Nasce um pária internacional
26/03/2003
- Opinión
Se há alguma coisa óbvia na história da guerra, é que pouca
coisa pode ser prevista.
No Iraque, a força militar mais espantosa da história humana
atacou um país muito mais fraco, uma disparidade de forças
enorme.
Demorará algum tempo até que as conseqüências disso possam
ser avaliadas, ainda que de forma preliminar. Todos os esforços
precisam ser dedicados a minimizar os danos, e a fornecer ao
povo iraquiano os imensos recursos que lhe serão necessários
para reconstruir sua sociedade, depois de Saddam, à maneira que
preferirem, e não como lhes ditarem governantes estrangeiros.
Não existe motivo para duvidar da opinião quase universal de que
a guerra no Iraque só fará aumentar a ameaça de terror, o
desenvolvimento e uso de armas de destruição em massa, por
motivos de vingança ou dissuasão.
No Iraque, o governo Bush está tentando realizar uma
"ambição imperial", ou seja, em termos claros, assustando o
mundo inteiro e fazendo dos Estados Unidos um pária
internacional.
A intenção declarada da atual política americana é afirmar
um poderio militar que seja supremo no mundo, para além de
qualquer desafio. As guerras preventivas norte-americanas
poderão ser combatidas da maneira que se quiser, guerras
preventivas, e não de preempção. Quaisquer que possam ser as
justificativas que existam para uma guerra de preempção, elas
não se sustentam no caso das guerras preventivas, uma categoria
muito diferente: o uso da força para eliminar uma ameaça
forjada.
Essa política abre caminho a uma disputa prolongada entre os
Estados Unidos e seus inimigos, alguns dos quais criados pela
violência e pela agressão, e não só no Oriente Médio. Quanto a
isso, o ataque norte-americano ao Iraque é uma resposta às
preces de Bin Laden.
Para o mundo, o que está em jogo na guerra e no período que
a seguirá tem importância quase suprema. Para selecionar apenas
uma das muitas possibilidades, a desestabilização no Paquistão
pode levar à entrega de "armas nucleares perdidas" a uma rede
mundial de grupos terroristas, talvez revigorada pela ocupação
militar do Iraque. Outras possibilidades, não menos sombrias,
são fáceis de imaginar.
Intolerância à agressão
Mas a perspectiva de um desfecho mais benigno continua a
existir, a começar pelo apoio mundial às vítimas da guerra, da
brutal tirania e das mortíferas sanções contra o Iraque.
Um sinal promissor é que a oposição à invasão, tanto antes
quanto depois de consumada, é inteiramente sem precedentes.
Em contraste, 41 anos atrás, este mês, quando o governo
Kennedy anunciava que pilotos norte-americanos estavam
bombardeando e metralhando alvos no Vietnã, quase não houve
protestos. E eles não atingiram um nível significativo ainda por
alguns anos.
Hoje, há um movimento de protesto contra a guerra em larga
escala, dedicado e baseado em princípios, nos Estados Unidos e
em todo o mundo.
O movimento pela paz agiu vigorosamente antes mesmo que a
nova guerra do Iraque tivesse começado.
Isso reflete o progresso constante, nos últimos anos, da
intolerância à agressão e às atrocidades, uma das muitas
mudanças que afetaram todo o mundo. Os movimentos ativistas dos
últimos 40 anos exerceram efeito civilizatório.
Agora, a única maneira de os Estados Unidos atacarem um
inimigo muito mais fraco é montar uma imensa ofensiva de
propaganda retratando-o como a encarnação do mal, ou até mesmo
como ameaça à nossa sobrevivência. Esse foi o cenário que
Washington defendeu com relação ao Iraque.
Mesmo assim, os ativistas pela paz estão em posição muito
melhor agora para impedir um novo recurso à violência, e isso é
uma questão de extraordinária importância.
Uma grande parte da oposição à guerra de Bush se baseia no
reconhecimento de que o Iraque é apenas um caso especial da
"ambição imperial" declarada vigorosamente na Estratégia de
Segurança Nacional apresentada em setembro passado.
Para que tenhamos alguma perspectiva, em nossa situação
atual, pode ser útil que relembremos episódios de história
recente. Em outubro passado a natureza das ameaças à paz foi
dramaticamente sublinhada em uma conferência de cúpula realizada
em Havana no 40º aniversário da crise dos mísseis de Cuba, à
qual compareceram participantes-chave de Cuba, da Rússia e dos
EUA.
O fato de que tenhamos sobrevivido à crise foi um milagre.
Aprendemos que o mundo foi salvo da devastação nuclear por um
capitão de submarino russo, Vasili Arkhipov, que cancelou a
ordem de disparar mísseis nucleares, quando submarinos russos
foram atacados por destróieres americanos perto da linha de
"quarentena" imposta por Kennedy.
Se Arkhipov tivesse concordado com o disparo, o lançamento
nuclear decerto teria criado uma troca de ataques que poderia
"destruir o hemisfério Norte", como advertira Eisenhower.
A assustadora revelação vem em momento particularmente
adequado, dadas as circunstâncias: a raiz da crise dos mísseis
era o terrorismo internacional para promover uma "mudança de
regime", dois conceitos que estão nos pensamentos de todos hoje
em dia.
Os ataques terroristas norte-americanos contra Cuba
começaram pouco depois que Castro assumiu o poder, e foram
vigorosamente reforçados por Kennedy, até o momento da crise dos
mísseis e depois.
Os novos estudos demonstram com brilhante clareza os riscos
terríveis e imprevistos de ataques contra um "inimigo muito mais
fraco", com o objetivo de promover uma "mudança de regime"
riscos que podem em breve condenar-nos a todos, não é exagero
dizer.
Caminhos perigosos
Os EUA estão desbravando novos e perigosos caminhos, diante
de oposição mundial quase unânime. Há duas maneiras para que
Washington responda a ameaças que são, em parte, engendradas por
suas ações e proclamações surpreendentes.
Uma delas é tentar aliviar as ameaças por meio de alguma
atenção a queixas legítimas, e algum respeito à ordem mundial e
suas instituições.
A outra seria construir ainda mais espantosos aparelhos de
destruição e domínio, de modo que qualquer desafio que se
perceba, por mais remoto que pareça, possa ser esmagado gerando
novos e ainda maiores desafios.
* Noam Chomsky é ativista político, professor de Lingüística no
Massachussets Institute of Technology. Seu mais recente livro é
"Power and Terror" (Poder e Terror) - Publicado no jornal Folha
de S.Paulo, 26 de março de 2003.
https://www.alainet.org/pt/articulo/107191?language=es
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