Reducionismo científico
12/04/2003
- Opinión
"Sem a convicção de uma harmonia íntima do
Universo, não poderia haver ciência."
Albert Einstein
Entre os tantos acusados de obscurantismo científico, colocado no
século XIX e classificado de dinossauro tecnológico, sinto-me no dever
ético de entrar no debate científico que envolve a questão dos
transgênicos, mais propriamente, sobre os fundamentos da ciência: seu
método, sua finalidade e o controle ético sobre suas aplicações
tecnológicas. Entre os que nos acusam – jornalistas e acadêmicos – há
os desinformados, há os que servem a interesses inconfessáveis e há os
que são vítimas de um reducionismo científico. Em alguns casos há uma
recombinação dos três fatores.
O que mais chama a atenção são os acadêmicos bem formados mas escravos
de um método científico reducionista, centrado na segmentação do
objeto e na crença cega no determinismo genético, filhos, portanto, de
uma escola científica incapaz de praticar a transdisciplinariedade e
pouco afeita a reconhecer a complexa interação entre os sistemas
vitais. No dizer de Lovins & Lovins em O Conto das Duas Botânicas "
dentro da cartesiana tradição de reduzir o todo complexo em partes
simples, empenha-se em alterar genes isolados e desconsidera a
totalidade interativa dos ecossistemas" (Instituto Rocky Mountain,
Colorado, EUA).
Este reducionismo se traduz na atribuição de grande efeito a um
único gene. Embora genes são determinantes na expressão das
características, a aparência de um ser vivo é resultante de interações
genéticas complexas, além do efeito ambiental. É extremamente difícil
que uma característica não seja afetada por alguma interação.
Alguns tem gosto especial em determinar o século científico em que
outros estão. Pois registre-se que este paradigma científico é
próprio dos séculos XIX e XX e começou a ser superado nas duas últimas
décadas do século XX. Ao início do século XXI a humanidade está
frente a dois caminhos. Ou continua insistindo num paradigma
científico cada vez mais fragmentário e especializado, financiado por
grandes capitais e a eles servil, consolidando a cooptação dos
cientistas ou aprofunda a construção de um novo paradigma científico
integral: biocêntrico, transdisciplinar, ecológico, sistêmico e
holístico, rigoroso no método e na experimentação, sério na disciplina
exigida pelo estatuto próprio da ciência, mas capaz de captar e
relacionar o feixe de implicações inerentes a qualquer intervenção
humana sobre a realidade, especialmente sobre os seres vivos.
Neste novo modo de fazer ciência, pelo qual lutamos, o controle
social e ético guia as aplicações tecnológicas da ciência e tem
precedência sobre os mecanismos do mercado. Neste novo paradigma
defende-se em igual grau de intensidade a liberdade de pesquisa e o
controle público e democrático sobre as aplicações dos resultados do
conhecimento científico.
A questão dos transgênicos, do ponto de vista científico, envolve
cinco BIOs: 1-Biodiversidade; 2 – Biotecnologia; 3- Biosegurança; 4 –
Biopirataria; 5 – Bioética. Do ponto de vista da soberania nacional
deveríamos nos preocupar sobremaneira com a Biopirataria de nosso
patrimônio genético, o ouro verde do século 21.
Mas a verdade é que os fanáticos pró-transgênicos, com um discurso
simplista de defesa da ciência, só tem se preocupado com uma área da
ciência: a biotecnologia. E na biotecnologia, só a de laboratório,
aproveitando-se e mercantilizando o melhoramento genético realizado
pelas comunidades camponesas e pelos melhoristas tendo como base nossa
fantástica biodiversidade vegetal e animal. E na biotecnologia de
laboratório, por razões certamente impublicáveis, restringem-se à
defesa sectária de aplicações tecnológicas controladas por poucas
grandes multinacionais. Demonstram cegueira científica ou
comprometimentos de outra ordem, camuflados de defesa da ciência. Em
nome do avanço da ciência, o que estão defendendo, na prática, é uma
técnica de laboratório, limitada à manipulação genética de interesse
comercial, controlada por monopólios econômicos. Estão promovendo
produtos tecnológicos de alto risco, mercantilizados sem controle
ético, sem testes de médio prazo, sem análises de biosegurança, sem
avaliação de potenciais bioriscos, sem avaliação de impactos na
biodiversidade e, o que é pior, colocando o interesse de lucro de
grandes empresas acima da proteção da vida, ignorando por completo,
portanto, a bioética.
