Sabor de utopias
30/10/2001
- Opinión
É provável que, nesses 2.400 anos que se estendem de
Sócrates aos nossos dias, a humanidade não tenha
conhecido um período tão desprovido de utopias como
agora. Onde estão as grandes idéias filosóficas,
religiosas ou políticas que nos movam em direção a um
futuro melhor? O nipo-americano Francis Fukuyama expressa
com muita propriedade o primeiro e único mandamento da
onda neoliberalista que assola o Planeta: "A história
acabou". Eis uma novidade, num mundo marcado pela cultura
hebraico-cristã que difundiu a crença num Deus - Javé -
que, ao contrário das divindades gregas, se revela na
história.
Os adeptos de Jesus partilham a fé de que o mesmo Deus
criador do Universo é o Pai que nos promete, na plenitude
da história, o Reino de justiça e paz. Como ainda há
guerras e fome, não se pode dizer que o Reino se
manifestou; portanto, a história ainda não atingiu sua
plenitude. Mas, por decreto de um funcionário do
Departamento de Estado, ela teria chegado ao fim. Assim,
não haveria mais um lugar ao qual chegar (= utopia). Sob
o império das leis do mercado, este seria o melhor dos
mundos, regido pela ditadura do mercado.
Mesmo as grandes religiões orientais, como o budismo, têm
sua visão cíclica da história, ao considerar a vida etapa
reencarnatória rumo à purificação que nos introduz no
Nirvana. Como a filosofia grega, elas detectaram no
coração humano o anseio de esperança. A existência não é
mero acaso. É fruto de uma história natural sinalizada,
em sua evolução, no relato da Criação contido no Gênesis.
Para a Bíblia, a história antecede a presença humana no
palco da natureza. Aquele Deus cujo nome era História -
pois Seu nome era pronunciado como resgate do passado, "o
Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó" - já imprimira
movimento evolutivo no próprio ato da Criação. Isso as
grandes religiões antigas já haviam intuído. Mas a
ciência teve que aguardar o século XX de nossa era para
constatar que o Universo teve início, no Big-Bang, há
cerca de 15 bilhões de anos, quando então surgiu o tempo
e, em sua esteira, a flecha da evolução. A energia
condensou-se em matéria e, no calor das estrelas, foram
fundidos, com diferentes consistências e qualidades,
todos os átomos que integram, quais tijolos, as
estruturas dos mundos inorgânico e orgânico. Os próprios
átomos têm sua história de integração, desde suas
partículas elementares que oscilam na indefinível
fronteira entre o espiritual e o material, como os quarks
e os elétrons, às moléculas e células que constituem os
elos dos corpos minerais, vegetais e animais.
O milagre da vida
A vida é o dom maior de Deus - repetem os militantes das
comunidades eclesiais de base (CEBs) da América Latina,
cuja população é desprovida dos bens essenciais que
evitam a morte precoce. Ainda que a vida da maioria dos
latino-americanos seja considerada sem valor pelas elites
do continente e dos EUA, ela é, em si, um fenômeno
maravilhosamente indescritível, cientificamente
inexplicável e tecnicamente irreproduzível, malgrado os
clones futuros, pois as condiçõesa ambientais de um ser
vivo jamais coincidem.
A história da vida de cada um de nós se inicia há milhões
de anos. Até agora, parece-nos que a vida é exclusiva do
sistema solar, mais exatamente do planeta Terra, a bordo
do qual viajamos numa velocidade de 30 km por segundo. O
Sol teria surgido há cerca de 5 bilhões de anos; a Terra,
há cerca de 4 bilhões 550 milhões de anos; e a pouco mais
de 3 bilhões de anos a vida teria emergido do fundo dos
mares1. Assim, esse "dom maior de Deus", do qual você e
eu somos exemplares, possui também sua própria história,
que vai das bactérias às amebas, dos organismos
monocelulares aos pluricelulares que, de tão viciadas em
aspirar esse gás letal e fortemente oxidante - o oxigênio
- conseguiram transformá-lo em alimento essencial aos
seres vivos que respiram à luz do Sol.
