Cartas ácidas

08/08/2005
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Machado neles: a solução da crise Não virei um sanguinário adepto da pena de morte para solucionar a crise política do PT, do governo, do Congresso e da nação. Só aconteceu que eu tive uma súbita iluminação. E ela ocorreu numa aula inaugural sobre Machado de Assis. Calma, leitora ou leitor: não virei um sanguinário adepto da pena de morte para solucionar a crise política do PT, do governo, do Congresso e da nação. Só aconteceu que eu tive uma súbita iluminação: entendi a natureza da crise! De repente, não mais que de repente, as peças do quebra-cabeça se juntaram na minha frente, e num flash fulminante, a crise se desenhou esclarecida, para mim, impudica, no esplendor de sua nudez ao mesmo tempo fascinante e aterradora. Ocorre que eu estava dando a aula inaugural de meu curso nas Letras, para este semestre. E a aula era sobre Machado de Assis. Assim, vi-me diante do paradoxo, e fui obrigado a mencioná-lo para alunas e alunos, de ter um estalo digno de Vieira numa fala sobre Machado. Mas vamos ao caso, antes que me perca, como gosto e prefiro, em elucubrações sobre os séculos XIX e XVII. Em primeiro lugar, desenhemos o enigma. Estou falando da crise política, não dos fatos penais. Portanto, o mistério que se desenha não é o de saber se Dirceu sabia ou não sabia o que suas Marílias e Marílios estavam fazendo com o erário público. Ou qual o tamanho da verdade de Roberto Jefferson, ou a natureza de seus "instintos primitivos" em relação a José Dirceu. Ou ainda qual o tamanho da metástase petista quanto aos saques nas contas administradas por Valério. Ou até onde irá a broca ou a talhadeira se investigar o envolvimento do PSDB com as mesmas contas. Nem mesmo se Lula sabia ou não sabia dos tubarões que nadavam na sua vizinhança. Muito menos discutir, como já se fez na CPMI dos Correios, se chimarrão é melhor do que água de coco, ou vice-versa, logo eu que aprecio um e outra. Não, o meu tema não é este. Os temas, que são passíveis de serem examinados perante o Código Civil ou o Penal, são da competência de quem deve velar por eles, a PF, o Ministério da Justiça, o Público, a CPIs, etc. O meu tema é o de que há um espetáculo político em curso, com tomadas de depoimentos, discursos e contra-discursos ameaçadores, acareações, enfrentamentos, e esse espetáculo é que é a ponta do iceberg da crise. Afinal, o que está acontecendo ali, na arena política, o que significam todos aqueles gestos, os depoimentos que não depõem, os esclarecimentos que não esclarecem, as perguntas que não perguntam, as respostas que não respondem, deixando tudo por conta das ilações e conclusões a que se possa chegar. Porque me parece que no espetáculo todo, à parte o relator Osmar Serraglio, muito pouca gente me parece de fato interessada em investigar. As pessoas que comparecem, na maioria, estão mais interessadas em acusar, em condenar, em criminalizar ou inocentar rapidamente A, B, ou C, em se safar, em se vingar, etc . Porque a investigação, se feita, chegará às raízes e à natureza do crime, que é o da despudorada privatização da coisa e do espaço públicos, que caracteriza, ainda e sempre, a vida política brasileira. E isso, ali, não interessa, de fato, a quase ninguém, nem aos acusadores de hoje, que podem ser réus ao se investigar o passado governo, nem aos réus de hoje, a ala petista que enxovalhou a memória do partido, e que já estiveram entre os acusadores de ontem. E lá dava eu minha aula sobre Machado de Assis. Falava da tese que sustento, de que boa parte do encanto fascinante e aterrador que certos romances e contos guardam, vem do seu peculiar estilo confessional, como em Memórias póstumas de Brás Cubas ou Dom Casmurro. Nesta confissão não há sentido devoto, de contrição para se conseguir o perdão. Nem Brás Cubas, o autor defunto ou defunto autor do primeiro romance, nem Bentinho, o autor do segundo, se arrependem do que tenham feito. Nem admitem que tenham cometido qualquer falta. O que se passa ali é uma confissão inter pares, feita supostamente (porque ficção) para seus semelhantes, e o crime de fato não é confessado, mas fica subentendido, porque os seus autores, aqueles personagens, não reconhecem a natureza criminosa do crime cometido. O expositor do crime é, por detrás, o olhar irônico do verdadeiro autor, Machado, que faz com que os personagens narrem mais do que aquilo que, aparentemente, desejam narrar. Eles querem "se explicar"; a ironia de Machado os acusa sem piedade. O crime de Brás Cubas não é apenas o de trair o melhor amigo com sua