25 anos sem Chico Mendes
22/12/2013
- Opinión
Na noite de 22 de dezembro de 1988, uma semana após completar 44 anos de idade, Chico Mendes foi alvejado por um tiro de escopeta no peito, na porta de sua casa, em Xapuri, Acre, enquanto saía para tomar banho (o banheiro era externo). No interior da casa, os dois guarda costas responsáveis por cuidar da sua segurança, da polícia militar, jogavam dominó e fugiram correndo ao escutar o disparo. A tocaia foi armada pelo fazendeiro Darly Alves e executada por seu filho, Darcy, junto de um outro pistoleiro. A versão que se tornou oficial da morte seria a vingança de Darly pela disputa do Seringal Cachoeira, que Darly queria transformar em fazenda, expulsar os seringueiros e desmatar a floresta; e também que Chico Mendes havia descoberto, no Paraná, uma condenação anterior do fazendeiro por assassinato.
Atribuir o crime apenas à fúria de Darly, que com seu bando de pistoleiros aterrorizava Xapuri, sempre foi visto como uma forma de esconder outros interesses que poderiam estar por trás do assassinato. O que estava por trás do crime era a destruição da Amazônia em benefício de poucos. Chico Mendes representava a resistência dos povos da floresta, as lutas sociais e a defesa ecológica das populações que ele, como poucos, soube organizar e liderar.
O assassinato de Chico Mendes a mando do fazendeiro Darly Alves, representante local da então União Democrática Ruralista (UDR), entidade de classe dos grandes latifundiários então comandada por Ronaldo Caiado (hoje representada pela Confederação Nacional da Agricultura, CNA, chefiada por Kátia Abreu), provocou uma imensa repercussão internacional. Surpreendeu tanto a elite agrária local, que pensava que o crime iria desaparecer na impunidade como tantos outros que cometiam, quanto a imprensa nacional, que ignorava os seringueiros e em grande parte os conflitos no campo (não muito diferente do que ainda ocorre). Ambos, pai e filho, foram condenados a 19 anos de prisão, cujas penas, hoje, já foram cumpridas. Outros assassinatos que teriam sido cometidos pelo bando de pistoleiros chefiado por Darly ficaram impunes – como o assassinado de Ivair Igino, companheiro de Chico, poucos meses antes, em junho de 1988, por outro filho de Darly, Olocy. Em julgamento recente, a condenação de Olocy foi tão baixa que o crime prescreveu – sequer consideraram a emboscada armada como um crime premeditado.
Chico Mendes foi um dos mais influentes ambientalistas de sua época e mudou o paradigma do ambientalismo internacional, ao colocar as populações diretamente afetadas por projetos de desenvolvimento como centro do debate. Foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores e o ideólogo das "reservas extrativistas", na qual a população tradicional que habitava a floresta teria o direito de manter seu modo de vida de coleta sustentável dos produtos florestais. "A reserva extrativista é a reforma agrária do seringueiro", ele dizia. Chico também falava que ele defendia a vida dos seringueiros, então, as seringueiras e a floresta amazônica, e assim se deu conta de que estava defendendo o Planeta inteiro. Um pensamento cada vez mais atual em relação a crise ecológica que toca a todos.
Suas ideias giraram o mundo e inspiraram diversas lutas sociais. O ativismo liderado por Chico Mendes havia influir na política de financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do Banco Mundial para a Ditadura, no Brasil, para construir estradas na Amazônia, mostrando que o benefício dos empréstimos atingia apenas a uma pequena elite, provocando violência e destruição ambiental. Hoje, o espaço desses organismos financeiros foi ocupado pelo BNDES.
O líder seringueiro teve uma brilhante trajetória política. No seu próprio dizer, foi como "ganhar na loteria". Não havia escolas nos seringais e 98% dos seringueiros eram analfabetizados nos anos 1970. Mas em 1962 Chico Mendes encontrou o militante comunista Euclides Távora, refugiado da Coluna Prestes na Amazônia, na fronteira da Bolívia com o Acre. Távora iniciou um processo de alfabetização baseado não em cartilhas, mas em jornais da época que chegavam com meses de atraso. Todos finais de semana, o garoto caminhava 3 horas até a colocação de Távora. Chico Mendes não só aprendeu a ler e a escrever, como passou a compreender o contexto político de seu entorno. Quando veio o golpe de 1964, podia conectar nas rádios internacionais em versão em portugues da Voice of America, BBC e Central de Moscou, e junto de Távora, interpretar como as notícias eram informadas de forma bastante diferentes. A relação com Távora terminou em 1965, e com uma mensagem: os anos vindouros seriam marcados por autoritarismo e violência, e Chico deveria filiar-se ao primeiro sindicato que surgisse.
Após algumas tentativas de mobilizar, de forma isolada, os seringueiros, no início dos anos 1970 surgiram as comunidades eclesiais de base, localmente comandadas por dom Moacyr Grechi, bispo progressista da teologia da libertação. E em 1975, através da CONTAG, foi criado o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia. Como era um dos poucos letrados, Chico assumiu a secretaria, e em 1977 fundou o sindicato em Xapuri. A trajetória do sindicalista culminou com a criação do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), em 1985, em Brasília, fato que projetou a luta do seringueiros ao debate nacional.
