vão (no caso dos indianos e paquistaneses) do quase branco ao quase negro, mas conservam sempre o brilho azeitonado; com roupas de cores e cortes infinitos. Todos batucam, num estilo que fez Maria Oliveira, baiana, recordar os antigos carnavais de Salvador, antes da chegada dos trios elétricos. Grande parte da multidão permanecerá os quatro dias neste desfile interminável e vibrante. Alguns dormirão sobre a terra todas as noites. Todos sofrerão com a falta quase absoluta de banheiros. Vittorio Agnoletto, porta-voz do Fórum Social Italiano e também integrante do Conselho Internacional, dirá, com carinho: "Em Mumbai, não houve um, mais dois Fóruns distintos" -- o das discussões formais e o das seis ruas de terra batida. José Miguel completará, sobre os novos atores: "O que vale é estarem aqui, integrarem-se ao mundo do FSM". II. Apenas uma pequena parte da área do Nesco Ground está ocupada por construções. São galpões imensos e rústicos -- praticamente paredes erguidas sobre a terra e cobertas por lajes --, que os organizadores reservaram para as grandes conferências e painéis. Enganou-se, porém, quem imaginou que a energia do IV FSM seria gerada aqui. Ela brotou das ruas, mas também das mais de mil oficinas e seminários – as chamadas "atividades auto-geridas", que qualquer organização inscrita para o FSM pode propor e realizar. Em Porto Alegre, elas ocorriam nas salas de aula da PUC. Em Mumbai, foi preciso improvisar. Quatro áreas de Nesco Ground foram transformadas em corredores de debates. Ao largo deles, ergueram-se os esqueletos das salas: troncos finos de madeira, amarrados com sisal. Depois, estas armações foram revestidas com algodão, para que se transformassem em paredes laterais e em tetos. Recobriu-se o chão de terra, quase sempre irregular, com sacos de juta. O mesmo material foi usado nas "fachadas" – as paredes externas. Mais rigidas, elas tinham a vantagem adicional de funcionar como murais permanentes, onde se fixavam cartazes informando sobre o que se discutia no interior. Os organizadores contaram com o clima (quase nunca chove nesta epoca do ano em Mumbai) e com a sorte (um incêndio provocaria uma tragédia). Havia 140 instalações assim, e o Fórum das oficinas e seminários foi diverso, plural e colorido como os de Porto Alegre. Quem percorresse na manhã do dia 19 parte de um dos corredores poderia encontrar debates sobre o aborto crescente de embriões femininos na Índia (qualificado como "feminícidio oculto"); sobre a campanha internacional contra as bases militares norte-americanas (promovida por uma rede de 25 organizações em diversos países); sobre a Aliança dos Povos de Cordillera (uma filipina explicava, em inglês, que o conceito de indivíduo de muitas comunidades asiáticas vê tambem, em cada ser humano, uma parte da comunidade); sobre um novo sistema de relações internacionais (a partir de uma crítica refinada à falta de transparencia e democracia na OMC, FMI e Banco Mundial); sobre o direito a moradias e cidades habitáveis (uma ficção em Mumbai); sobre a luta contra a monarquia no Nepal (além dos rostos redondos e olhos puxados dos nepaleses, chamava atenção o fato de conseguirem se entender mesmo falando em tom de voz tão baixo que era muitas vezes suplantado pelo microfone da sala vizinha); sobre o impacto da globalização entre os "intocáveis" indianos (os debates sobre este tema foram sempre os mais lotados e mais capazes de atrair o Fórum das ruas). Também nas oficinas, a ampla maioria era de indianos. Mas o inglês rivalizava com o hindi, na condição de língua predominante. Duas redes de tradutores voluntários (Babels e Solidarity International) mobilizaram dezenas de militantes a Mumbai. Mas, por falta de meios materiais, não houve, nem nas oficinas, nem nas grandes conferências e seminários, sistema de tradução simultânea. Para resolver o problema, foi preciso contar com a boa