Uma Constituinte exclusiva e soberana para reformar o sistema político é juridicamente possível?

01/09/2014
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Durante esta semana, compreendida entre os dias 1º e 7 de setembro, ocorrerá, em todo o Brasil, o processo de votação do “Plebiscito Popular por uma Constituinte Exclusiva Soberana do Sistema Político”, organizado por diversos movimentos e organizações da sociedade. Como se sabe, a iniciativa decorre de um duplo diagnóstico:
 
1) o Brasil precisa de uma urgente reforma do sistema político, a fim de conferir maior legitimidade e efetividade à nossa democracia, diante da crise do atual modelo representativo;
 
2) o Congresso Nacional não se revela capaz de executar satisfatoriamente tal missão, em decorrência dos bloqueios de diversos tipos de interesses (poder econômico, partidos políticos, os próprios parlamentares etc.) a qualquer forma de transformação estrutural e emancipatória no Brasil. Diante disso, encontra-se em curso esta grande mobilização pela realização de uma Constituinte para reformar o sistema político.
 
Uma das críticas que esta iniciativa tem recebido refere-se à sua impossibilidade jurídica, pois a proposta não se enquadraria dentro das hipóteses e dos limites estabelecidos pelo Art. 60 da Constituição Federal para emenda constitucional – e de fato não se enquadra, de maneira que não seria viável uma reforma política deste tipo empreendida pelo Poder Constituinte Derivado e dentro dos marcos normativos da Constituição.
 
Entretanto, a proposta se refere a uma manifestação do Poder Constituinte Originário, e este reside permanentemente no povo, que pode exercê-lo sempre que entender necessário de forma autônoma e incondicionada. Ocorre que os críticos da proposta também utilizam um argumento de caráter conceitual, de acordo com o qual o Poder Constituinte Originário é, por definição, ilimitado, de maneira que, não poderia haver uma prévia limitação de sua atuação à temática da “reforma do sistema política”.
 
Ora, se tal Poder não pode ser previamente limitado (ou limitado por terceiros), nada impede que ele estabeleça limites para sua própria atuação, ou seja: se o Poder Constituinte Originário “pode tudo” (há controvérsias sobre isto, por exemplo, a compreensão dos direitos humanos como limites materiais ao próprio Poder Constituinte), por que não poderia decidir atuar apenas para reformar o sistema político?
 
Além disso, este Poder do povo não tem como fundamento as normas constitucionais vigentes, mas a legitimidade.
 
Nesse sentido, a ideia de Tercio Sampaio Ferraz Júnior (2001, p. 186 – 190), segundo a qual o ordenamento jurídico é composto tanto por “normas (repertório do sistema”) como por “regras de calibração (estrutura do sistema)”, pode ajudar na reflexão.
 
As “regras de calibração” permitem mudanças no “padrão de funcionamento” do sistema jurídico sem que ele deixe de funcionar, sem que entre em colapso. Essas mudanças ocorrem em situações em que surgem demandas do ambiente (da sociedade) que não são respondidas satisfatoriamente pelo sistema. Uma mudança possível é a do “padrão legalidade” para o “padrão legitimidade” de funcionamento do sistema jurídico.
 
Foi o que ocorreu, no exemplo utilizado pelo autor, no julgamento do Tribunal de Nuremberg, após a segunda Guerra Mundial: “não havia normas superiores de Direito Internacional Penal que, à época, tipificassem o genocídio como crime, sendo aceito o princípio nullum crimen nulla poena sine lege (não há crime nem pena sem lei prévia)”.  Portanto, não havia como responsabilizar adequadamente os criminosos nazistas dentro do “padrão legalidade” de funcionamento do sistema jurídico internacional. Diante disso, mudou-se o funcionamento do sistema penal internacional para “um padrão de legitimidade, regido pelo princípio de exigências fundamentais e vida na sociedade internacional”.
 
Ora, no atual contexto político brasileiro, o que se observa é, justamente, uma demanda da sociedade por uma reforma política de caráter estrutural, mas o sistema jurídico-político (partidos políticos, Congresso Nacional, procedimentos de emendas constitucionais e de produção de leis) não tem se mostrado capaz de responder satisfatoriamente a esta demanda. Ou seja: não se pode esperar uma reforma política estrutural dentro do “padrão legalidade” de funcionamento do sistema jurídico.
 
Entretanto, há muitos elementos da atual “crise da democracia representativa brasileira” (crescimento das abstenções nas eleições, queda da militância partidária voluntária, manifestações de junho de 2013 e seus desdobramentos, falta de autenticidade dos programas partidários, esvaziamento do conteúdo substantivo dos debates eleitorais, domínio do poder econômico sobre os processos político-decisórios, corrupção etc.) que comprometem severamente a capacidade de as instituições políticas, juridicamente reguladas, cumprirem suas funções primordiais (gerar legitimidade, permitir a mediação democrática dos conflitos sociais etc.), não obstante, formalmente, o sistema aparente estar íntegro (eleições periódicas, liberdade de imprensa etc.).
 
Uma Constituinte exclusiva e soberana para reformar o sistema político não seria, pois, possível dentro do funcionamento do sistema jurídico brasileiro operando no “padrão legalidade”, mas perfeitamente viável se calibrado para o “padrão legitimidade”.
 
As questões, portanto, são verificar se há elementos suficientes para justificar a mudança da calibração do sistema para o “padrão legitimidade” e como aferir legitimidade de um projeto como este, ou seja, como demonstrar que há um consenso da sociedade em torno desta proposta.
 
A realização do “Plebiscito Popular” representa um passo fundamental para encontrar as respostas para tais questões e, a partir de seus resultados, outras ações devem ser desenvolvidas.
 
Murilo Gaspardo é professor de Ciência Política e Teoria do Estado da UNESP/Franca e doutor em Direito do Estado pela USP.
 
 
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