O Marco Civil e a Política dos Netos
06/05/2014
- Opinión
O Marco Civil da Internet agora é lei. Muito já foi escrito sobre ele. Entre críticas e elogios o Marco Civil chamou atenção no mundo todo (chegou a ser capa do jornal francês Le Monde) pela sua afirmação de direitos para usuários de internet. Mas quero trazer aqui uma outra perspectiva. Não vou analisar os pontos positivos e negativos do projeto. Vou fazer um depoimento — pessoal — sobre como o projeto nasceu. Acho que no DNA desse projeto tem um registro importante sobre modos de se fazer política. E não podemos deixar isso se perder.
Como meu envolvimento com o processo foi grande, sei que o testemunho será necessariamente enviesado. Mas garanto que se trata de uma visão sincera.
Eu era secretário de assuntos legislativos, no Ministério da Justiça. O Ministro era o hoje governador Tarso Genro.
Uma das principais responsabilidades da Secretaria de Assuntos Legislativos (SAL) é discutir as propostas de lei penal. O tema quente em 2008/2009 eram os cibercrimes. Um projeto — bastante polêmico — criava uma lista enorme de crimes para combater a criminalidade na internet.
Com um foco que ia do combate ao download de músicas e filmes até as fraudes bancárias, passando por pedofilia, criava-se uma rol de crimes tão amplo que o internauta brasileiro dificilmente não seria criminoso. Além disso, sobravam medidas de devassa da privacidade dos internautas com o intuito de facilitar a investigação policial.
As pressões para aprovar o projeto eram muito grandes. Internamente, a Polícia Federal, que também fica no Ministério da Justiça, dizia que o projeto era fundamental para facilitar o trabalho deles. O Ministério Público Federal seguia linha parecida. A Febraban se reuniu com o Ministro da Justiça e comigo — além de realizar forte pressão no Congresso. O grande argumento eram as fraudes bancárias.
Nós, na Secretaria, éramos contra o projeto. Nosso argumento era o de que não havia necessidade de novos crimes. Fraude bancária praticada pela internet é crime, não precisava de um novo tipo penal para isso. E, sobretudo, fazer daquela forma tão ampla restringiria muito a liberdade dos internautas no Brasil.
Mas, no geral, estávamos bastante isolados. Tínhamos o apoio do Ministério da Cultura (na época o ministro Gil foi uma liderança fundamental para que o Brasil não copiasse legislações estrangeiras que se espalhavam pelo mundo por pressão da indústria do entretenimento). Mas a tendência geral do Congresso — e até do governo — era que o projeto avançasse.
Na sociedade civil o movimento de oposição ao PL começava a crescer. Rapidamente começaram a chamar o projeto de AI-5 da internet. E começou, na sociedade civil, a crescer uma demanda pela construção de um Marco Civil da Internet. A ideia era que não fazia sentido criar uma lei para punir cidadãos sem que se criasse uma Carta de Direitos do internauta. A legislação deveria começar afirmando valores, afirmando direitos e não simplesmente punindo e perseguindo.
O tema, em tese, era de competência do Ministério das Comunicações. Mas o ministro na época, Helio Costa, não era o melhor amigo da sociedade civil nesse tema.
Até que… Lula foi ao FISL. Em junho de 2009. O FISL é o Fórum Internacional do Software Livre. É um dos principais encontros da sociedade civil que defende uma internet livre. E Lula falou sobre a lei que criava crimes na internet: “Essa lei quer fazer censura. Nós precisamos responsabilizar as pessoas que trabalham com internet, mas não proibir, condenar, porque esse é um interesse policialesco que permite que as pessoas adentrem as casas das pessoas para saber o que as pessoas estão fazendo.”
Ao final do FISL, Lula pediu ao ministro Tarso Genro, que coordenasse o processo de elaboração de um Marco Civil da Internet.
A partir desse momento tudo mudou dentro do governo.
Era possível construir uma legislação moderna, que rompesse com a onda criminalizante da internet que varria o mundo na época. Uma onda que só se compreenderia minimamente com as revelações feitas por Edward Snowden. A internet, criada justamente numa lógica de liberdade profunda das pessoas perante os Estados, passa a ser um instrumento dos Estados para restringir a liberdade e a privacidade dos cidadãos.
