Páscoa, a vida se liberta da morte
15/03/2002
- Opinión
Tenho a impressão de estar cercado por sinais de morte. Vivo num
mundo atropelado por conflitos, sem que a dor das vítimas mereça
sequer uma flor anônima. No século XX, nada menos do que 182 milhões
de pessoas pereceram em guerras. E houve apenas dois tribunais
empenhados em punir os responsáveis: Nuremberg e, agora, Haia, que
apura os massacres ocorridos na Europa central.
Vivo num Continente em que 221 milhões de habitantes padecem fome.
Aqui dizimaram cerca de 100 milhões de indígenas, escravizaram os
negros trazidos da África e, como quem estupra e, em seguida, aborta
o feto à ponta de faca, arrancaram-nos o ouro, a prata, a madeira, as
matérias-primas, a terra.
Agora, praticam a mais vil extorsão, impondo-nos o jugo da dívida
e(x)terna e esfarelando, pelas trilhas tortuosas do nosso futuro, o
bagaço argentino do colapso de nações inteiras, como se a docilidade
do paciente à receita prescrita transmutasse em veneno o remédio que
deveria salvá-lo.
Vivo num país com 53 milhões de excluídos e 40 mil assassinatos por
ano, sem contar as cifras superiores das vítimas de trânsito e de
acidentes de trabalho. Há medo em cada esquina, as noites são
tenebrosas, nunca se sabe quem será a próxima vítima. Aqui, como há
séculos denunciava Bartolomeu de las Casas, morre-se antes do tempo.
E tão violenta quanto essa guerra civil não declarada, medonha como a
ambição das elites, é o modo degradante como a morte corrói corpos e
mentes antes de levar os espíritos: meninas prostituídas; crianças
condenadas ao mercado de trabalho; incontável exército de
desempregados; camponeses sem terra; jovens sem esperança, consumidos
pelo ócio e pela droga.
O Brasil deve, hoje, cerca de US$ 250 bilhões, uma fortuna que, ao
entrar no país, não foi aplicada em benefício da maioria da
população. Em novembro passado, o governo brasileiro devia R$ 660,47
bilhões, o que corresponde a 53% de toda a riqueza da nação ou ao PIB
(Produto Interno Bruto). Em 2000, a CNBB promoveu o plebiscito da
dívida externa. Votaram cerca de 6 milhões de pessoas. Dessas, 90%
mostraram-se favoráveis a que o governo suspendesse temporariamente o
pagamento da dívida de US$ 2 bilhões que saem do país todos os meses
até que uma auditoria investigue a origem e o destino dos recursos,
pois suspeita-se que parte considerável do dinheiro tomado emprestado
teria sido desviada pela corrupção.
Entre os sinais de morte que marcam a face sofrida do Brasil estão os
15 milhões de sem-terra e os 20 milhões de sem-teto. Isso porque, em
nosso país, não há mecanismos de distribuição de renda, incluindo a
terra (reforma agrária), embora o Brasil figure entre as dez nações
mais ricas do mundo. Basta lembrar que, em 2001, os assalariados
pagaram mais 4,16% de imposto de renda. As empresas, no entanto,
pagaram menos 13% e, os bancos, menos 31,89%. Daí o rombo de R$ 13
bilhões da Previdência Social.
Apesar de tudo, irrompe em mim, como um dom inexorável, a fé na vida.
É a Páscoa que me afasta do desespero e livra-me da indiferença. Ao
quebrar as cadeias da morte, Jesus partiu todas as correntes que
prendiam a injustiça às escarpas íngremes da fatalidade. Cercado
também de sinais de morte enquanto viveu entre nós, Jesus demonstrou
que a doença não é nem vontade, nem castigo de Deus, e anunciou-lhes
a cura; a pobreza é filha da injustiça, e proclamou bem-aventurados
os que têm fome de justiça; a culpa não se justifica quando se crê na
misericórdia divina. Na ressurreição do Filho, o Pai proclamou
definitivamente a soberania da vida.
Malgrado todos os sinais de morte, o dom maior de Deus há de
prevalecer, ainda que as guerras se mascarem com a caveira da
perenidade e a opressão cubra-se com a fantasia de eternidade. A
invisível semente da fé faz-me crer na força irreprimível da vida.
Utopia? Longe disso. A Páscoa é como plantação de melancia: viceja
rente ao chão da vida e, de repente, apresenta-nos um belo fruto. Ela
está presente nas juras de amor dos enamorados e na luta dos que
teimam pelos direitos humanos; na solidariedade dos que dão de si ao
próximo e no cuidado dos que protegem o meio ambiente; no sorriso de
quem embriaga o coração de misericórdia e no empenho incansável dos
que fazem da política a arte de servir a maioria.
Se olharmos em volta, veremos, surpresos, que os sinais de Páscoa
superam os sinais de morte. Não é uma maravilha que condições
naturais extremamente delicadas, como a exata quantidade de oxigênio
na atmosfera, tenham se reunido para propiciar, neste planeta, o
milagre da vida? Não é sintomático que, apesar de tantos impérios, os
pobres continuem a lutar por seus direitos? Não é significativo que,
ao menos como força de lei, grande parte da humanidade tenha abolido
a escravidão, o trabalho infantil, a discriminação racial, a
submissão da mulher, proclamando a Declaração Universal dos Direitos
Humanos? Não é uma bênção de Deus que haja, ainda hoje, homens e
mulheres que, como Francisco de Assis, Gandhi, Luther King e Teresa
de Calcutá, continuem a doar suas vidas para que outros tenham vida?
Celebrar a Páscoa é fazer valer o dom supremo da vida, e vida em
abundância para todos, como queria Jesus (João 10,10). Portanto,
ainda que haja tantos sinais de morte à volta, a certeza de que Jesus
vive naqueles que têm fome e também em quem dá de comer; dos que têm
sede e em quem dá de beber; desafiando nossa capacidade de amar, é o
que sustenta o mundo e a minha esperança.
Como dizia santa Teresa de Ávila, tudo passa. E acrescento: só a
Páscoa não passa. Pois para quem soube fazer terna esta vida, do
outro lado ela também será terna e eterna.
* Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Leonardo Boff, de
"Mística e Espiritualidade" (Rocco), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/105701?language=es
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