Mc Mundo vs Jihad na Copa
27/05/2014
- Opinión
Embora boa parte dos problemas deva ser debitada a governos estaduais e municipais, o governo Dilma, ao longo da preparação da próxima Copa da FIFA, jogou fora uma inédita opor-tunidade de introduzir um novo sentido, menos mercantilista, aos esportes e espetáculos.
Explico. Na já distante década 1960, o pensador francês Guy Debord cunhou a expressão "sociedade do espetáculo" para descrever o capitalismo contemporâneo. Numa sucinta explicação, ele sugeriu que o fetichismo da mercadoria chegara a tal ponto que a mercadoria se dissol-vera na sua própria imagem. O capital já não produzia e vendia, nem as pessoas consumiam, "coisas" enquanto "coisas", mas "coisas" enquanto imagens ou símbolos das próprias relações entre as pessoas na sociedade mercantil alienada. De relações entre "coisas", a humanidade redu-zira-se a relações entre "imagens". Quando Débord escreveu o que escreveu, Copa do Mundo, Olimpíadas, nem mesmo um show de rock tinham atingido, nem palidamente, as dimensões por-tentosas que atingem hoje. E a tela da televisão, mesmo na Europa, ainda não se tornara esse poder mundial onipresente e onisciente que passou a ser desde os anos 1980.
Quase ninguém deu atenção a Débord. Os economistas nunca quiseram entender a economia do espetáculo. Os políticos e militantes da esquerda, até hoje, desdenham o tema. Não entendem, uns e outros, que o espetáculo – no conceito preciso que lhe deu Débord – está no cerne do funcionamento do capitalismo contemporâneo. O objetivo de uma Copa do Mundo como esta que acontecerá no Brasil, não é premiar o melhor futebol do mundo. O objetivo é vender cerveja, tênis, serviços bancários, automóveis, eletroeletrônicos. É movimentar serviços aéreos, hoteleiros, turísticos. No nosso caso, cerca de R$ 140 bilhões deverão entrar na economia. Muitos outros bilhões entrarão nas contas do Japão, dos Estados Unidos, da Alemanha, da Suíça... É uma dinheirama que gera ou mantém empregos, impostos e, claro, lucros. Hoje em dia, o capita-lismo precisa disso para seguir funcionando. E para isso, emprega o trabalho vivo muito bem pago de atletas, técnicos, outros profissionais, além de, ao mesmo tempo, captar a atenção e emoções de bilhões de pessoas, grudadas nas telinhas e telões, à volta de todo o mundo.
Para essas bilhões de pessoas, Nike é Nike, e assim deve parecer, não importa se se está no Brasil, nos Estados Unidos, no Japão, França, África do Sul, Egito, México ou Austrália. Bu-dweiser é Budweiser, seja bebida onde for bebida, mesmo se, talvez, o gosto em si não seja tão o mesmo, dependendo do lugar. Não importa o líquido, não importa o gosto, importa a marca e o que ela representa. O cientista político estadunidense Benjamin Barber identificou essas bilhões de pessoas ao "McMundo", o mundo do MacDonald, da Coca-Cola, da Apple, da Samsumg, do Starbucks, da C&A, das DineyWorlds, do cinema hollywoodiano, dos shoppingcenters, da língua inglesa; o mundo do consumo, do exibicionismo individualista; o mundo, claro, do automóvel, dos condomínios fechados ou bairros diferenciados; o mundo daqueles que outro estadunidense, Robert Reich, denominou "trabalhadores simbólicos", mas Antonio Negri e seus seguidores ousam chamar "cognitariado". Evidentemente, nesse mundo, poucos são os milionários, mas todos logram, mais ou menos, desfrutar de um padrão de vida quando nada minimamente aceitável, padrão de vida que lhes permite sobretudo gozar das delícias do consumo mediado pelas imagens do espetáculo.