mulher; nem o de Bentinho é apenas o de suspeitar da mulher e condená-la de antemão ao degredo moral e ao esquecimento. O crime de ambos, prévio a tudo, é serem quem são, é sua própria existência, como florilégios da insossa, vaidosa e escravista oligarquia brasileira. Machado foi fundo nisso, mais do que ninguém no século XIX. A confissão, se completa, torna-se um testemunho, isto é, passa a pertencer inteiramente à esfera pública. Mas aquela confissão truncada dos personagens de Machado, que nunca adentram pela natureza dos atos cometidos, fica a meio caminho. Quem assim procede não desvenda de todo qualquer fato. Ao contrário, faz cúmplices. O suposto ouvinte perde a inocência, e deve aceitar, sem questionamento, os atos cometidos como normais, até mesmo como normas informais de ação e procedimento. É isto que o autor Machado compreende e parodia: a cultura da classe dirigente brasileira é permanentemente (in)formada por uma duplicidade ética: a da fachada, para o povo ver e ouvir, e a real, cruel e desmedida, mas que serve para se manter no poder e para negociar em nome do país com os imperialismos de plantão. Muito do melhor da literatura brasileira, além daquelas obras de Machado de Assis, está prenhe de textos confessionais ancorados na percepção dessa duplicidade estrutural, ainda que falem de pontos de vista ideológicos completamente diferentes. Lembremos, só de passagem, de Lucíola, de Alencar, de São Bernardo, de Graciliano Ramos, de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, de boa parte de O arquipélago, de Erico Verissimo. Por quê? Porque essa situação confessional peculiar dos narradores, cuja palavra fica a meias entre o privado e o público, se apóia na natureza patrimonialista, completamente entregue aos interesses privados, do espaço público da vida brasileira. Este é o crime inconfessável que as auto-chamadas "elites" brasileiras perpetram continuamente, e que é a raiz e a fronteira do nosso círculo político e que no plano literário a confissão, que não confessa inteiramente, denuncia. Voltemos ao presente espetáculo político. No meio desta explicação sobre o estilo e a forma de Machado, é que se encaixaram de repente aquelas cenas contínuas de, repito, perguntas que não perguntam, mas só incriminam de antemão, e respostas que não respondem, mas só buscam o auto-perdão, uma espécie de "livramento condicional" perante uma opinião pública nunca satisfeita, por mais que assista a TV da manhã à noite. Foi assim que aquele enfrentamento inter pares, onde todos são testemunhas e réus ao mesmo tempo, onde todos, inclusive os atuais acusadores, se desculpam de antemão perante o público mas jamais se explicam, revelou para mim sua natureza oculta. Por trás da busca das incriminações e desculpas que poderão levar à cassação ou ao perdão de alguns mandatos, se passava um ritual macabro de reconhecimento, de afinação das linguagens. Os acusadores de hoje dizem que no passado não cometeram crimes, ou se cometeram, foram "leves", foram "apenas um caixa dois", foram "problemas de financiamento eleitoral". Já os acusados de hoje passam continuamente a idéia (por alguns admitida, como no caso do Deputado João Magno) de que "nada fizeram demais", porque "fizeram o que todo mundo faz". E "o quê", exatamente, "todo mundo faz?". Qual é o crime inconfessável, o confessado que não se confessa, mas transparece como o normal, a norma implícita? É o desossamento da República, a fraude contínua de sua natureza pública. Foi neste jogo que esta ala petista entrou, baseada a começo numa concepção errônea do enfrentamento político, depois enredada nos liames da corrupção endêmica que privatiza continuamente o espaço público brasileiro. Foi assim que se abriu espaço para o oportunismo das contas escusas e para a mistura indesejável com as "más companhias externas e internas", na feliz expressão do ex-ministro Olívio Dutra. Os acusados, todos eles, parecem mesmo não entender a natureza desse crime político. Nem Delúbio, nem Pereira, nem Sereno, nem mesmo José Dirceu, nem mesmo os deputados que receberam, sabendo ou não sabendo, perguntando ou não perguntando, as contribuições das contas de Marco Valério deram sinais até agora de entenderem que o crime cometido, para além de eventuais apropriações indevidas, foi o de terem aberto espaço para que se inviabilize a esquerda pelo menos por uma geração neste país e na América Latina. Por isso se sentem injustamente atingidos. Os acusadores também não entendem a natureza do que investigam, porque fazem parte histórica do crime: a contínua destruição do espaço republicano. Os