Integração das Américas
Impasses econômicos e geopolíticos no caminho da ALCA
04/01/2003
- Opinión
Diante da intensificação do unilateralismo da política externa dos EUA, caberá ao
Brasil tentar encontrar um caminho próprio que se afaste tanto do caminho da
ruptura com seu principal parceiro comercial quanto do da anexação política,
econômica e ideológica. A proposta da ALCA está no centro desse desafio.
Como imprimir uma nova direção à política externa brasileira, resgatando o
Mercosul da densa bruma em que está envolto, estreitando os laços políticos e
econômicos com os países da América Latina e, ao mesmo tempo, intensificar as
relações comerciais com os Estados Unidos sem pagar o alto preço político de
tornar-se uma correia de transmissão da política externa belicista e
unilateralista do governo Bush? Esse é um dos singelos desafios que está colocado
para o novo governo brasileiro e sua política de retomada do crescimento econômico
e do desenvolvimento social do país. O êxito desse projeto dependerá, em larga
medida, de uma solução satisfatória para uma proposta polêmica: a criação da Área
de Livre Comércio das Américas (ALCA).
A ALCA é um terreno repleto de armadilhas. Concebida como um acordo
essencialmente comercial, a proposta do governo dos EUA inclui, entre outras
coisas, a abertura total dos mercados latinos não somente aos produtos industriais
norte-americanos, como também às suas empresas nos setores de serviços, incluindo
saúde, educação, turismo, saneamento básico e telecomunicações. Além disso,
obriga todos os países do continente a aplicar as leis dos EUA sobre propriedade
intelectual. Isso significa, por exemplo, que o Brasil deve permitir que
componentes de ervas medicinais, utilizadas pelos índios da região amazônica,
sejam patenteadas por pesquisadores norte-americanos, algo que já acontece de
fato. A proposta da ALCA permite também que empresas processem governos por
supostos prejuízos causados por legislações ambientais consideradas
"demasiadamente rigorosas". O governo canadense já experimentou esse remédio
amargo, sendo processado e derrotado por uma empresa norte-americana do setor de
combustíveis que al Há armadilhas de outra ordem também. O governo dos EUA pode
condicionar, por exemplo, acordos comerciais vantajosos ao apoio a intervenções
militares no Iraque, Afeganistão ou qualquer outro país. Algo similar pode
ocorrer no terreno dos tratados internacionais. Durante a 5ª Conferência
Ministerial de Defesa das Américas, realizada em Santiago do Chile, de 18 a 22 de
novembro de 2002, o Brasil voltou a ser pressionado pelos EUA a assinar um acordo
que garante imunidade aos soldados norte-americanos. A Casa Branca quer livrar
seus soldados de qualquer possibilidade de julgamento no Tribunal Penal
Internacional (TPI), o que está previsto no artigo 98 da recém-criada instituição
destinada a julgar crimes de guerra, de genocídio e contra a humanidade. O
governo Bush alega que seus soldados, envolvidos em "missões internacionais de
paz" possam ser alvo de "acusações infundadas". Esse é mais um dos temas
espinhosos que deverá ser resolvido pelo governo Lula.
Em seu primeiro pronunciamento oficial, como presidente eleito, Lula reafirmou a
disposição do novo governo brasileiro em apoiar tratados internacionais como o do
Protocolo de Kyoto e o que levou à criação do Tribunal Penal Internacional. É
razoável supor que o governo Bush coloque esses temas na mesa na hora de negociar
acordos comerciais. Por todas essas razões, o tempo representa um fator essencial
no processo de debates da ALCA.
Mike Tyson contra Popó
O governo Bush pretendia concretizar até o fim do seu mandato, em dezembro de
2004, a criação da ALCA, envolvendo 34 países do continente. Somente Cuba deve
ficar de fora do acordo, segundo a proposta original dos Estados Unidos. Mas o
prazo-limite de 2004 dificilmente será cumprido. Uma série de problemas e
impasses econômicos e geopolíticos deve adiar, por tempo indeterminado, o
surgimento da ALCA. A eleição de Lula no Brasil introduziu uma nova e importante
peça em um já intrincado tabuleiro político. Um dos grandes desafios do novo
governo brasileiro será mudar a rota da política externa sem bater de frente com
seu principal parceiro comercial e potência hegemônica no planeta.
Durante a campanha eleitoral, Lula afirmou diversas vezes que a proposta da ALCA,
nas condições em que está formulada atualmente, significa uma anexação das
economias latino-americanas à economia dos EUA. Tal declaração não implica porém,
que o novo governo brasileiro seja, em princípio, contrário a criação de uma Área
de Livre Comércio no continente. Pelo contrário, há total interesse na
intensificação das trocas comerciais, especialmente com os EUA. Afinal de contas,
os norte-americanos são os maiores importadores da economia mundial. Eles compram
duas vezes mais do que a Europa e quatro vezes mais do que o Japão. Uma das
principais empresas brasileiras, a Embraer, vende 25% da sua produção para os EUA.