É por demais óbvio que nem toda a população do planeta, inclusive no Brasil, pode inte-grar esse maravilhoso McMundo. Será mais certo dizer que a maioria dele está excluída. A renda familiar miserável será um fator determinante de exclusão.
Fatores culturais também podem contribuir fortemente. O McMundo é não somente construção e expressão da cultura ocidental, mas sobretudo da cultura estadunidense. Nem todo o mundo gosta da cultura estadunidense, sobretudo quando ela arrogantemente se pretende cultura dominante e imperial. O mundo árabe, por exemplo.
Das formas mais extremadas da resistência árabe à dominação do McMundo, Barber cunhou a metáfora que lhe é contrária: "Jihad". Por Jihad, ele não define apenas as manifestações fundamentalistas muçulmanas, mas todo comportamento cultural não só de oposição, mas de negação mesmo do McMundo.
Boa parte dessas manifestações são, de fato, religiosas, são os fundamentalismos de muitos matizes e matrizes: os cristãos pentecostais ou carismáticos, os judeus tradicionalistas, os hinduístas radicais etc. Mas Jihad pode significar também os nacionalismos regionais ou tribais que explodem em boa parte da Europa, na Catalunha, nos Bálcãs, ago-ra na Ucrânia. O que define a Jihad religiosa, étnica, social é a busca de algum grupo por integrar-se em alguma protetora comunidade imaginada que forneça a seus membros um sentimento gregário, um tanto primitivo, que lhes ajude a enfrentar o ameaçador expansionismo do McMundo.
McMundo e Jihad constituem a dialética unidade de contrários do capitalismo espetacular contemporâneo. Um não pode viver sem engendrar o outro e sem disputar com o outro. Não raro, a Jihad está dentro do McMundo como são os muitos casos de separatismos europeus, cujos os agentes sociais, em tudo o mais, levam uma vida que nada os distinguiriam da sociedade do es-petáculo. Veja-se a Catalunha separatista a expressar sua superioridade identitária através de seu bilionário Futbol Club Barcelona. Outras vezes, a Jihad está na sua periferia, mas fazendo uso intensivo de redes ultramodernas de computadores e smartphones nas suas mobilizações, ou até de jatões Boeings para as suas agressões – sem falar, claro, das AK47 e de todo o restante avan-çado arsenal a ela fornecido pelos Estados Unidos, França, Rússia...
O McMundo produz a Jihad objetivamente, ao negar a bilhões de seres humanos os pra-zeres que, no entanto, lhes sugere e instiga a toda hora por meio da televisão, cinema e vitrines. Também a produz subjetivamente ao agredir, a toda hora, os sentimentos e sensibilidades de bilhões de pessoas com suas imagens hedonistas, individualistas, materialistas. A FIFA, expressão por excelência do McMundo, organiza um campeonato de futebol para que todo o mundo, literalmente, veja e, mesmo, de certo modo ou muitos modos, dele participe. Ao mesmo tempo, neste mesmíssimo processo, organiza este mesmo campeonato para deixar claro que o mundo está dividido inequivocamente entre o McMundo e a Jihad. No "novo" Maracanã não será mais ne-cessário fosso a separar a torcida dos atletas. Afinal, todos se irmanarão num mesmo espetáculo, melhor se for com o Fred correndo para os braços dos torcedores após um gol. O fosso ficará do lado de fora, nos limites de uma vasta área, bem protegida e defendida, para dentro da qual só entrará quem tiver o seu devido crachá de McMundo comprado a 500, mil ou 2 mil reais.