Agarramos a oportunidade com unhas e dentes. E resolvemos que o processo de construção dessa lei seria inovador. Algo que, até então, nunca tinha sido tentado no mundo.
Faríamos uma construção colaborativa do projeto de lei, pela internet.
Essa era uma ideia que eu vinha tentando emplacar fazia algum tempo. Eu tinha pedido à área de TI do Ministério da Justiça que criassem uma plataforma para que pudéssemos fazer um debate público dos projetos de lei que elaborávamos. A ideia não era uma consulta pública, na qual as pessoas mandam as sugestões para o governo.
O que eu queria era um verdadeiro debate público, no qual cada pessoa pudesse ver o argumento do outro. Contestar e gerar um aprendizado coletivo que produzisse uma lei melhor.
A burocracia do ministério disse que isso não era possível. Assim procurei a Escola de Direito do Rio de Janeiro da FGV, na pessoa do professor Ronaldo Lemos, e eles desenvolveram a parte técnica da plataforma. O Ministério da Cultura nos abrigou na rede social culturadigital.br e conseguimos levar o projeto adiante.
O processo foi fascinante. Ampla participação pública. Claro que o objetivo não era o de ouvir os 200 milhões de brasileiros. Não é essa a vantagem de um processo como esse. O que, sim, conseguimos foi ouvir todos os bons argumentos. Argumentos que muitas vezes ficariam de fora do debate, mas que foram sendo expostos e consolidados com o processo.
Além disso, o processo nos dava a oportunidade de expor publicamente os atores que queriam — legitimamente — interferir na discussão. A associação de provedores de internet pedia reunião conosco para falar sobre o tema? Expúnhamos a posição deles na internet. A Polícia Federal mandava sua nota? Ia para a internet. Era como se os corredores de Brasília não apenas fossem substituídos por vidros, mas era quase como se as paredes fossem retiradas.
Eu saí da secretaria no início de 2010, antes da consulta terminar. O processo continuou com os secretários que me sucederam e a discussão se consolidou dentro do governo até que o PL foi enviado ao Congresso em 2011.
No Congresso, a pressão foi gigantesca. Pressão de um setor que, de fato, praticamente não participou do debate. As teles. Toda a discussão da nova Carta de Direitos da Internet ao chegar no Congresso ficou em torno de um grande ponto: a neutralidade da rede. Ou seja, as empresas de telecomunicação podem tratar a internet como se fosse uma TV a cabo? E vender pacotes de internet só com Facebook de graça, mas cobrando pela entrada com velocidade em determinados sites?
A neutralidade como um direito foi fruto do amplo debate no processo colaborativo de construção do marco civil. Um tema que, muito provavelmente, não teria entrado no PL se ele não tivesse sido elaborado da forma como foi.
As teles confiaram que não precisavam participar do processo público de debate feito pelo Executivo. Por quê? Porque elas ficam mais confortáveis com a forma como o debate se dá no Congresso.
Os atores acostumados com o peso do poder econômico na política nunca imaginaram que o jogo no Congresso poderia ser diferente. Que é possível que a política do debate público, transparente vença a política das tenebrosas transações.
A vitiória do Marco Civil não foi apenas a vitória dos usuários de internet sobre as empresas de telecomunicação. Foi a vitória de uma nova forma de fazer política. A política antiga, dos corredores, dos interesses pouco claros perdeu. Ganhou a política da luz do sol. Na qual se abre o debate em busca dos melhores argumentos e interesses se confrontam publicamente.
Lula, naquela mesma fala, no FISL, fez uma piada com a internet. Disse que “com a internet, é a primeira vez que os netos são mais sabidos que os avós”. A disputa do marco civil é mesmo entre avós e netos. Entre uma política antiga e uma nova. Não sei se vamos ganhar essa guerra. Mas a vitória – surpreendente- do Marco Civil dão razão a Lula. Os netos parecem ser mais sabidos.
.oOo.
- Pedro Vieira Abramovay é advogado brasileiro, formado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, com mestrado em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília. Foi Secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e ocupou a Secretaria Nacional de Justiça do Governo Federal. Foi Diretor de Campanhas no site internacional Avaaz.org e professor da Fundação Getúlio Vargas.
7/mai/2014
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