Brasil: A rebelião ética
07/11/2000
- Opinión
A rebelião ética
Frei Betto
São Paulo
O PT elegeu 187 prefeitos e 2.485 vereadores em todo o Brasil. Não é só uma
vitória. É, sobretudo, uma responsabilidade. O resultado confirma a avaliação
positiva, por parte dos eleitores, do "modo petista de governar", consagrado
em municípios como Porto Alegre, Ribeirão Preto e Santo André.
Houve uma rebelião ética do eleitorado. A imunidade e a impunidade de tantos
políticos corruptos, somadas à malversação do dinheiro público, levaram parte
do eleitorado a demonstrar que tem vergonha na cara. Acresce-se a isso a
decepção com o governo FHC. Nem a oposição esperava que, na presidência, o
sociólogo fechasse os cinco dedos da mão sobre o cabo da faca que corta
impiedosamente verbas da esfera social.
Aquiles, contudo, não perdeu o calcanhar por ter um corpo invulnerável. As
novas administrações terão que fazer jus à rebelião ética, evitando o menor
indício de nepotismo, favorecimentos ou acordos por baixo do pano.
Um ponto nevrálgico da política brasileira urge ser atacado pelo PT: os
fundos de campanha. Há políticos e políticas reféns de bancos, empresas e
empreiteiras. Mesmo para o PT a síndrome de Robin Hood tem limites. Em
geral, quem financia leva a melhor, o que sujeita a democracia ao poder
econômico. A legislação eleitoral precisa ser reformulada para que a isonomia
de campanha seja assegurada e controlada com transparência.
Se nos próximos dois anos as novas administrações não demonstrarem coerência
com as promessas de palanque, darão aos adversários, na eleição de 2002, os
trunfos da incompetência capazes de assegurar o continuísmo dessa malânica
política econômica, que beneficia os credores internacionais e promove a
exclusão interna. Só o empenho na reforma tributária poderá reverter a
aberração desse modelo que concentra a renda em mãos do governo federal e
descentraliza os serviços pelos municípios.
Novos prefeitos, nova equipe de governo, sobretudo em funções vitais. É
ingenuidade manter em cargos de confiança quem não se afina politicamente com
o novo projeto. Nesse sentido, a tradição da Ordem Dominicana é um exemplo de
democracia, há 800 anos: findo o mandato de um superior, estão
compulsoriamente demitidos todos os nomeados em sua gestão.
A melhor crítica à política neoliberal adotada pelo governo federal - via
privatizações irresponsáveis que, hoje, penalizam a população, como as
telecomunicações - é oferecer serviços eficientes. Pouco adiantam as boas
intenções se a prefeitura não é capaz de presteza e qualidade em serviços de
saúde e saneamento, de tapar um buraco de rua ou de assegurar vaga nas
escolas e transporte para a população carente.
Não basta que a mídia funcione como ombudsman das administrações municipais.
Em geral, quem está no poder só tem ouvidos para elogios. Qualquer crítica
soa como intriga da oposição. Bom seria contar com uma equipe de ombudsmen,
de analistas políticos a lideranças populares, para abrir os olhos e ferir os
ouvidos de quem corre o risco de fazer da política um jogo narcísico.
O PT inovou a administração pública ao implantar programas como o orçamento
participativo, a bolsa-escola, o banco do povo, o médico de família, a renda
mínima etc. Mas corre o risco de paternalizar ou excluir os movimentos
populares, transformá-los em correias-de-transmissão ou esvaziá-los. Quem
nasceu para "organizar a classe trabalhadora" deve, agora, respeitar a
autonomia e estimular o fortalecimento das organizações dos excluídos, como o
MST.
Se não quiser repetir a via dos antigos partidos de esquerda da Europa,
cooptados pela social-democracia, o PT não pode negar suas origens, nem
esquecer o que falou e escreveu. Sua razão de ser não reside senão no
compromisso com aqueles que lhe deram origem e sustentação: os pobres.
Para esses, que são multidão no Brasil, só haverá futuro, fora da morte
precoce, se houver partilha dos bens da terra e dos frutos do trabalho
humano. Bem fez Marta Suplicy ao reafirmar o socialismo moderno em seu
discurso de vitória. Sem esse horizonte o PT perde o seu rumo e o seu prumo.
Da coesão programática e ideológica do PT, fundada na coerência ética,
dependerá sua possibilidade de se tornar alternativa de governo em 2002. O
Brasil merece perder o título de campeão mundial de desigualdade social.