Pois foi nessa configuração do capitalismo internacional que o governo Lula resolveu oferecer o Brasil para sediar a Copa do Mundo da FIFA. O Brasil, graças a um pacote bem sucedido de políticas sociais populistas financiado por uma conjuntura econômica mundial extrema-mente favorável, vinha se mostrando um país que parecia lograr expandir as fronteiras do McMundo. Quase 40 milhões de brasileiros e brasileiras haviam ascendido à "classe C", diziam. Isto é: haviam alcançado condições de renda suficientes para ingressar no maravilhoso mundo das marcas e espetáculo, ainda que (ou por que) a 24 ou 48 suaves prestações mensais. Iludiram-se entulhando suas modestas casas ou apartamentos com quinquilharias eletrônicas e entupindo as nossas ruas com automóveis sem IPI. A qualidade da educação não melhorou, a saúde pública continuou a mesma, a violência policial segue aquela dos tempos da ditadura, a mobilidade urbana só piorou. Mas tudo podia ser compensado pela felicidade de viajar de avião, pela primeira vez na vida... Relações sociais mediadas por imagens é isso. De preferência, postando um selfie no Facebook...
Ocorre que, a cada quatro anos, a FIFA vem aprimorando um processo iniciado, a rigor, desde quando sua presidência foi assumida justamente pelo brasileiro João Havelange. Certamente, ele entendeu o extraordinário potencial mercadológico da associação do futebol às marcas mundiais. A cada Copa, a FIFA aperfeiçoa um regime de negócios que faz do território do jogo, um espaço exclusivo e excludente das marcas que se veiculam nesse jogo. A Copa tende a virar – ou já virou – o território extraterritorial que o McMundo sempre sonhou. O McMundo, por definição, não tem pátria, nem nação. No McMundo não cabem culturas regionais, histórias locais, diversidade. Não há lugar para o acarajé ou o tamborim no McMundo. São problemas da Jihad. As seleções nacionais, aqui, também não passam de grifes exibindo os logotipos da Adidas, Nike, Puma nos corpos de atléticas e artísticas celebridades globais. A torcida faz parte do espetáculo. Mas a torcida para o espetáculo: bonita, bem comportada, bem vestida, consumista, uma torcida que, assim como os estádios, ou melhor, "arenas", há que exibir (nas telas de TV em todo o mundo) o mesmo padrão visual uniformizado global do McMundo. Torcida fast food.
A Copa da FIFA pode ser no Brasil, na Rússia ou no Qatar... ou nos Estados Unidos. Desde que seja a Copa da FIFA, não do Brasil ou da Rússia ou do Qatar... ou dos Estados Unidos. A Copa da FIFA – e da Sony, da Coca-Cola, da Adidas, da Budweiser, de uns tantos outros poderosos detentores monopolistas dos direitos sobre o espetáculo. É bem provável que no Brasil, bem avaliadas as experiências anteriores, a FIFA tenha chegado ao modelo "perfeito", já testado antes, com relativo êxito, na África do Sul. Esqueceu de combinar com os russos, como poderia dizer Garrincha. Não somente a FIFA: também os governos federal, estaduais, munici-pais se esqueceram.
Como ao fim e ao cabo, toda atividade humana precisa de um chão, a "arena" torna-se o núcleo irradiador de um espaço de fluxos formado por BRTs (sempre em inglês, por favor!) conectadas a aeroportos, hotéis, territórios turísticos. E desconectada da cidade. Do País. Da sua sociedade real. Quando abertas na Copa das Confederações e exibidas para o mundo, a "classe C", de repente, descobriu que não fora convidada para esta festa. Como os "rolezinhos" juvenis nos shoppings de subúrbios também mostraram, apenas consumir um pouco mais não implicava dar a ela um assento na arquibancada do McMundo. Os critérios seletivos do mundo da imagem não considera só dinheiro (de resto, pouco): estética é fundamental.
Some-se a ela, os excluídos de sempre. Afinal, apesar de alguma melhora beneficiando uma parte da nossa sociedade, boa parte ainda espera por um futuro que não chega e vive um presente cada vez mais duro. Também temos a nossa Jihad: além dos fundamentalistas religiosos, um enorme lumpensinato urbano que a Copa exigiu colocar sob vigoroso controle. Estava dado o caldo de cultura que iria resultar nesse clima nervoso, inseguro, pouco festivo que parece dominar nestes dias de contagem regressiva. Noutras Copas, mundo a fora, a alegria contagiava o Brasil nesta época, como se fosse nossa a festa. Nesta Copa, logo no Brasil, muita gente está sentido, com razão, que a festa não é sua.