Nós, seres humanos, somos decorrência de uma história que
evolui do mais simples ao mais complexo, do menos
consciente ao mais consciente, intrigando os cientistas
que, ainda hoje, insistem em ignorar que a evolução parte
da energia para condensar-se em matéria e, desta, para
atingir sua plenitude na espiritualização informada pela
dinâmica do amor. Do vovô Homo Sapiens, que logrou se
emancipar da família Símios, até à civilização, foram 600
mil anos de aperfeiçoamento da espécie... embora ainda
atiremos mísseis sobre nossos semelhantes e deixemos
milhares padecerem de fome.
Tudo indica que a vida humana é a grande utopia de Gaia.
Após sua irrupção, nenhuma outra espécie mais perfeita
surgiu. E se Deus descansou no sétimo dia, nós, as
criaturas, passamos a intensos trabalhos, tais como fazer
a história que podemos, contar a história que fazemos e
sonhar a história que queremos. Mesmo porque, na América
Latina, a vida é um produto raro e caro e, a morte,
abundante.
O centro europeu e a periferia americana Vocacionado à
plenitude, todo ser humano é um peregrino do Absoluto.
Exceto Deus, nada nos sacia. E como Deus habita a
profundidade do amor, tateamos em busca de ilusórios
consolos, incorrendo na ambição que nos faz confundir as
coisas.
Onde fica o centro do Universo? Em cada um de nós. É a
nossa consciência que dá sentido ao Universo e, no
entanto, não somos o centro do mundo. E todas as vezes
que nos julgamos o centro do mundo adotamos a postura de
proprietários do Jardim do Éden e expulsamos os nossos
semelhantes do Paraíso. Assim, convencidos de que eram o
centro do orbe terrestre e únicos detentores da
civilização e da verdadeira e santa religião, os
espanhóis que invadiram o México no século XVI
expulsaram, da história e da vida 23 milhões de
indígenas, segundo uns; 16 milhões, segundo outros
autores; para reduzi-los, em 79 anos, a pouco mais 1
milhão.
A chegada dos europeus em nossas terras - chamadas de
Abia Ayala pelos índios Kuna, do atual Panamá - provocou
uma profunda crise na utopia daqueles povos que aqui
viviam. Por uma perversa coincidência, aqueles homens de
barba ruiva, montados em estranhos animais, como se
tocassem o céu, correspondiam às datas e sinais das
utopias vigentes entre os habitantes da Ameríndia. As
divindades utópicas - Quetzalcóatl, no México, e
Viracocha, no Peru - retornariam, respectivamente, no ano
ce-acall e no reinado do XII Inca (Atahualpa), trazendo
um tempo de fartura. O que veio, porém, naquelas imensas
"casas flutuantes", foi a topia da morte. A maioria dos
súditos de Fernando e Isabel que aqui aportou, em busca
do Eldorado, estava obcecada pela ambição de poder e de
riqueza. Tudo devia cair sob o jugo colonizador: as
riquezas naturais, pela força das armas; os corpos, pela
escravidão e encomiendas ; e as almas, pela destruição
das religiões e das culturas autóctones. A partir da
invasão e da conquista, os povos que aqui viviam não
deveriam sonhar senão o sonho do colonizador, sem
pretender, no entanto, a ele se igualar.
Apesar do genocídio e do ecocídio causados pela empresa
colonialista, durante 500 anos as vítimas - índios,
negros, mulheres, migrantes e trabalhadores - mantiveram
suas culturas de resistência. Disfarçaram de cristãos
seus cultos, batizaram de cristãs suas divindades,
buscaram a liberdade no fundo das selvas e nos quilombos,
e cultivaram suas raízes na tradição de suas comidas,
músicas, danças, crenças, idiomas e utopias. Do Alaska à
Patagônia, todos os povos da América lutaram por sua
independência frente aos reinos europeus. Porém, uma
pequena parcela dos habitantes do Novo Mundo foi cooptada
pelos colonizadores, tornando-se cúmplice na implantação
de um modelo social e cultural mimetista, adequado aos
interesses de fora. Assim, os brancos passaram a ser
considerados superiores aos indígenas e negros; os
patrões, aos empregados; os ricos, aos pobres; os homens,
às mulheres; a América do Norte, à América Latina. De
fato, não são as diferenças naturais e culturais que
constituem a base desse sistema de dominação, mas apenas
a riqueza que assegura acesso a armas mais poderosas.
