Impasses dos governos progressistas
17/10/2014
- Opinión
Na América Latina predominam, hoje, em meados da segunda década do século XXI, governos democráticos populares. A maioria foi eleita por forças de esquerda. Dos chefes de Estado, cinco atuaram como guerrilheiros sob ditaduras: Dilma Rousseff, do Brasil; Raúl Castro, de Cuba; José Mujica, do Uruguai; Daniel Ortega, da Nicarágua; e Salvador Sánchez, de El Salvador.
Ora, ser de esquerda não é uma questão emocional ou mera adesão a conceitos formulados por Marx, Lênin ou Trotsky. É uma opção ética, com fundamento racional. Opção que visa a favorecer, em primeiro lugar, os marginalizados e excluídos. Portanto, ninguém é de esquerda por se declarar como tal ou por encher a boca de chavões ideológicos, e sim pela práxis que desempenha em relação aos segmentos mais empobrecidos da população.
Na América Latina, os chamados governos democráticos populares reúnem concepções diversas, e perseguem, em tese, projetos de sociedades alternativas ao capitalismo. Transitam contraditoriamente entre políticas públicas voltadas aos segmentos de baixa renda e o sistema capitalista global, regido pelas “mãos invisíveis” do mercado.
Os governos democráticos populares têm produzido, de fato, importantes mudanças para melhorar a qualidade de vida de amplos segmentos sociais. Hoje, 54% da população latino-americana vivem em países governados por governos progressistas. Eis um fato inédito na história do Continente. Os outros 46%, cerca de 259 milhões de pessoas, vivem sob governos de direita, aliados aos EUA e indiferentes ao agravamento da desigualdade social e da violência. Segundo Bernt Aasen, diretor regional do UNICEF para América Latina e Caribe, entre 2003 e 2011, mais de 70 milhões de pessoas saíram da pobreza no Continente; a taxa de mortalidade de crianças menores de 5 anos foi reduzida em 69% entre 1990 e 2013; a desnutrição crônica entre crianças de 6 meses a 5 anos diminuiu de 12,5 milhões, em 1990, para 6,3 milhões, em 2011; as matrículas no ensino fundamental subiram de 87,6%, em 1991, para 95,3%, em 2011. No entanto, acrescenta ele, “a nossa região continua a ser a mais desigual do mundo, onde 82 milhões de pessoas vivem com menos de US$ 2,50 por dia; 21,8 milhões de crianças e adolescentes estão fora da escola ou em risco de abandoná-la; 4 milhões não foram registradas ao nascer e, portanto, não existem oficialmente. (…) E 564 crianças menores de 5 anos morrem diariamente de causas evitáveis” (Cf. O Globo, 05/10/2014, p. 19).
Do ponto de vista histórico, é a primeira vez que tantos governos do Continente mantêm distância dos ditames da Casa Branca. E é também a primeira vez que se criam instituições de articulações continentais e regionais (ALBA, CELAC, UNASUR etc.) sem a presença dos EUA. Isso configura uma redução da influência imperialista na América Latina, entendida como predomínio de um Estado sobre o outro.
No entanto, outra forma de imperialismo predomina na América Latina: o domínio do capital financeiro, voltado à reprodução e concentração do grande capital, que se apoia no poder de seus países de origem para promover, desde os países-hospedeiros, exportação de capital, mercadorias e tecnologias, e apropriar-se das riquezas naturais e da mais-valia.
Houve um deslocamento da submissão política à submissão econômica. A força de penetração e obtenção de lucros do grande capital não se reduziu com os governos progressistas, apesar de medidas regulatórias e impostos adotados por alguns desses países. Se, de um lado, se avança na implantação de políticas públicas favoráveis aos mais pobres, por outro não se reduz o poder de expansão do grande capital.
Outra diferença entre os governos democráticos populares é que uns ousaram promover mudanças constitucionais, enquanto outros permanecem nos marcos institucionais e constitucionais dos governos neoliberais que os precederam, embora se empenhando em conquistas sociais significativas, como a redução da miséria e da desigualdade social.