Sim, os governos Lula e Dilma jogaram fora a grande oportunidade que receberam para repactuar o espetáculo. Deviam ter pensado a Copa como o momento culminante de um processo político e simbólico que consagraria o ingresso da "classe C" brasileira no McMundo. Mas também, em sentido contrário, que obrigaria o McMundo a se abrir a maior democratização. Não é fácil fazer Copa em país democrático, disse-o, muito acertadamente, o Sr. Jérome Valcke. A próxima será na Rússia, depois no Qatar... Pois o governo cedeu à FIFA em todas as suas exigências anti-democráticas e extraterritoriais, quando o contrário teria sido o mais correto: negociar "meios-termos" com Valcke e sua turma; definir que o povo não poderia sentir-se excluído de uma Copa em seu próprio País. Lula, certamente, tinha cacife para isso. Infelizmente, não tinha formulação... Nem ele, nem os seus.
Numa palestra para militantes do PT em Porto Alegre, há poucos dias, o ministro Gilberto de Carvalho disse que o governo aprendera muito com a Copa e tentaria corrigir os erros na construção das Olimpíadas. As Olimpíadas são, hoje em dia, outra grande festa McMundo. O COI é outra FIFA. Será que o governo, mais do que aprendeu, entendeu?
Agora, para a Copa da FIFA, não há mais o que fazer. Pelo menos o ministro dos Esportes, Aldo Rabelo – outro que não entendeu –, poderia dar ao menos uma pequena sinalização de que o governo começa a fazer autocrítica e determinar que os tamborins possam entrar nos estádios. Ainda há tempo. Pelo menos alguma coisa da nossa cultura, o McMundo seria obrigado a transmitir para os televisores Sony espalhados por milhões de lares mundo a fora.
Explico. Na já distante década 1960, o pensador francês Guy Debord cunhou a expressão "sociedade do espetáculo" para descrever o capitalismo contemporâneo. Numa sucinta explicação, ele sugeriu que o fetichismo da mercadoria chegara a tal ponto que a mercadoria se dissol-vera na sua própria imagem. O capital já não produzia e vendia, nem as pessoas consumiam, "coisas" enquanto "coisas", mas "coisas" enquanto imagens ou símbolos das próprias relações entre as pessoas na sociedade mercantil alienada. De relações entre "coisas", a humanidade redu-zira-se a relações entre "imagens". Quando Débord escreveu o que escreveu, Copa do Mundo, Olimpíadas, nem mesmo um show de rock tinham atingido, nem palidamente, as dimensões por-tentosas que atingem hoje. E a tela da televisão, mesmo na Europa, ainda não se tornara esse poder mundial onipresente e onisciente que passou a ser desde os anos 1980.
Quase ninguém deu atenção a Débord. Os economistas nunca quiseram entender a economia do espetáculo. Os políticos e militantes da esquerda, até hoje, desdenham o tema. Não entendem, uns e outros, que o espetáculo – no conceito preciso que lhe deu Débord – está no cerne do funcionamento do capitalismo contemporâneo. O objetivo de uma Copa do Mundo como esta que acontecerá no Brasil, não é premiar o melhor futebol do mundo. O objetivo é vender cerveja, tênis, serviços bancários, automóveis, eletroeletrônicos. É movimentar serviços aéreos, hoteleiros, turísticos. No nosso caso, cerca de R$ 140 bilhões deverão entrar na economia. Muitos outros bilhões entrarão nas contas do Japão, dos Estados Unidos, da Alemanha, da Suíça... É uma dinheirama que gera ou mantém empregos, impostos e, claro, lucros. Hoje em dia, o capita-lismo precisa disso para seguir funcionando. E para isso, emprega o trabalho vivo muito bem pago de atletas, técnicos, outros profissionais, além de, ao mesmo tempo, captar a atenção e emoções de bilhões de pessoas, grudadas nas telinhas e telões, à volta de todo o mundo.
