Das pedras de Davi aos tanques de Golias
16/04/2002
- Opinión
Afirmam algumas autoridades em questões bíblicas que o Primeiro Livro
de Samuel foi escrito ou na época de Salomão ou no período imediato, em
qualquer caso antes do cativeiro da Babilônia. Outros estudiosos não
menos competentes argumentam que não apenas o Primeiro, mas também o
Segundo Livro de Samuel, foram redigidos depois do exílio da Babilônia,
obedecendo a sua composição ao que é denominado por estrutura
histórico-político-religiosa do esquema deuteronomista, isto é,
sucessivamente, a aliança de Deus com o seu povo, a infidelidade do
povo, o castigo de Deus, a súplica do povo, o perdão de Deus. Se a
venerável escritura vem do tempo de Salomão, poderemos dizer que sobre
ela passaram, até hoje, em números redondos, uns três mil anos.
Se o trabalho dos redatores foi realizado após terem regressado os
judeus do exílio, então haverá que descontar daquele número uns 500
anos, mais mês, menos mês.
Esta preocupação de rigor temporal tem como único propósito propor à
compreensão do leitor a idéia de que a famosa lenda bíblica do combate
(que não chegou a dar-se) entre o pequeno pastor Davi e o gigante
filisteu Golias anda a ser mal contada às crianças pelo menos desde há
25 ou 30 séculos.
Ao longo do tempo, as diversas partes interessadas no assunto
elaboraram, com o assentimento acrítico de mais de cem gerações de
crentes, tanto hebreus como cristãos, toda uma enganosa mistificação
sobre a desigualdade de forças que separava dos bestiais quatro metros
de altura de Golias a frágil compleição física do louro e delicado
Davi.
Tal desigualdade, segundo todas as aparências enorme, era compensada, e
logo revertida a favor do israelita, pelo fato de Davi ser um mocinho
astucioso e Golias uma estúpida massa de carne, tão astucioso aquele
que antes de ir enfrentar-se ao filisteu apanhou na margem de um regato
que havia por ali perto cinco pedras lisas que meteu no alforje, tão
estúpido o outro que não se apercebeu de que Davi vinha armado com uma
pistola.
Que não era uma pistola, protestarão indignados os amantes das
soberanas verdades míticas, que era simplesmente uma funda, uma
humílima funda de pastor, como já as haviam usado em imemoriais tempos
os servos de Abraão que lhe conduziam e guardavam o gado. Sim, de fato
não parecia uma pistola, não tinha cano, não tinha coronha, não tinha
gatilho, não tinha cartuchos, o que tinha era duas cordas finas e
resistentes atadas pelas pontas a um pequeno pedaço de couro flexível,
no côncavo do qual a mão esperta de Davi colocaria a pedra que, à
distância, foi lançada, veloz e poderosa como uma bala, contra a cabeça
de Golias, e o derrubou, deixando-o à mercê do fio da sua própria
espada, já empunhada pelo destro fundibulário.
Não foi por ser mais astucioso que o israelita conseguiu matar o
filisteu e dar a vitória ao exército do Deus vivo e de Samuel, foi
simplesmente porque levava consigo uma arma de longo alcance e a soube
manejar. A verdade histórica, modesta e nada imaginativa, contenta-se
com ensinar-nos que Golias não teve nem sequer a possibilidade de pôr
as mãos em cima de Davi.
A verdade mítica, emérita fabricante de fantasias, anda a embalar-nos
há 30 séculos com o conto maravilhoso do triunfo de um pequeno pastor
sobre a bestialidade de um guerreiro gigantesco a quem, afinal, de nada
pôde servir o pesado bronze do capacete, da couraça, das perneiras e do
escudo.
Tanto quanto estamos autorizados a concluir do desenvolvimento deste
edificante episódio, Davi, nas muitas batalhas que fizeram dele rei de
Judá e de Jerusalém e estenderam o seu poder até a margem direita do
Eufrates, não voltou a usar a funda e as pedras.