Quem tem mais força, tem mais razão; quem dispõe de mais
poder, está revestido de mais autoridade. Pois não foi a
razão cínica que possibilitou aos EUA anexarem a seu
território, entre 1836 e 1848, vastas extensões do
México, como o Texas, e todo um país soberano como Porto
Rico?
Fora do mercado não há utopias? A utopia que a
dominação neocolonialista disseminou no continente é a do
american way of life, fabricada nos estúdios de
Hollywood. Mas, como sonhar com tão estreita porta? Como
subir tantos degraus se nos faltam pernas e mãos? Seria
proibitivo sonhar com um mundo onde não houvesse
opressores e oprimidos e no qual as diferenças sexuais,
raciais, étnicas e religiosas não instituíssem
desigualdades entre pessoas? Platão, Tomás Morus e
Campanella, cada um a seu modo, sonharam com esse mundo
utópico. Mas sua viabilidade histórica surgiu no século
XIX com o socialismo, cujas propostas chegaram à América
Latina no início do século XX. Aqui as idéias socialistas
foram difundidas pela militância de anarquistas e
comunistas. Porém, não eram as doutrinas políticas e os
receituários ideológicos que ressoavam no coração
sequioso desse povo que busca alento em Nossa Senhora,
seja ela de Guadalupe, de Aparecida, de los Angeles ou do
Cobre; chamem-na de Patrona, Puríssima, Imaculada ou Mãe
de Deus. Só as forças políticas que souberam incorporar
os sentimentos religiosos do povo às suas propostas
libertárias lograram fazer revoluções na América Latina:
México (1912), Cuba (1959) e Nicarágua (1979).
Porém, dizem que agora chegamos ao "fim da história". A
única opção que resta é entre capitalismo e capitalismo.
Não matam os nossos sonhos, apenas ensinam que não são
abstratos nem se situam na ponta do tempo. São concretos
e palpáveis, situam-se em nosso espaço e custam dinheiro.
Só eles devem ser objetos de nosso desejo: um par de
tênis, uma bicicleta, um carro novo, uma casa de campo,
férias no exterior e dinheiro no banco. O fim da história
coincide com o advento das prateleiras. As catedrais
góticas ficam agora à sombra dos shopping-centers. Hoje,
o sonho já não precisa ser conquistado nem exige
heroísmo. Talvez um pouco de sacrifício para ser
comprado. E a ascética econômica, sob promessa de glórias
futuras, é especialidade do FMI.
O sonho não depende de princípios, mas de interesses. Não
nos exige dignificar a função que ocupamos; ao contrário,
somos considerados pela grife que portamos. Saem os
ideais, entra o mercado. Em meio a tanta competitividade,
fica bem falar em solidariedade, como convém tecer loas à
democracia para que a maioria não desconfie que se
encontra excluída das decisões e das realizações do
poder.
Vitorioso o neoliberalismo no panorama mundial, o "fim da
história" mostra-se, de fato, como o fim das utopias. Já
não há no que crer, o que crer, como crer, exceto para
consumo privado e individual. Estamos em plena crise da
racionalidade moderna. O Muro de Berlim ruiu, o
determinismo histórico cedeu lugar ao princípio da
indeterminação, a física geométrica de Newton foi
suplantada pelo alucinado baile das partículas
subatômicas de Planck e Heisenberg. As utopias
volatilizaram-se, os paradigmas entraram em parafuso e a
esperança exige, hoje, a lanterna de Diógenes. Neva em
nossos corações e mentes.
Vitória da economia de mercado? Pirro talvez acreditasse
nas propriedades nutritivas de um hambúrguer McDonald's.
