A semelhança e a diferença

31/10/2000
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Os grupos e movimentos religiosos, até dentro de uma mesma Igreja, dividem-se entre aqueles que buscam a semelhança e aqueles que buscam a diferença em relação a outros grupos eclesiais e/ou sociais. Ao longo da história das religiões, os grupos da diferença aparecem com mais nitidez. Eles constroem sua identidade a partir da crítica aos demais. A seus fiéis importa mais o que não são do que o que são. É o caso dos grupos católicos que não aceitam a teologia da libertação ("que mistura religião e política"); não acreditam em mortos que retornam ("como os espíritas"), não negam a infalibilidade do papa e a virgindade de Maria ("como os protestantes"); não crêem em reencarnações ("como os budistas") etc. Vale para os grupos evangélicos que não fumam, não ingerem bebidas alcóolicas, não aceitam a autoridade do papa, não se põem de joelhos diante de imagens, não consideram o celibato uma virtude etc. Para os adeptos da diferença, o outro é visto pelo que "falta" a ele. Ou melhor, assumem-se como dotados de uma especial vocação e missão sobrenaturais, que os faz sentirem-se mais próximos de Deus do que o comum dos mortais, imersos na cegueira e nas frivolidades da vida mundana. Assim era a visão que escribas e fariseus tinham do grupo de Jesus. Este merecia ser censurado e marginalizado porque não acatava a autoridade do Templo de Jerusalém, não cumpria os preceitos de purificação, não evitava o contato com os "malditos", como pecadores, prostitutas, aleijados e endemoninhados. Os adeptos da semelhança encaram os outros realçando os valores que eles possuem. A graça de Deus manifesta-se a todos, talvez os meus olhos é que não percebam o que os outros têm a me ensinar, pensam eles. Essa foi a atitude de Jesus diante da mulher cananéia (Mateus 15, 21-28), dos samaritanos, da mulher adúltera, do modo como os pobres acolhiam o dom de Deus (Mateus 11, 25-26). O branco tende a olhar o índio por aquilo que ele, branco, tem a seu alcance ­ carro, telefone, aparelhos eletrônicos ­ e o índio não tem. É o olho do colonizador, que em nenhum momento se pergunta: o que têm os indígenas que eu não tenho? Por que será que entre eles não há homicídios, dependentes químicos, desprezo às crianças e aos idosos? Por que os povos indígenas tribalizados não se preocupam em acumular riquezas e são felizes se dispõem de recursos mínimos? O fato de eu ser católico não me torna necessariamente melhor nem pior do que ninguém, a menos que eu ceda ao farisaísmo, que Jesus criticou com fina ironia ao descrever a oração do fariseu: "Ó Deus, eu te agradeço, porque não sou como os outros homens, que são ladrões, desonestos, adúlterosŠ" (Lucas 18, 11). Mas, serei um bom cristão? A Bíblia, em seu realismo, não inferioriza o ser humano diante da grandeza de Deus. Ao contrário, afirma que nós somos "imagem e semelhança" de Deus. Mas não somos deuses. Marcados pela contradição, que a linguagem religiosa chama de pecado, nem isso nos torna desprezíveis aos olhos divinos, mas suscita o amor de Deus, que nos enviou seu Filho e nos deu seu Espírito. Esses nos ensinam a prática da semelhança pelas virtudes da tolerância, do perdão, da compaixão e da humildade. Sobretudo do amor, que é a matéria-prima com a qual se tece a semelhança. O ótica da diferença é narcísica, fascista, prepotente. Por ela os europeus julgaram-se no direito de aniquilar os índios ("que não tinham alma"); os homens submeteram as mulheres ("seres imperfeitos, inferiores"); os brancos discriminaram os negros ("não são como nós"); os nazistas assassinaram os judeus ("que não traziam sangue puro"); a inquisição supliciou os que não acatavam a autoridade eclesiástica ("os hereges"); os estalinistas fuzilaram os seus críticos (" traidores e revisionistas"); a ditadura militar torturou e matou seus opositores ("os terroristas"). A ótica da semelhança é autocrítica, sensata, ecumênica, capaz de apreciar o que o outro tem a ensinar, a dizer, a revelar em sua singularidade e mistério. O critério de juízo dessa ótica não é a sua própria identidade enquanto grupo, mas os valores que a justificam: a vida, os direitos humanos, a cidadania, a democracia real. Ela acata a unidade na diversidade e se empenha pela solidariedade na pluralidade. Quem exclui, na verdade se exclui. Mas abraçar a semelhança não é ceder ao desfibramento de quem não tem princípios. É buscar para todos, sem exceção, os direitos fundamentais que asseguram a cada um dignidade, justiça, liberdade e paz. Nesse sentido, a semelhança marca diferença em relação àqueles que consideram as desigualdades sociais tão inevitáveis e naturais como a chuva e os ventos. Mas não os discrimina. Antes, procura criar uma sociedade onde a vida seja estruturalmente assegurada, para todos, como dom maior de Deus e expressão melhor da evolução do Universo.
https://www.alainet.org/pt/articulo/105179?language=en
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