Também não as usa agora. Nestes últimos 50 anos cresceram a tal ponto
as forças e o tamanho de Davi que entre ele e o sobranceiro Golias já
não é possível reconhecer qualquer diferença, podendo até dizer-se, sem
insultar a ofuscante claridade dos fatos, que se tornou num novo
Golias. Davi, hoje, é Golias, mas um Golias que deixou de carregar
pesadas e afinal inúteis armas de bronze. Aquele louro Davi de antanho
sobrevoa de helicóptero as terras palestinas ocupadas e dispara mísseis
contra alvos inermes; aquele delicado Davi de outrora tripula os mais
poderosos tanques do mundo e esmaga e rebenta tudo quanto encontra na
sua frente; aquele lírico Davi que cantava loas a Betsabé, encarnado
agora na figura gargantuesca de um criminoso de guerra chamado Ariel
Sharon, lança a "poética" mensagem de que primeiro é necessário esmagar
os palestinos para depois negociar com o que deles restar.
Em poucas palavras, é nisto que consiste, desde 1948, com ligeiras
variantes meramente táticas, a estratégia política israelita.
Intoxicados mentalmente pela idéia messiânica de um Grande Israel que
realize finalmente os sonhos expansionistas do sionismo mais radical;
contaminados pela monstruosa e enraizada "certeza" de que neste
catastrófico e absurdo mundo existe um povo eleito por Deus e que,
portanto, estão automaticamente justificadas e autorizadas, em nome
também dos horrores passados e dos medos de hoje, todas as ações
próprias resultantes de um racismo obsessivo, psicológica e
patologicamente exclusivista; educados e treinados na idéia de que
quaisquer sofrimentos que tenham infligido, inflijam ou venham a
infligir aos outros, e em particular aos palestinos, sempre ficarão
abaixo dos que padeceram no Holocausto, os judeus arranham
interminavelmente a sua própria ferida para que não deixe de sangrar,
para torná-la incurável, e mostram-na ao mundo como se tratasse de uma
bandeira.
Israel fez suas as terríveis palavras de Jeová no Deuteronômio: "Minha
é a vingança, e eu lhes darei o pago". Israel quer que nos sintamos
culpados, todos nós, direta ou indiretamente, pelos horrores do
Holocausto, Israel quer que renunciemos ao mais elementar juízo crítico
e nos transformemos em dócil eco da sua vontade, Israel quer que
reconheçamos de jure o que para eles já é um exercício de fato: a
impunidade absoluta. Do ponto de vista dos judeus, Israel não poderá
nunca ser submetido a julgamento, uma vez que foi torturado e queimado
em Auschwitz. Pergunto-me se esses judeus que morreram nos campos de
concentração nazistas, esses que foram perseguidos ao longo da
História, esses que foram trucidados nos pogrons, esses que apodreceram
nos guetos, pergunto-me se essa imensa multidão de infelizes não
sentiria vergonha pelos atos infames que os seus descendentes vêm
cometendo.
Pergunto-me se o fato de terem sofrido tanto não seria a melhor causa
para não fazerem sofrer os outros. As pedras de Davi mudaram de mãos,
agora são os palestinos que as atiram.
Golias está do outro lado, armado e equipado como nunca se viu soldado
algum na história das guerras, salvo, claro está, o amigo americano.
Ah, sim, as horrendas matanças de civis causadas pelos chamados
terroristas suicidas...
Horrendas, sim, sem dúvida, condenáveis, sim, sem dúvida. Mas Israel
ainda terá muito que aprender se não é capaz de compreender as razões
que podem levar um ser humano a transformar-se numa bomba.
JOSÉ SARAMAGO, Prêmio Nobel de Literatura de 1998, escreveu este texto
para o Parlamento Internacional dos Escritores a partir da visita que
fez a Yasser Arafat, em Ramallah, no fim de março, com uma delegação
que reunia oito intelectuais de quatro continentes.
https://www.alainet.org/pt/articulo/105815?language=en
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