As forças de esquerda da América Latina seguem centrando seu foco na ocupação do aparelho de Estado. Lutam para que os segmentos marginalizados e excluídos se incorporem aos marcos regulatórios da cidadania (indígenas, sem-terra, sem-teto, mulheres, catadores de material reciclável etc.). Governos e movimentos sociais se unem, sobretudo em períodos eleitorais, para conter as violentas reações da classe dominante alijada do aparato estatal.
No entanto, é esta classe dominante que mantém o poder econômico. E por mais que os ocupantes do poder político implementem medidas favoráveis aos mais pobres, há uma pedra intransponível no caminho: todo modelo econômico exige um determinado modelo político condizente com seus interesses. A autonomia da esfera política em relação à econômica é sempre limitada.
Essa limitação impõe aos governos democráticos populares um arco de alianças políticas, muitas vezes espúrias, e com os setores que, dentro do país, representam o grande capital nacional e internacional, que corrói os princípios e os objetivos das forças de esquerda no poder. E o que é mais grave: essa esquerda não logra reduzir a hegemonia ideológica da direita, que exerce amplo controle sobre a mídia e o sistema simbólico da cultura predominante.
Enquanto os governos democráticos populares se sentem permanentemente acuados pelas ofensivas desestabilizadoras da direita, acusando-a de tentativa de golpe, esta se sente segura por estar respaldada pela grande mídia nacional e global, e pela incapacidade de a esquerda criar mídias alternativas suficientemente atrativas para conquistar corações e mentes da opinião pública.
O modelo econômico predominante, gerenciado pelo grande capital e adotado pelos governos progressistas, visa a aproveitar as vantagens da “globalização” para exportar commodities e riquezas naturais, a fim de fazer caixa para financiar, através de políticas públicas, o consumo dos segmentos excluídos pela dívida social. Ainda que adotem uma retórica progressista, os governos democráticos populares não logram prescindir do capital transnacional que lhes assegura suporte financeiro, novas tecnologias e acesso aos mercados. E, para isso, o Estado deve participar como forte investidor dos interesses do capital privado, seja pela facilitação de créditos, seja pela desoneração de tributos e adoção de parcerias público-privadas. Este é o modelo de desenvolvimento pós-neoliberal predominante hoje na América Latina.
Esse processo exportador-extorsivo inclui recursos energéticos, hídricos, minerais e agropecuários, com progressiva devastação da biodiversidade e do equilíbrio ambiental, e a entrega da terra aos monocultivos anabolizados por agrotóxicos e transgênicos. O Estado investe em ampla construção de infraestrutura para favorecer o escoamento de bens naturais mercantilizados, cujo faturamento em divisas estrangeiras raramente retorna ao país. Uma grande parcela dessa fortuna se aloja em paraísos fiscais.
Eis a contradição desse modelo neodesenvolvimentista que, no frigir dos ovos, anula as diferenças estruturais entre os governos de esquerda e de direita. Pois adotar tal modelo é aceitar tacitamente a hegemonia capitalista, ainda que sob o pretexto de mudanças “graduais”, “realismo” ou “humanização” do capitalismo. De fato, é mera retórica de quem se rende ao modelo capitalista.
Se os governos democráticos populares pretendem reduzir o poder do grande capital, não há outra via senão a intensa mobilização dos movimentos sociais, uma vez que, na atual conjuntura, a via revolucionária está descartada e, aliás, só interessaria a dois setores: extrema-direita e fabricantes de armas.
Porém, se o que se pretende é assegurar o desempenho do grande capital, então os governos progressistas terão que se adequar para, cada vez mais, cooptar, controlar ou criminalizar e reprimir os movimentos sociais. Toda tentativa de equilíbrio entre os dois polos é, de fato, contrair núpcias com o capital e, ao mesmo tempo, flertar com os movimentos sociais no intento de apenas seduzi-los e neutralizá-los.
