Conforme for, vou de Bergoglio

03/09/2014
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14.09.02_Marina Silva3
“Diga aos rapazes que não volto mais hoje.”
Bill Godkin, jornalista, ao se aposentar, na abertura do
romance O senhor embaixador, de Erico Verissimo.
 
A “direita móvel” brasileira vive uma situação privilegiada hoje em relação a seus sonhos de recuperar o controle do Banco Central, dos ministérios da área econômica e até mesmo da questão energética.
 
Por “direita móvel” entendo a de vocação privilegiadamente rentista, que já desfrutou da era FHC, apoiou entusiasticamente Serra por duas vezes e Alckmin por uma, já se entusiasmou com Aécio e agora não esconde sua animação com Marina.
 
Ela se opõe – mas de maneira complementar – à “direita imóvel”, cristalizada nos saudosos da ditadura militar, na bancada ruralista, nos setores mais retrógrados da Igreja Católica e nas vozes mais duras dos pastores evangélicos. Para esta, qualquer coisa que não seja Jair Bolsonaro, Ronaldo Caiado, que não cheire a mofo e água benta ou ao enxofre do Inferno é intragável.
 
Houve tempo – na eleição de Collor de Mello – em que as duas direitas, a “móvel” e a “imóvel”, navegaram juntas na mesma canoa. Mas não nos iludamos: hoje, se navegam em canoas diferentes, acompanham o mesmo fluxo torrencial da negação da soberania popular como base da nacional. E negam esta em nome da integração subalterna nos mercados internacionais.
 
Mas para a “direita móvel” nada é intragável, tudo é deglutível – exceto o que chama de “intervencionismo do Estado”, o que, traduzindo para o vernáculo, significa intervenção de governos em detrimento das políticas rentistas e em aumento da função social do Estado. Todo mundo sabe que a função primordial do Estado na ordem que emergiu da Segunda Revolução Industrial e das crises de 29 e da Segunda Guerra era a de garantir direitos e administrar privilégios.
 
O triunfo do neoliberalismo, a débâcle dos regimes comunistas e a rendição da socialdemocracia europeia inverteram a equação: a função do Estado (impropriamente chamado de “mínimo”) passou a ser garantir privilégios e administrar (contendo) direitos. Qualquer ameaça de retorno à ordem anterior – coisa que aconteceu quando da inclinação de vários governos na América Latina à esquerda – é vista como intolerável, necessitando imediata desqualificação na mídia de cabresto, além de sabotada nos planos econômico e político, sempre que possível.
 
Pois agora esta “direita móvel” tem um cenário muito positivo, podendo acariciar ao mesmo tempo o bezerro de ouro das Alterosas e a menina dos olhos d’água florestais, ambos ungidos (um de largo tempo, a outra de bênção mais recente) missionários da intransigência, opacidade e cruzada dos mercados financeiros. O menino das Alterosas acusa, e com grande dose de razão, a nossa Ártemis da floresta de ter plagiado o programa histórico do seu partido. Bem, não foi propriamente ela que plagiou, mas seus mentores, que eram os mesmos do candidato antecessor, desaparecido em trágico acidente. Ela, que vez ou outra deixa escapar um ar de quem se acha ungida pela mão do Senhor, também foi ungida pelo dedo do mercado financeiro.
 
Para completar também foi ungida pela voz da intolerância, ao recuar na questão do “casamento gay”, expressão que passou a ter, mutatis mutandis, o mesmo peso do que a de “matar criancinhas através do aborto”, usada na eleição presidencial anterior.
 
A eleição de uma candidatura ou da outra que aqui estão em tela significará uma degradação do Brasil na escala biológica das nações. Voltaremos a ser o país em que a desigualdade cresce, com loas de que isto é desejável para diminuir o “custo Brasil”, ao invés de decrescer. Voltaremos a ser aliados de segunda mão do que existe de mais recessivo e depressivo no mundo de hoje: a incerteza norte-americana, o patinar japonês e a “austeridade” europeia. Em troca, ganharemos medalhas de plástico de Wall Street, da City londrina e do Consenso de Bruxelas/Frankfurt/Berlim, que substituiu o de Washington, distribuídos à farta pela mídia arauta dos seus valores.
 
Como atualmente os ventos pesquisados sopram mais na direção da missionária do que do político mineiro, em quem as carícias de afago passaram a ser de consolo, já tomei minha decisão. Caso o roteiro confirme o cenário aqui esboçado, vou pedir asilo ao Vaticano. Prefiro acompanhar o esforço de Bergoglio para limpar as cavalariças fétidas do Banco do Vaticano, e sua luta contra a pedofilia eclesiástica, do que fazer meu sombrero dar barretadas à orgia dos rentistas no tal de “Banco Central Independente”, num governo que terá de quebra o pastor Silas Malafaia como Condestável da República, dizendo o que a Presidenta poderá ou não dizer, e talvez o pastor Marco Feliciano como Presidente de Honra da Comissão de Direitos Humanos. Jair Bolsonaro na Comissão da Verdade?
 
Tudo é possível neste mundo de Deus.
 
Vade retro.
 
***
 
Flávio Aguiar  reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.  Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
 
04/09/2014
 
https://www.alainet.org/pt/active/76797?language=es
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