Chico Mendes hoje
A memória de Chico Mendes é uma turbulenta disputa política. No Acre, entre as diversas homenagens, há até palestras pagas pelo governo e pela Petrobrás (que vai explorar gás na floresta) para apresentar o líder sindical quase como um empresário "verde". Em um recente especial, a GloboNews recolheu belas imagens de arquivo para concluir que Chico Mendes pregava a "sustentabilidade".
O uso da imagem de Chico Mendes permite ao governo do Acre, por exemplo, jogar luz na floresta com energia elétrica produzida com a queima de combustíveis fósseis, resultando em poluição luminosa que afeta espécies que vivem na área objeto da intervenção (essa foi uma das tantas "homenagem" ao líder seringueiro), enquanto a população da floresta enfrenta desafios para sobreviver e sair da miséria sem ter que destruir o ambiente onde vive. Dilma Rousseff, cuja política em relação a Amazônia contrasta de forma imensa aos ideais de Chico Mendes, nesse ano sancionou lei que destaca Chico Mendes como patrono do meio ambiente e herói nacional. É possível imaginar que Chico teria estendido suas críticas do Banco Mundial, nos anos 1980, ao à política do BNDES hoje: o benefício dos investimentos provoca destruição, conflitos, violência, e no fundo acaba por beneficiar poucos bolsos.
No Acre, o legado de Chico Mendes ajudou a eleger não apenas quatro mandatos seguido ao governo, como senadores (Marina Silva, por exemplo), deputados, vereadores, prefeitos. O atual governo, que tem incentivado não só a pecuária como mesmo a exploração de gás na floresta, tem recebido criticas contundentes de alguns antigos companheiros de Chico Mendes. Não há dúvidas, no entanto, de que os sucessivos governos do PT no Acre foram os que melhor souberam dirimir os intensos conflitos por terra que ocorrem no Brasil, e, até o momento, também controlar o desmatamento. Se há abusos do uso da imagem de Chico Mendes e "traições" como acusam os companheiros do líder seringueiro, no Acre também há esperanças de surgir um modelo inovador, como foram as reservas extrativistas, sem que isso signifique transformar a floresta em commodity. O medo é que seja necessário outra "loteria", como foi a formação improvavél que resultou na brilhante trajetória de Chico Mendes.
A memória do líder sindical que homenageou revolucionários nos nomes de seus filhos, como Sandino (em referência ao líder nicaraguense) e Elenira (em referência a Helenira Rezende, da Guerrilha do Araguaia); que seguiu Lenin ao se filiar no primeiro sindicato aberto na região; e que defendia a "reforma agrária" através das reservas extrativistas, vai cada vez ficando menos "vermelha", e mais verde desbotado de um ambientalismo capitalista que tenta mercantilizar a floresta e a natureza.
Nesses 25 anos que separam o assassinato dos dias de hoje, procurei dois companheiros próximos a Chico Mendes na época, Osmarino Amâncio e Gomercindo Rodrigues, para ouvir deles o debate em torno do legado, e também compreender melhor como pensava Chico Mendes. Dois companheiro sque não seguiram a política oficial, mas permanecem, cada uma de sua maneira, dedicados em perpetuar as memórias do amigo. Os depoimentos seguem em posts publicados hoje no blog.
"Guma", como é conhecido Gomercindo, hoje é advogado em Rio Branco, e ele vê vitórias importantes do movimento após a morte de Chico, com a diminuição dos conflitos, a criação de reservas extrativistas, e a inserção de muitos elementos da luta seringueira na principal pauta de políticas públicas. Para ele, no entanto: " Há hoje uma negação dos princípios do Chico Mendes na questão da memória. O Chico era um cara com formação de esquerda, mas era um conciliador. Era muito firme e sempre foi muito seguro de ser uma pessoa de esquerda. Houve um abrandamento do discurso. Quando o PT chegou ao poder no Acre, algumas coisas foram encaminhadas, outras transformadas numa proposta mais palatável, e sendo colocadas como se fossem os ideais de Chico."
Osmarino, que ainda vive na floresta, vai mais além nas suas críticas ao uso da imagem de Chico Mendes:
Chico mendes abriu a discussão sobre uma parceria com o movimento ambiental, mas a sua preocupação era social e fundiária. A terra era vista por ele com a função social. Ele tinha visão da conjuntura. Criticava o sistema que só implementa a barbárie, a concentração nas mãos de poucas pessoas. Ele colocava isso nas discussões. Nossa vida é de acordo com a natureza, e só temos condições de sobreviver com a floresta em pé. A gente vive da castanha, da pesca, da caça. A gente achava que os ambientalistas podiam ser nossos parceiros. E o Chico Mendes sabia compreender o momento para fazer as parcerias e as alianças.