Como os governos democráticos populares tratam os segmentos da população beneficiados pelas políticas sociais? É inegável que o nível de exclusão e miséria causado pelo neoliberalismo exige medidas urgentes que não fogem ao mero assistencialismo. Porém, tal assistencialismo se restringe ao acesso a benefícios pessoais (bônus financeiro, escola, atendimento médico, crédito facilitado, desoneração de produtos básicos etc.), sem que haja complementação com processos pedagógicos de formação e organização políticas. Criam-se, assim, redutos eleitorais, sem adesão a um projeto político alternativo ao capitalismo. Dão-se benefícios sem suscitar esperança. Promove-se o acesso ao consumo, sem propiciar o surgimento de novos protagonistas sociais e políticos. E o que é mais grave: sem perceber que, no bojo do atual sistema consumista, cujas mercadorias recicláveis estão impregnadas de fetiche que valorizam o consumidor e não o cidadão, o capitalismo pós-neoliberal introduz “valores” - como a competitividade e a mercantilização de todos os aspectos da vida e da natureza -, reforçando o individualismo e o conservadorismo.
O símbolo dessa modalidade pós-neoliberal de consumismo é o telefone celular. Ele traz em seu bojo a falsa ideia de democratização pelo consumo e de incorporação à classe média. Assim, segmentos excluídos se sentem menos ameaçados quando acreditam que está ao alcance deles, mais facilmente, atualizar o modelo do celular do que obter saneamento onde moram. O celular é a senha para se sentir incluído no mercado... E sabemos todos que as formas de existência social condicionam o nível de consciência. Ou, em outras palavras, a cabeça pensa onde os pés pisam (ou imaginam que pisam).
Nossos governos progressistas, em suas múltiplas contradições, criticam o capitalismo financeiro e, ao mesmo tempo, promovem a bancarização dos segmentos mais pobres, através de cartões de acesso ao benefício monetário, a pensões e salários, e da facilidade de crédito, apesar da dificuldade de se arcar com os juros e a quitação das dívidas.
Em suma, o modelo neodesenvolvimentista monitorado pela esquerda se empenha em fazer da América Latina um oásis de estabilidade do capitalismo em crise. E não consegue fugir da equação que associa qualidade de vida e crescimento econômico segundo a lógica do capital. Enquanto não se socializa culturalmente a proposta indígena do bem viver, para a grande maioria viver bem será sempre sinônimo de viver melhor em termos materiais.
O grande perigo em tudo isso é fortalecer, no imaginário social, a ideia de que o capitalismo é perene (“A história acabou”, proclamou Francis Fukuyama), e que sem ele não pode haver processo verdadeiramente democrático e civilizatório. O que significa demonizar e excluir, ainda que pela força, todos que não aceitam essa “obviedade”, então considerados terroristas, inimigos da democracia, subversivos ou fundamentalistas.
Essa lógica é reforçada quando, em campanhas eleitorais, os candidatos de esquerda acenam, enfaticamente, com a confiança do mercado, a atração de investimentos estrangeiros, a garantia de que os empresários e banqueiros terão maiores ganhos etc.
Por um século a lógica da esquerda latino-americana jamais se deparou com a ideia de superar o capitalismo por etapas. Este é um dado novo, que exige muita análise para se implementar políticas que impeçam que os atuais processos democráticos populares sejam revertidos pelo grande capital e por seus representantes políticos de direita.
Este desafio não pode depender apenas dos governos. Ele se estende aos movimentos sociais e aos partidos progressistas que, o quanto antes, precisam atuar como “intelectuais orgânicos”, socializando o debate sobre avanços e contradições, dificuldades e propostas, de modo a alargar sempre mais o imaginário centrado na libertação do povo e na conquista de um modelo de sociedade pós-capitalista verdadeiramente emancipatório.
- Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros. Este artigo foi originalmente publicado no Le Monde Diplomatique de outubro de 2014.
http://www.freibetto.org/> twitter:@freibetto.
https://www.alainet.org/pt/active/78116?language=es
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