Para essas bilhões de pessoas, Nike é Nike, e assim deve parecer, não importa se se está no Brasil, nos Estados Unidos, no Japão, França, África do Sul, Egito, México ou Austrália. Bu-dweiser é Budweiser, seja bebida onde for bebida, mesmo se, talvez, o gosto em si não seja tão o mesmo, dependendo do lugar. Não importa o líquido, não importa o gosto, importa a marca e o que ela representa. O cientista político estadunidense Benjamin Barber identificou essas bilhões de pessoas ao "McMundo", o mundo do MacDonald, da Coca-Cola, da Apple, da Samsumg, do Starbucks, da C&A, das DineyWorlds, do cinema hollywoodiano, dos shoppingcenters, da língua inglesa; o mundo do consumo, do exibicionismo individualista; o mundo, claro, do automóvel, dos condomínios fechados ou bairros diferenciados; o mundo daqueles que outro estadunidense, Robert Reich, denominou "trabalhadores simbólicos", mas Antonio Negri e seus seguidores ousam chamar "cognitariado". Evidentemente, nesse mundo, poucos são os milionários, mas todos logram, mais ou menos, desfrutar de um padrão de vida quando nada minimamente aceitável, padrão de vida que lhes permite sobretudo gozar das delícias do consumo mediado pelas imagens do espetáculo.
É por demais óbvio que nem toda a população do planeta, inclusive no Brasil, pode inte-grar esse maravilhoso McMundo. Será mais certo dizer que a maioria dele está excluída. A renda familiar miserável será um fator determinante de exclusão.
Fatores culturais também podem contribuir fortemente. O McMundo é não somente construção e expressão da cultura ocidental, mas sobretudo da cultura estadunidense. Nem todo o mundo gosta da cultura estadunidense, sobretudo quando ela arrogantemente se pretende cultura dominante e imperial. O mundo árabe, por exemplo.
Das formas mais extremadas da resistência árabe à dominação do McMundo, Barber cunhou a metáfora que lhe é contrária: "Jihad". Por Jihad, ele não define apenas as manifestações fundamentalistas muçulmanas, mas todo comportamento cultural não só de oposição, mas de negação mesmo do McMundo.
Boa parte dessas manifestações são, de fato, religiosas, são os fundamentalismos de muitos matizes e matrizes: os cristãos pentecostais ou carismáticos, os judeus tradicionalistas, os hinduístas radicais etc. Mas Jihad pode significar também os nacionalismos regionais ou tribais que explodem em boa parte da Europa, na Catalunha, nos Bálcãs, ago-ra na Ucrânia. O que define a Jihad religiosa, étnica, social é a busca de algum grupo por integrar-se em alguma protetora comunidade imaginada que forneça a seus membros um sentimento gregário, um tanto primitivo, que lhes ajude a enfrentar o ameaçador expansionismo do McMundo.
McMundo e Jihad constituem a dialética unidade de contrários do capitalismo espetacular contemporâneo. Um não pode viver sem engendrar o outro e sem disputar com o outro. Não raro, a Jihad está dentro do McMundo como são os muitos casos de separatismos europeus, cujos os agentes sociais, em tudo o mais, levam uma vida que nada os distinguiriam da sociedade do es-petáculo. Veja-se a Catalunha separatista a expressar sua superioridade identitária através de seu bilionário Futbol Club Barcelona. Outras vezes, a Jihad está na sua periferia, mas fazendo uso intensivo de redes ultramodernas de computadores e smartphones nas suas mobilizações, ou até de jatões Boeings para as suas agressões – sem falar, claro, das AK47 e de todo o restante avan-çado arsenal a ela fornecido pelos Estados Unidos, França, Rússia...