Só que hoje, com o FSC, WWF, essas ONGs, a Marina implantando o capitalismo verde, o Chico Mendes está sacudindo. Chico Mendes era um libertário. Um socialista convicto. Queria a reforma agrária, e era acusado de terrorista. Parece que estão assassinando o Chico outra vez pintando ele de um ambientalista desses, porque querem matar a figura do libertário, lutador pela vida, por igualdade social, contra preconceito e discriminação.
Chico Mendes serviu de inspiração para diversos movimentos e organizações em todo o mundo. No lado oposto da Amazônia, no Pará, inspirou José Cláudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo, assassinados em razões muito semelhantes no dia 24 de maio de 2011. Maria havia mudado o nome da escola do assentamento onde viviam, em Nova Ipixuna, de "Presidente Costa e Silva" para "Escola Chico Mendes". Chico Mendes era, ao lado de Paulo Freire, uma das principais bases teóricas e fontes de inspiração da luta pelo extrativismo e a vida junto da floresta, do engajamento e união dos trabalhadores em defesa do ambiente onde vivem.
A influência internacional de Chico Mendes não ficou restrita ao círculo de ambientalistas em Washington, nos Estados Unidos, e em Ipanema, no Rio, com quem ele havia se aliado para defender os seringueiros. Chico Mendes dizia que primeiro ele pensava em defender os seringueiros, e por tanto, a seringueira e a floresta, e assim se deu conta de que estava defendendo o Planeta. Os ideias de Chico Mendes se espalharam pelo interior do Brasil pela base, com um conteúdo bem mais crítico do que aquele que se tenta espalhar pelas cidades e classes mais altas. Sua luta chegou até na Índia, por exemplo, onde o historiador indiano Ramachandra Guha compara o movimento Chipko, na Índia, com os seringueiros no Brasil, e mostra a grande influência que os seringueiros tiveram para inspiração de um movimento do outro lado do globo. "A partir daí o ambientalismo deixou de ser um conservacionismo elitista para se tornar um ecologismo popular, ou 'ecologismo dos pobres'", me disse o economista ecológico Joan Martinez Alier, professor da Universidade Autônoma de Barcelona. Outra comparação feita no plano internacional é com o líder ogoni Ken Saro Wiwa, assassinado pelo Estado da Nigéria por lutar contra a Shell.
A melhor forma de conhecer Chico Mendes é ouvindo e lendo Chico Mendes por ele mesmo. Além de seu livro "Chico Mendes por ele mesmo", que pode ser encontrado em sebos, há dois grandes documentários on line que contem entrevistas realizadas com ele.
O filme Voice of the Amazon, de Miranda Smith, passou no Brasil pela TV Manchete, e há uma boa versão no original em inglês: http://www.youtube.com/watch?v=Ii0ypePaZ1o
De Adrian Cowell, "Chico Mendes: Eu Quero Viver", que integra a espetacular série "A Década da Destruição", pode ser visto em: http://www.youtube.com/watch?v=63fSmrKkDiU
A Universidade de São Paulo disponibilizou uma magistral aula proferida por Chico Mendes no departamento de Geografia, alguns meses antes de sua morte: http://www.youtube.com/watch?v=S5_hUt-mvhk
Entre tantos bons livros, Gomercindo Rodrigues lançou "Caminhando na Floresta", pela editora da UFAC, e Edilson Martins "Chico Mendes: um povo da Floresta", pela Garamond. A última entrevista concedida por Chico Mendes, justamente a Martins, acabou sendo publicada apenas após sua morte, e pode ser conferida aqui https://docs.google.com/document/d/1TXHbR2SfFmumACCKzYfpHVRzNKPdpTMIbF-NVX1NNQk/edit
A história dessa entrevista, que poderia ter salvo a vida de Chico Mendes, mas não foi publicada por incompetência de celebrados jornalistas (que representam a surdez da grande mídia até hoje com relação aos problemas sociais do Brasil), e foi contada por Martins ao jornalista acreano Altino Machado, recentemente, nesse depoimento:
Em abril, em Washington, DC, nos Estados Unidos, a antropóloga Linda Rabben, que conheceu Chico Mendes em vida, junto de outros ambientalistas e diferentes organizações da sociedade civil, está organizando uma grande conferência em homenagem a Chico Mendes, que deve contar com a participação de diversas lideranças de base e também um festival de filmes. O evento pode ser acompanhado por este site: http://www.chicovive.org/
Não há dúvidas de que a morte violenta não matou as ideias de Chico Mendes. Muitos elementos relacionados ao assassinato ficaram sem explicações, e Darly e Darcy Alves, fazendeiros pistoleiros, pagaram pelo crime que, como se suspeita, tenha livrado outros que também mereciam estar ainda hoje atrás das grades.
O mais triste é pensar que apesar de avanços, a UDR que teria orquestrado a morte de Chico Mendes, e tantos outros, impondo um clima de terror, hoje está transformada em CNA, e a violência no campo segue como um dos maiores desafios para a democracia no Brasil. "O que acontecia no Acre naquele tempo com os seringueiros, hoje acontece no MS com os Guarani, de forma muito similar", compara Gomercindo.
22/12/2013
https://www.alainet.org/pt/active/70052?language=en
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