Ou seja, não há o menor interesse em romper com esse mercado. O problema todo é
implementar um acordo comercial continental que traga benefícios a todos os seus
integrantes.
Outro detalhe importante que expõe a atual fragilidade brasileira nas negociações
diz respeito às linhas de crédito internacionais para o Brasil. Os EUA respondem
por US$ 27 bilhões disponíveis no pacote de U$ 30 bilhões do Fundo Monetário
Internacional (FMI) para o Brasil. É uma fantástica espada que paira sobre o
pescoço nacional.
Um dos mais contundentes críticos da ALCA no Brasil, o embaixador Samuel Pinheiro
Guimarães (nomeado para a secretaria geral do Itamaraty), chegou a dizer que, nos
termos atuais, o resultado das negociações em torno da Área de Livre Comércio será
tão previsível quanto o de uma luta entre Mike Tyson e Popó. Outra metáfora
esclarecedora aparece em um artigo publicado na revista Carta Capital, onde
Antonio Luiz M. C. da Costa afirma que a situação de extrema vulnerabilidade dos
países latino-americanos, enfraquecidos por mais uma década de políticas
neoliberais, é similar a "de um desempregado que tenta conseguir um acordo
favorável de um agiota" (08/03/2003). Um dos principais desafios do governo Lula
será justamente tentar alterar esse quadro, criando condições mais favoráveis para
uma verdadeiro integração política e econômica do continente.
Um calendário impraticável
O calendário oficial da ALCA, definido na Cúpula das Américas, realizada no
Québec, em abril de 2001, previa que as negociações entre os 34 países deveriam se
encerrar em 2004. Os Legislativos desses países teriam, então, o ano de 2005 para
aprovar a negociação e, finalmente, em 2006, a Área de Livre Comércio passaria a
existir. O novo chanceler brasileiro, Celso Amorim, já deixou claro que, para o
Brasil, os prazos da ALCA têm de ser flexíveis. "Temos todo interesse na
negociação com os EUA, mas não temos de ver as datas já estabelecidas como grãos
de sal", disse o chanceler ao jornal Gazeta Mercantil (06/01/2003). Amorim
expressou a posição do governo Lula com as seguintes palavras: "A ALCA não é um
tratado, é um projeto de área de livre comércio e todos os seus prazos são
políticos. Temos um governo novo, de oposição - o que não é por acaso -, e é
necessário dar um tempo mínimo para discussões com o Congresso e os empresários".
Pelo calendário já estabelecido, 15 de fevereiro tornou-se uma data-chave para que
EUA, Brasil e os outros 32 países do continente apresentem as propostas iniciais
para a criação da Área de Livre Comércio. Pelas regras até aqui definidas, quem
não apresentar sua proposta não conhecerá o conteúdo das propostas dos outros. O
governo brasileiro já deu sinais claros que vai adiar a divulgação da sua
proposta. O recado foi dado pessoalmente pelo ministro Celso Amorim ao embaixador
dos EUA para Assuntos do Comércio Exterior, Robert Zoellick, durante uma reunião
em Brasília logo após a posse de Lula. Tanto o presidente eleito, quanto seu
chanceler, manifestaram que o objetivo imediato da política externa brasileira
será redesenhar e fortalecer o Mercosul. Para isso, ganhar tempo é fundamental.
O tema dos subsídios agrícolas
O governo dos EUA, por sua vez, aguarda a posição da União Européia na próxima
rodada (Doha) de negociações da Organização Mundial do Comércio (OMC). O
principal ponto de discórdia entre EUA e União Européia diz respeito aos subsídios
agrícolas. A União Européia decidiu adiar a revisão da Política Agrícola Comum
(PAC), que estabelece os níveis de subsídios aos agricultores europeus, para 2006-
2007. Os EUA exigem que a União Européia revise sua política de concessão de
subsídios, atualmente na casa dos US$ 60 bilhões/ano. A Casa Branca alega que
aplica "apenas" US$ 20 bilhões/ano em subsídios à agricultura. Na verdade,
segundo estimativas de alguns economistas, esse valor chega a US$ 180 bilhões, sob
a forma de barreiras e políticas antidumping. É importante lembrar que o
Congresso norte-americano aprovou, em 2002, uma Lei Agrícola (Farm Bill) que
assegura subsídios a seus agricultores pelos próximos dez anos.