O McMundo produz a Jihad objetivamente, ao negar a bilhões de seres humanos os pra-zeres que, no entanto, lhes sugere e instiga a toda hora por meio da televisão, cinema e vitrines. Também a produz subjetivamente ao agredir, a toda hora, os sentimentos e sensibilidades de bilhões de pessoas com suas imagens hedonistas, individualistas, materialistas. A FIFA, expressão por excelência do McMundo, organiza um campeonato de futebol para que todo o mundo, literalmente, veja e, mesmo, de certo modo ou muitos modos, dele participe. Ao mesmo tempo, neste mesmíssimo processo, organiza este mesmo campeonato para deixar claro que o mundo está dividido inequivocamente entre o McMundo e a Jihad. No "novo" Maracanã não será mais ne-cessário fosso a separar a torcida dos atletas. Afinal, todos se irmanarão num mesmo espetáculo, melhor se for com o Fred correndo para os braços dos torcedores após um gol. O fosso ficará do lado de fora, nos limites de uma vasta área, bem protegida e defendida, para dentro da qual só entrará quem tiver o seu devido crachá de McMundo comprado a 500, mil ou 2 mil reais.
Pois foi nessa configuração do capitalismo internacional que o governo Lula resolveu oferecer o Brasil para sediar a Copa do Mundo da FIFA. O Brasil, graças a um pacote bem sucedido de políticas sociais populistas financiado por uma conjuntura econômica mundial extrema-mente favorável, vinha se mostrando um país que parecia lograr expandir as fronteiras do McMundo. Quase 40 milhões de brasileiros e brasileiras haviam ascendido à "classe C", diziam. Isto é: haviam alcançado condições de renda suficientes para ingressar no maravilhoso mundo das marcas e espetáculo, ainda que (ou por que) a 24 ou 48 suaves prestações mensais. Iludiram-se entulhando suas modestas casas ou apartamentos com quinquilharias eletrônicas e entupindo as nossas ruas com automóveis sem IPI. A qualidade da educação não melhorou, a saúde pública continuou a mesma, a violência policial segue aquela dos tempos da ditadura, a mobilidade urbana só piorou. Mas tudo podia ser compensado pela felicidade de viajar de avião, pela primeira vez na vida... Relações sociais mediadas por imagens é isso. De preferência, postando um selfie no Facebook...
Ocorre que, a cada quatro anos, a FIFA vem aprimorando um processo iniciado, a rigor, desde quando sua presidência foi assumida justamente pelo brasileiro João Havelange. Certamente, ele entendeu o extraordinário potencial mercadológico da associação do futebol às marcas mundiais. A cada Copa, a FIFA aperfeiçoa um regime de negócios que faz do território do jogo, um espaço exclusivo e excludente das marcas que se veiculam nesse jogo. A Copa tende a virar – ou já virou – o território extraterritorial que o McMundo sempre sonhou. O McMundo, por definição, não tem pátria, nem nação. No McMundo não cabem culturas regionais, histórias locais, diversidade. Não há lugar para o acarajé ou o tamborim no McMundo. São problemas da Jihad. As seleções nacionais, aqui, também não passam de grifes exibindo os logotipos da Adidas, Nike, Puma nos corpos de atléticas e artísticas celebridades globais. A torcida faz parte do espetáculo. Mas a torcida para o espetáculo: bonita, bem comportada, bem vestida, consumista, uma torcida que, assim como os estádios, ou melhor, "arenas", há que exibir (nas telas de TV em todo o mundo) o mesmo padrão visual uniformizado global do McMundo. Torcida fast food.