Frei Betto
São Paulo
O PT elegeu 187 prefeitos e 2.485 vereadores em todo o Brasil. Não é só uma
vitória. É, sobretudo, uma responsabilidade. O resultado confirma a avaliação
positiva, por parte dos eleitores, do "modo petista de governar", consagrado
em municípios como Porto Alegre, Ribeirão Preto e Santo André.
Houve uma rebelião ética do eleitorado. A imunidade e a impunidade de tantos
políticos corruptos, somadas à malversação do dinheiro público, levaram parte
do eleitorado a demonstrar que tem vergonha na cara. Acresce-se a isso a
decepção com o governo FHC. Nem a oposição esperava que, na presidência, o
sociólogo fechasse os cinco dedos da mão sobre o cabo da faca que corta
impiedosamente verbas da esfera social.
Aquiles, contudo, não perdeu o calcanhar por ter um corpo invulnerável. As
novas administrações terão que fazer jus à rebelião ética, evitando o menor
indício de nepotismo, favorecimentos ou acordos por baixo do pano.
Um ponto nevrálgico da política brasileira urge ser atacado pelo PT: os
fundos de campanha. Há políticos e políticas reféns de bancos, empresas e
empreiteiras. Mesmo para o PT a síndrome de Robin Hood tem limites. Em
geral, quem financia leva a melhor, o que sujeita a democracia ao poder
econômico. A legislação eleitoral precisa ser reformulada para que a isonomia
de campanha seja assegurada e controlada com transparência.
Se nos próximos dois anos as novas administrações não demonstrarem coerência
com as promessas de palanque, darão aos adversários, na eleição de 2002, os
trunfos da incompetência capazes de assegurar o continuísmo dessa malânica
política econômica, que beneficia os credores internacionais e promove a
exclusão interna. Só o empenho na reforma tributária poderá reverter a
aberração desse modelo que concentra a renda em mãos do governo federal e
descentraliza os serviços pelos municípios.
Novos prefeitos, nova equipe de governo, sobretudo em funções vitais. É
ingenuidade manter em cargos de confiança quem não se afina politicamente com
o novo projeto. Nesse sentido, a tradição da Ordem Dominicana é um exemplo de
democracia, há 800 anos: findo o mandato de um superior, estão
compulsoriamente demitidos todos os nomeados em sua gestão.
A melhor crítica à política neoliberal adotada pelo governo federal - via
privatizações irresponsáveis que, hoje, penalizam a população, como as
telecomunicações - é oferecer serviços eficientes. Pouco adiantam as boas
intenções se a prefeitura não é capaz de presteza e qualidade em serviços de
saúde e saneamento, de tapar um buraco de rua ou de assegurar vaga nas
escolas e transporte para a população carente.
Não basta que a mídia funcione como ombudsman das administrações municipais.
Em geral, quem está no poder só tem ouvidos para elogios. Qualquer crítica
soa como intriga da oposição. Bom seria contar com uma equipe de ombudsmen,
de analistas políticos a lideranças populares, para abrir os olhos e ferir os
ouvidos de quem corre o risco de fazer da política um jogo narcísico.
O PT inovou a administração pública ao implantar programas como o orçamento
participativo, a bolsa-escola, o banco do povo, o médico de família, a renda
mínima etc. Mas corre o risco de paternalizar ou excluir os movimentos
populares, transformá-los em correias-de-transmissão ou esvaziá-los. Quem
nasceu para "organizar a classe trabalhadora" deve, agora, respeitar a
autonomia e estimular o fortalecimento das organizações dos excluídos, como o
MST.
Se não quiser repetir a via dos antigos partidos de esquerda da Europa,
cooptados pela social-democracia, o PT não pode negar suas origens, nem
esquecer o que falou e escreveu. Sua razão de ser não reside senão no
compromisso com aqueles que lhe deram origem e sustentação: os pobres.
Para esses, que são multidão no Brasil, só haverá futuro, fora da morte
precoce, se houver partilha dos bens da terra e dos frutos do trabalho
humano. Bem fez Marta Suplicy ao reafirmar o socialismo moderno em seu
discurso de vitória. Sem esse horizonte o PT perde o seu rumo e o seu prumo.
Da coesão programática e ideológica do PT, fundada na coerência ética,
dependerá sua possibilidade de se tornar alternativa de governo em 2002. O
Brasil merece perder o título de campeão mundial de desigualdade social.
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