A democracia propriamente dita

17/09/2013
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Ouvimos cotidianamente o termo democracia sendo usado para descrever o regime político hegemônico hoje no mundo. Esse uso é historicamente recente. De fato, até o começo do século XX, o termo era usado quase que exclusivamente para designar o regime de participação contínua e direta da antiguidade ateniense, e não sistemas políticos modernos. Isso não é à toa. Há diferenças fundamentais entre aquele sistema político e o atual. A chamada democracia representativa contemporânea é produto do encontro entre duas tradições: aquela democracia grega e o liberalismo político europeu. Da democracia dos gregos veio a ideia de que a decisão deve expressar a opinião da maioria, e ser imposta sobre as minorias. Do liberalismo advém a tradição de que esse princípio majoritário deve ser limitado por direitos individuais, que protegem as minorias contra aquilo que os fundadores da república norte-americana chamavam de "tirania da maioria". Embora diferentes regimes democrático-representativos contemporâneos combinem estas duas tradições de formas distintas, elas sempre estão presentes.
 
Essas tradições são traduzidas de forma concreta por meio de instituições dos Estados democráticos contemporâneos. Pode-se afirmar que o poder legislativo é tipicamente um poder democrático. É no Parlamento que as maiorias, por meio de seus representantes, fazem suas escolhas mesmo que em detrimento das opiniões minoritárias. O poder judiciário, por sua vez, é o poder típico da tradição liberal. Ele existe para defender direitos, mesmo que para isso tenha de se colocar contrariamente ao desejo da maioria.
 
E é positivo que seja assim: a vontade irrefreada da maioria, sem a defesa de direitos individuais, produziu o Terror na Revolução Francesa, o Nazismo e uma pletora de linchamentos físicos e morais em sociedades sem instituições fortes. A função do Judiciário de coibir os abusos das decisões majoritárias confere estabilidade ao sistema, pois as partes sabem de antemão que não correm o risco de serem massacradas caso eventualmente se encontrem em posição minoritária. Nesse mesmo sentido, são os direitos individuais frente aos coletivos que garantem um julgamento justo independentemente da gravidade do delito.
 
O argumento de alguns ministros do STF e de parte da mídia de que a decisão sobre os embargos infringentes no caso conhecido como "mensalão" deve atender ao clamor da opinião pública, "um suposto desejo da maioria", é desconcertante, pois o julgamento é tipicamente um momento em que se deve buscar a garantia de direitos. Junte-se a isso o problema de se estabelecer qual o conteúdo específico da vontade da maioria, quando, como no caso em questão, ela não é manifesta por meio de instituições, como por exemplo uma câmara legislativa. Assim, quem seriam os legítimos intérpretes da vontade popular? Certamente não os ministros do Supremo. A legitimidade do Supremo Tribunal Federal no nosso sistema político pode ser explicada de várias maneiras, mas nenhuma inclui a função de intérprete conjuntural da vontade pública. O que está em jogo não é um suposto desejo da maioria pela condenação, mas a garantia de um julgamento que respeite direitos.
 
A “democratização” do judiciário, da qual muito se fala, é de fato uma importante conquista, mas deve ser buscada, por exemplo, em novas formas de indicação dos ministros e na criação de procedimentos de accountability dos tribunais, mas não na abertura do processo às pressões de uma suposta opinião da maioria. O risco que estamos vivendo não é o da impunidade, inclusive porque os réus já foram condenados, mas de um perigoso desvio de função de uma das instituições que é sustentáculo da democracia contemporânea.
 
- João Feres Junior, doutor em Ciência Política pela City University of New York, é professor do IESP/UERJ. Fábio Kerche, doutor em Ciência Política pela USP, é pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa
 
 
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