vontade e paciência: faziam- se de traduções voluntárias e consecutivas, que muitas vezes incluíam o espanhol, o francês e outros idiomas. Graças ao Movimento pelo Saber Popular -- uma organização que reúne 300 mil membros e promove alfabetização e formação politica em toda a Índia -- inaugurou-se a prática das oficinas culturais. Ao longo dos quatro dias, uma das 140 salas foi palco de uma sucessão impressionante de espetáculos de música, dança e teatro, oferecidos não por artistas profissionais, mas por comunidades indianas. Embora amadoras, as apresentações eram produzidas com esmero: grupos uniformizados, ensaiados, orgulhosos. A platéia freqüentemente invadia o palco, para cantar e dançar. O objetivo dos organizadores era mostrar, por meio da arte e da emoção, que os indianos devem se orgulhar da diversidade extraordinária do pais – ao invés de se fechar na particularidade de suas tradições locais. III. Sony Kapoor foi uma das atrações da oficina promovida pelos sindicatos de auditores fiscais do Brasil e da França, para debater a necessidade de uma nova arquitetura financeira internacional. É, em pessoa, o sinal de que o mundo pode ser mudado. Indiano, vive na Inglaterra há anos, veste-se como os jovens britânicos, usa gel para manter os cabelos penteados para cima. Trabalhou em bancos internacionais de investimento da City de Londres. Ajudou a engordar grandes fortunas, e a promover ataques especulativos contra as moedas dos países do Sul. Ganhou dinheiro, viajou por todo o mundo e...se cansou. Há dois anos, abandonou o mercado, fundou uma ONG chamada Tobin Tax Network e passou a denunciar a selvageria das finanças, no capitalismo globalizado. Impressiona pela riqueza dos dados de que dispõe, pela agilidade com que os maneja, pela capacidade de formular alternativas concretas. Já defendeu a criação de uma Organização Mundial dos Impostos (para combater as guerras fiscais entre países), um novo FMI, um mecanismo internacional para interromper automaticamente a negociação das moedas, quando estiverem sob ataque dos especuladores. Mas uma de suas informações causará impacto especial sobre a platéia. A ordem financeira internacional em vigor é tão injusta, mostra Sonny, que, sob ela, é a Índia quem ajuda a sustentar o consumo e os investimentos dos norte-americanos (inclusive sua corrida armamentista) – e não vice-versa. Diante do espanto do público, ele comprova que este país, onde é preciso às vezes fechar o coração, para não entrar em desespero, financia Manhattan e o Pentágono. 1. Os Estados Unidos têm um déficit em sua conta corrente com o exterior equivalente a 5% do PIB – ou seja, consomem muito mais do que produzem, e portanto precisam atrair a riqueza de fora; 2. Como têm a moeda mundial e são o centro do sistema financeiro internacional, podem fazê-lo vendendo ao mundo dólares ou títulos de seu Tesouro; 3. Seguindo as recomendações do FMI, a Índia ampliou fortemente suas compras de dólares e títulos norte-americanos nos últimos anos. A parcela da riqueza indiana emprestada aos EUA por meio deste mecanismo já chega a US$ 100 bilhões. Uma pergunta paira no ar, depois da explicação. Se o Fórum Social Mundial pretende de fato construir um mundo novo, não tem a obrigação de estimular a busca de alternativas comuns, para certos temas? E não poderia, nestes casos, passar das palavras à ação? IV. Presente à última conferência de Porto Alegre 2003, ao lado de Noam Chomsky, a escritora indiana Arundhati Roy atraiu as atenções também em Mumbai 2004. Participou da conferência de abertura, ao lado de quase uma dezena de outros oradores. Mas destacou-se por fazer uma proposta concreta. O Fórum Social Mundial, sugeriu ela, deveria identificar duas empresas transnacionais muito envolvidas com a guerra imperial de Bush, com o ataque aos direitos humanos ou com a destruição da natureza – e desencadear contra elas um