Espremidos entre esses dois gigantes econômicos, países como o Brasil tentam
assegurar algumas migalhas a mais em suas balanças comerciais. O governo Bush já
deixou claro que não pretende ceder um milímetro no que se refere aos subsídios
agrícolas e às leis de defesa comercial que protegem setores econômicos nacionais
considerados sensíveis, como é o caso da siderurgia e da agricultura, duas áreas,
por acaso, também sensíveis ao Brasil. A redução dos subsídios agrícolas, tanto
na Europa quanto nos EUA, é um tema central para o Brasil que precisa conquistar
novos mercados para seus produtos. A postura inflexível da União Européia e dos
EUA quanto à possibilidade de uma redução considerável desses subsídios desenha um
cenário não muito otimista para os próximos anos.
O governo Bush acena com a possibilidade de firmar um acordo bilateral com o
Brasil, antes mesmo da definição das negociações da ALCA. A proposta é vista com
simpatia por alguns setores políticos e empresariais brasileiros, mas também
apresenta seus riscos. Uma fonte da Embaixada do Brasil em Washington declarou à
revista Primeira Leitura (edição de dezembro de 2002) que o país deve pensar
seriamente na possibilidade de fazer uma negociação bilateral com os EUA. "Os
prazos da ALCA já foram para o espaço, só que ninguém quer dizer isso em alto e
bom som", disse a fonte citada. E acrescentou: "além de já terem o Nafta, os EUA
estão a negociar bilateralmente com meio mundo; fizeram acordos específicos com os
países caribenhos, com os do Pacto Andino e negociam em bloco com o Chile e a
América Central". Mas há quem desconfie desse caminho. O diretor do Departamento
de Relações Internacionais e Comércio Exterior da Federação das Indústrias do
Estado de São Paulo (Fiesp), Mário Mugnaini Jr., lembrou que os E
Impasse geopolítico
A observação de Mugnaini identifica o impasse geopolítico que ronda o processo de
negociações da ALCA. A atual política externa dos EUA vem sendo marcada por um
unilateralismo de altíssima intensidade. A América Latina não ocupa exatamente um
lugar central nessa política. O que não quer dizer que a Casa Branca está se
lixando para a região. Pelo contrário, o governo Bush condiciona o apoio ao
crescimento da região aos seus objetivos hegemônicos estratégicos, procurando
ampliar sua presença econômica, política e militar na região, como revela
exemplarmente o caso da Colômbia. A economista Ana Esther Ceceña, diretora da
revista Chiapas e coordenadora do projeto "Neoliberalismo e resistência" no
Instituto de Investigações Econômicas da Universidade Nacional Autônoma do México,
elaborou um mapa que aponta as principais riquezas naturais do continente
americano e os principais conflitos sociais (Carta Capital, 08/01/2003). Nesse
mapa, ela identifica uma estreita relação entre essas regiões e as áreas em que
Essa constatação extrai o significado mais rico da observação do dirigente da
Fiesp: a política comercial dos EUA é pautada por uma política de Estado com
objetivos estratégicos bem definidos. Aí reside o grande desafio na política
externa brasileira: firmar um acordo comercial minimamente vantajoso sem ser
fagocitado pelo projeto hegemônicos norte-americano. O ministro Celso Amorim já
declarou que a nova política externa vai refletir, entre outras coisas, o fato de
que os brasileiros elegeram um trabalhador, por um partido de esquerda, para um
governo que se caracteriza como de centro-esquerda. Disse também que o Brasil
pode desempenhar um importante papel como mediador de uma solução pacífica para
crises regionais, como as da Venezuela e da Colômbia. "Não vamos sair por aí nos
metendo nas crises dos vizinhos, mas quando convidados, vamos participar do
diálogo, da mediação, com base nos princípios da democracia e da
constitucionalidade", disse o chanceler à Gazeta Mercantil (06/01/2003). Ou seja,
uma
Talvez apareça aí a possibilidade do Brasil se firmar, de fato, como liderança
regional, o que poderia aumentar o poder de barganha com os EUA. Mas é apenas um
talvez. Não custa lembrar, como dado final, que, enquanto o orçamento do
Departamento de Defesa dos EUA atingirá, em 2003, o nível recorde de US$ 364,1
bilhões, os gastos com ajuda para o desenvolvimento de países pobres vem caindo
acentuadamente. Após os atentados de 11 de setembro, esse quadro só piorou.
Depois da iminente guerra contra o Iraque pode piorar ainda mais. Diante da forte
possibilidade de intensificação do unilateralismo da política externa da maior
potência do planeta, caberá ao Brasil tentar encontrar um caminho próprio que se
afaste tanto do caminho da ruptura com seu principal parceiro comercial quanto do
da anexação política, econômica e ideológica. Simplesmente isso.
*Marco Aurélio Weissheimer é correspondente da Agência Carta Maior em Porto Alegre
https://www.alainet.org/pt/articulo/106815?language=es
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