O fracasso, notório, é o do capitalismo implantado, há
pelo menos um século, na África e na América Latina. O
único país de nosso continente que logrou assegurar
condições mínimas de vida à sua população foi Cuba.
Graças ao socialismo. E se em Cuba as coisas não estão
melhores não é porque Fidel Castro nega ouvidos aos
patronos de ditaduras que insistem em lhe dar lições de
democracia, mas devido ao bloqueio imposto pelo governo
dos EUA e à desintegração da União Soviética. As
estatísticas da FAO sobre a fome do mundo só não são mais
gritantes porque 1 bilhão e 200 milhões de chineses comem
ao menos duas vezes ao dia. Quem sabe Brigitte Bardot
seja uma boa candidata às próximas eleições presidenciais
na América Latina? Aplicasse aqui as leis da Sociedade
Protetora dos Animais e estaríamos todos com uma vida bem
melhor.
Na falta de horizontes, o céu é o limite. No bazar das
crendices, vale tudo, do tarô ao Santo Daime, do
pentecostalismo à astrologia, do I Ching aos gurus
indianos. Mais do que fazer a cabeça, abalada por tantas
incertezas, agora as pessoas querem fazer a alma. A
matemática de Descartes cede lugar às energias cósmicas.
Há um duplo aspecto nessa onda de misticismo. De um lado,
a idolatria do capital e do mercado. Já que não se pode
mudar o mundo, o negócio é ganhar dinheiro e, se
possível, mudar a si mesmo. Limitada a transa do corpo
pelo risco da Aids, o jeito é soltar o espírito. Nessa, o
divã dança. Muitos não querem nem saber as causas de seus
bloqueios psíquicos. Chega de razão!
Terapia é mergulhar no mistério, seja pela via dos
aditivos químicos, como as drogas, seja pela via dos
modismos religiosos e esotéricos que cauterizam o buraco
que trazemos no centro do peito e antecipam hoje o
destino de amanhã.
O outro aspecto é altamente positivo, pois todo esse
fenômeno revela a insuficiência da racionalidade moderna,
confirmando a tese de meu confrade São Tomás de Aquino,
de que "a razão é a imperfeição da inteligência". E
recoloca, na ordem do dia, a questão da subjetividade.
Deus, agora, é in . Pena que as Igrejas históricas
estejam tão estruturadas em seus modelos seculares, sem
muitas condições de acompanhar os que mergulham rumo ao
transcendente.
Ao contrário das tendências esotéricas, em geral voltadas
para o próprio umbigo, o cristianismo faz do outro uma
referência divina. E proclama o amor como experiência de
Deus. Nessa linha, a esperança ressurge, não em torno de
teorias mecânicas ou positivistas, mas centrada no
concreto: como celebrar a vitória do neoliberalismo se o
Leste europeu entra em processo acelerado de latino-
americanização? Deus sim, mas servido e contemplado lá
onde Jesus se identifica ao reconhecer "tive fome e me
destes de comer" (Mateus 25, 35-41 ): nos meninos e
meninas de rua, nos desempregados, nos aposentados, nos
enfermos, nos oprimidos. O amor como desafio místico e
político. E a oração como estímulo da ação.
Se lograrmos, na arqueologia das palavras, descer do
patamar das abstrações e implodir as catedrais
academicistas, talvez cheguemos ao pobre como referência
fundamental, mesmo porque ele é grande maioria nesse
continente cujo principal produto de exportação é capital
líquido para os credores do Primeiro Mundo. Então,
descobriremos que as utopias devem ter raízes
espirituais, base ética e ressonância política. Homens e
mulheres novos como filhos do casamento de Santa Teresa
de Ávila com Ernesto Che Guevara.
A porta da razão é o coração e a chave do coração, a
religião como expressão litúrgica da ousadia de se amar,
de amar o próximo e de amar tudo que concorre para a
soberania da vida, como plenitude de fé e de festa.
https://www.alainet.org/pt/articulo/105386?language=en
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