boicote internacional. A proposta mobilizaria as energias intelectuais do FSM (já que exigiria esforço para identificar e escolher as empresas). Além disso, permitiria combinar a diversidade, uma das marcas principais dos Fóruns, com ação comum. Para participar, nenhuma organização ligada ao planeta Porto Alegre seria obrigada a abrir mão de seus objetivos, métodos ou estratégias. Haveria grandes chances de sucesso. Um boicote internacional concentrado em apenas duas empresas provocaria danos reais: quedas no faturamento e na cotação das ações, fuga de investidores. Um primeiro êxito poderia, mais tarde, estimular outros tipos de iniciativas conjuntas. Uma semana depois, Arundhati recebe dois repórteres no lobby de seu hotel, para uma entrevista. Seu charme permanente, porém sereno, parece estar no fato de expressar ao mesmo tempo força e delicadeza, decisão e dúvida, certeza e angústia. Ao responder a uma das perguntas, ela adverte: "Não se iludam. A Índia que vocês viram é o que este país tem de melhor – mas se trata de uma imagem filtrada muitas vezes". Arundhati conta como a vida é áspera, fora de Nesco Ground. Pressionado pelo FMI, o governo empenha-se em eliminar os sistemas de proteção social construídos após a Independência. Há anos, acabaram os incentivos à indústria nacional, o que provocou o fechamento de inúmeras fábricas e obrigou centenas de milhares de operários a submergir na economia informal. Agora, estão ameaçadas as garantias à agricultura familiar (das quais dependem milhões de camponeses) e as empresas estatais (o que pode tornar proibitivos os serviços públicos). Para entorpecer a opinião pública, em especial os mais pobres e os de castas mais baixas, o governo instiga, simultaneamente, o ódio dos hindus contra os muçulmanos. Arundhati acusa partidários do BJP, o partido no poder, de serem os responsáveis por um massacre que tirou, num só dia, a vida de 2 mil pessoas no estado de Gujarat, há alguns meses. Ninguém foi punido. Nas últimas eleições para governadores dos Estados, o BJP e o Partido do Congresso, também partidários das idéias neoliberais, ampliaram o controle que têm sobre a política indiana. De repente, o lado otimista de Arundhati volta a prevalecer sobre a parte que se atormenta. Ela volta à idéia do boicote seletivo. "Bush está nos oferecendo uma oportunidade tão fantástica. Pensamos de maneiras tão distintas, temos pontos de vista e ideologias tão variadas – e no entanto, por que não podemos nos unir em torno de uma ação comum"? Seria preciso, então, acrescentar algo mais à idéia de espaço aberto, que tornou possível o FSM e fez dele, em quatro anos, um acontecimento destacado do cenário político internacional? A resposta de Arundhati tem dois tons. "Para preservar sua diversidade, o Fórum Social Mundial não pode retroceder à prática das declarações finais, que eliminam a diversidade. E foi muito bom tê-lo realizado, até agora, exatamente da maneira como o fizemos", diz ela. E, seguida, muda a sintonia. "É preciso mudar, conforme os tempos mudam. Ninguém pode ficar estagnado. O Fórum corre um grande risco. É o de absorver nossas melhores energias, mobilizar as mentes mais generosas apenas para que, ao final de quatro dias, comecemos a pensar no próximo encontro. Nesse caso, não incomodará nossos inimigos. Continuará a ser a nossa música, mas nunca chegará a ser a nossa luta". Uma reunião do Conselho Internacional do FSM abre, amanhã, o processo que conduzirá a Porto Alegre 2005. Em um ano, o encontro dos que querem um novo mundo estará de novo armado no Brasil. Há doze meses de trabalho pela frente, para garantir que a chama continue acesa. * Antonio Martins, Planeta Porto Alegre http://www.ciranda.net/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?UserActiveT...
https://www.alainet.org/pt/articulo/109226?language=en
Subscrever America Latina en Movimiento - RSS