A teia da vida, formada em bilhões de anos, não pode ser manipulada
por técnicas de laboratório, por mais fantásticas que sejam, sem
estudar e pesquisar o conjunto complexo de suas interações e impactos.
É por isto que propugnamos. Por mais ciência e por um paradigma
científico mais amplo e mais completo. Os transgênicos, da forma como
são colocados hoje no mercado, são produto de um modelo científico em
crise, criador de conseqüências ambientais funestas para a humanidade,
servil aos donos do poder econômico e incapaz de dar respostas novas
aos novos problemas que criou. A possibilidade científica de
reprogramar a vida, rompendo, inclusive, a barreira do cruzamento
sexual entre as espécies, exige por si mesma, a superação do modelo de
ciência em que hoje está circunscrita. Mas cabe-me registrar que um
número cada vez maior de cientistas posicionam-se contrários a
qualquer forma de transferência genética entre seres vivos de espécies
diferentes e que a transgenia em si é um erro. Defendem que devemos
resgatar e pesquisar outros aspectos da biotecnologia, outras formas
de saber científico, que reconheçam e captem a enorme complexidade e a
diversidade de situações locais que envolvem as várias formas de
interações vitais que nenhuma ciência de laboratório consegue
alcançar.
Na questão dos transgênicos falta ciência e há pouca pesquisa. A
ironia é que os que querem mais ciência são acusados de
obscurantistas. E a empresa dona da patente da soja transgênica, que
se nega a apresentar pesquisas elementares de médio prazo e em solo
brasileiro sobre impactos ambientais e de segurança alimentar de uma
planta engenheirada em laboratório com partes de material genético de
um vírus, de duas agrobactérias e da petúnia, condicionada para
resistir a altas doses de um veneno, comercializado pela mesma
empresa, é apresentada como escopo de avanço científico.
Chegou a hora das ciências – esta palavra não tem o direito de ser
utilizada no singular - com abordagem transdisciplinar, holística,
ampla, integral, debruçarem-se e pesquisarem o conjunto das questões
envolvidas no tema.
E se quisermos mesmo modernidade, voltemos ao século XVIII e
incorporemos os valores da democracia na assimilação social dos
resultados da ciência. Ou teremos tecnologias totalitárias, impostas
ao arrepio da vontade do conjunto dos cidadãos ou sem plena
consciência do conjunto de suas implicações.
E a humanidade não conheceu até hoje nenhum totalitarismo
benéfico, por mais casca de modernismo que pudesse apresentar.
* Frei Sérgio Antônio Görgen ofm. Frade Franciscano e Deputado Estadual do PT-RS.
Tupanciretã, 13 de abril de 2003.
(Agradeço as inúmeras contribuições a este texto, especialmente Sílvia
Ribeiro e Rubens Nodari)
https://www.alainet.org/pt/articulo/107376?language=en
Del mismo autor
- O Futuro das Sociedades Democráticas 29/10/2019
- Sepé Tiarajú, 263 anos depois, segue presente e necessário na luta dos povos 08/02/2019
- Los intereses del agronegocio y el gobierno golpista 14/07/2016
- Os interesses do agronegócio e o governo golpista 12/07/2016
- A Hora e a Vez de um Programa Camponês 25/03/2015
- Cumpra-se a lei 23/03/2006
- Que Reforma Política o povo brasileiro precisa 29/06/2005
- Por um punhado de terra 08/05/2005
- Transgênicos: uma nova fase 28/02/2005
- Julgamento de trabalhadores sem terra preocupa 25/11/2004