A Copa da FIFA pode ser no Brasil, na Rússia ou no Qatar... ou nos Estados Unidos. Desde que seja a Copa da FIFA, não do Brasil ou da Rússia ou do Qatar... ou dos Estados Unidos. A Copa da FIFA – e da Sony, da Coca-Cola, da Adidas, da Budweiser, de uns tantos outros poderosos detentores monopolistas dos direitos sobre o espetáculo. É bem provável que no Brasil, bem avaliadas as experiências anteriores, a FIFA tenha chegado ao modelo "perfeito", já testado antes, com relativo êxito, na África do Sul. Esqueceu de combinar com os russos, como poderia dizer Garrincha. Não somente a FIFA: também os governos federal, estaduais, munici-pais se esqueceram.
Como ao fim e ao cabo, toda atividade humana precisa de um chão, a "arena" torna-se o núcleo irradiador de um espaço de fluxos formado por BRTs (sempre em inglês, por favor!) conectadas a aeroportos, hotéis, territórios turísticos. E desconectada da cidade. Do País. Da sua sociedade real. Quando abertas na Copa das Confederações e exibidas para o mundo, a "classe C", de repente, descobriu que não fora convidada para esta festa. Como os "rolezinhos" juvenis nos shoppings de subúrbios também mostraram, apenas consumir um pouco mais não implicava dar a ela um assento na arquibancada do McMundo. Os critérios seletivos do mundo da imagem não considera só dinheiro (de resto, pouco): estética é fundamental.
Some-se a ela, os excluídos de sempre. Afinal, apesar de alguma melhora beneficiando uma parte da nossa sociedade, boa parte ainda espera por um futuro que não chega e vive um presente cada vez mais duro. Também temos a nossa Jihad: além dos fundamentalistas religiosos, um enorme lumpensinato urbano que a Copa exigiu colocar sob vigoroso controle. Estava dado o caldo de cultura que iria resultar nesse clima nervoso, inseguro, pouco festivo que parece dominar nestes dias de contagem regressiva. Noutras Copas, mundo a fora, a alegria contagiava o Brasil nesta época, como se fosse nossa a festa. Nesta Copa, logo no Brasil, muita gente está sentido, com razão, que a festa não é sua.
Sim, os governos Lula e Dilma jogaram fora a grande oportunidade que receberam para repactuar o espetáculo. Deviam ter pensado a Copa como o momento culminante de um processo político e simbólico que consagraria o ingresso da "classe C" brasileira no McMundo. Mas também, em sentido contrário, que obrigaria o McMundo a se abrir a maior democratização. Não é fácil fazer Copa em país democrático, disse-o, muito acertadamente, o Sr. Jérome Valcke. A próxima será na Rússia, depois no Qatar... Pois o governo cedeu à FIFA em todas as suas exigências anti-democráticas e extraterritoriais, quando o contrário teria sido o mais correto: negociar "meios-termos" com Valcke e sua turma; definir que o povo não poderia sentir-se excluído de uma Copa em seu próprio País. Lula, certamente, tinha cacife para isso. Infelizmente, não tinha formulação... Nem ele, nem os seus.
Numa palestra para militantes do PT em Porto Alegre, há poucos dias, o ministro Gilberto de Carvalho disse que o governo aprendera muito com a Copa e tentaria corrigir os erros na construção das Olimpíadas. As Olimpíadas são, hoje em dia, outra grande festa McMundo. O COI é outra FIFA. Será que o governo, mais do que aprendeu, entendeu?
Agora, para a Copa da FIFA, não há mais o que fazer. Pelo menos o ministro dos Esportes, Aldo Rabelo – outro que não entendeu –, poderia dar ao menos uma pequena sinalização de que o governo começa a fazer autocrítica e determinar que os tamborins possam entrar nos estádios. Ainda há tempo. Pelo menos alguma coisa da nossa cultura, o McMundo seria obrigado a transmitir para os televisores Sony espalhados por milhões de lares mundo a fora.
- Marcos Dantas é Professor Titular da Escola de Comunicação da UFRJ
27/05/2014
https://www.alainet.org/pt/active/74106?language=es
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