acusadores se comportam como vigilantes do peso que flagraram os acusados metendo a mão no pote dos doces. Mas nem por sonhos passa pela maioria de suas cabeças quebrar o tal do pote ; visivelmente, pelo afã discursivo e incriminatório, que vai em detrimento da real investigação, o que querem é de novo se apossarem dele. Há ali por certo, uma luta política; mas há sob isso um rito algo satânico de reconhecimento, de recepção do PT por seus iguais, porque o partido afinal se fez igual a esses "iguais". Não por acaso, o corifeu dessa "recepção", desse "reconhecimento", é um expert na matéria, o Deputado Roberto Jefferson. Não se pode dizer que o PT inteiro entrou nesse jogo, muito longe disso; mas sua bandeira ficou melada pelos doces subtraídos ao pote e o partido, como um todo, é o peru prisioneiro do círculo de giz. A única maneira de sair do círculo de giz é deixar de se imaginar um peru, e saltar fora dele. Mas saltar fora dele não é apenas demitir este ou aquele membro da direção, substituir tal ou qual mandante. É romper com a concepção política que levou o partido por inteiro à essa posição, a essa colaboração oligárquica, contrária à sua história e memória, de desossar a vida republicana. Essa concepção, consagrada na hegemonia do chamado Campo Majoritário na direção do partido, não é, no entanto, fruto apenas dele. É a concepção que não só objetiva o poder pelo poder, mas que perdeu a comunicação com a paisagem de classes da vida brasileira, dos interesses e disputas que estão em jogo e que se exprimem nos confrontos partidários, mas não se resumem a eles. É necessário re-ancorar o partido como um todo entre os movimentos sociais. Para isso seria necessário eleger, proximamente, uma direção que tenha e exponha a dimensão da crise e do problema, que é de tamanho continental e secular, e que não se comporte apenas como mais uma facção que substitui outra, pois isto impedirá, mesmo que a nova direção tenha um discurso mais "classista", a re-identificação do Partido dos Trabalhadores com a amplitude dos trabalhadores brasileiros e com os setores que lhes sejam conexos. Ou seja, o Partido dos Trabalhadores precisa se re-identificar com o povo brasileiro, não com o seqüestro permanente que se pratica, nos espaços políticos institucionais, da soberania popular, e que é o crime inconfessável de que a concepção dominante no Partido levou-o a se tornar cúmplice. "O povo" é uma coisa muito complicada. O povo é assustador. Por quê? Porque "o povo" é inquantificável, é imensurável, e quando se faz presença, não há força oposta que o contenha. O povo é da praça, como o condor é do céu. O povo aparece em momentos sublimes, ou aterradores. O povo apavora a direita, para quem ele deveria dormitar para sempre no porão, sedado ou contido por grilhões, mesmo que imaginários. O povo assusta até a esquerda, que muitas vezes e em algumas tendências confunde "o povo" com uma constelação de idéias que ela vê no céu e em cujo nome fala. O problema do povo, diz um amigo meu, é que ele é muito popular. É isso, e não a pessoa do presidente Lula, que a nossa tal de "elite", não quer nem ver na arena política, muito menos engolir. O problema da frase do presidente Lula, que tanto horror despertou em políticos, analistas e jornalistas alinhados à direita, de que "teriam que engoli-lo com ódio ou sem ódio", não era propriamente ele "em si", mas o que representa nem que seja virtualmente, e também a quem a frase se dirigia: o povão, o povaréu, o povo. Política é coisa para sábios, dizem os muito sabidos, traduzindo o sentimento de que ela deve ficar restrita ao círculo de giz das instituições republicanas que não são, na verdade, republicanas, mas espelho do estro oligárquico que anima continuamente o universo cultural das nossas classes dirigentes. Esse universo pode muito bem engolir o presidente Lula, e sair palitando os dentes, feliz da vida. Aliás, este é um risco próximo: pois, no frigir da crise, pode muito bem se criar uma situação onde o partido, recuperado, se isto possível for, vá mais para a esquerda, embora diminua o tamanho de sua representação, enquanto o governo Lula, daqui até o fim do mandato, e mesmo reeleito, vá na verdade mais para a direita. E seja engolido de vez pela cultura oligárquica, de ver a política numa ótica apenas bi-dimensional de vida parlamentar, em que o Partido dos Trabalhadores terminou atolado pelas concepções nele dominantes. - Flávio Aguiar é professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo (USP) e editor da TV Carta Maior.
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