Terra de contrastes
10/02/2011
- Opinión
Mesmo pouco entendendo de economia e de finanças, não é difícil dar-se conta de que pelo menos quatro entraves – ou quatro nós – amarram hoje as contas públicas, criando um emaranhado inextrincável e complexo, difícil de desatar. As conseqüências desse modelo político, nocivas e crescentes, são visíveis a olho nu e sensíveis ao bolso de qualquer cidadão, particularmente aqueles que habitam os andares inferiores da pirâmide social. Não é à toa que Reger Bastide deixou seu testemunho na obra Brasil, terra de contrastes!
Primeiro nó
O primeiro desses entraves está na elevação progressiva dos custos de gestão. Dois aspectos podem ser salientados: de um lado, escancara-se cada vez mais uma porta larga do funcionalismo público para apadrinhados, companheiros e familiares. O nepotismo literal ou figurado constitui uma realidade que mancha a res publica brasileira desde os seus primórdios, mas com um claro agravamento nas últimas décadas. De outro lado, como se isto não bastasse, os beneficiários dessa prática costumam ser igualmente beneficiários de rendimentos substanciais e com aumentos regulares, não raro acima da inflação e acima do conjunto das classes trabalhadoras.
Os funcionários públicos dos escalões médios e inferiores seguem nisso o mesmo caminho dos representantes do primeiro escalão dos três poderes: executivo, legislativo e judiciário. Na memória de todos os cidadãos permanece vivo e flagrante o desequilíbrio no aumento de mais de 60% para senadores, deputados, ministros, presidente, etc., quando comparado aos embates e confrontos para chegar a um acordo para o valor do salário mínimo de apenas R$ 545,00. Uma pessoa gorda até o inchaço não costuma ser saudável. Tampouco o será uma máquina governamental. Termina por emperrar nos infinitos labirintos subterrâneos e obscuros da burocracia.
Segundo nó
Frente a esse impasse, vem o anúncio de um corte orçamentário da ordem de 50 bilhões de reais para tentar desatar o primeiro nó. Na história do país, como bem sabemos, o conceito de arrocho foi protagonista de não poucos dramas e enfrentamentos. Mas seu palco eram as organizações, movimentos e mobilizações populares. As lutas trabalhistas, de modo especial, tornam o conceito bem conhecido no cenário brasileiro dos anos 1970-80, com destaque para o regime de exceção. Arrocho era praticamente sinônimo de redução salarial. Agora a palavra surge na área governamental, com referência aos custos de gestão. É preciso apertar o cinto, pensar num arrocho das contas públicas. É preciso cortar na própria carne, e “isso vai doer”, garante o Ministro da Fazenda, Guido Mantega. Preservando a área social e as obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), quase todos os ministérios foram afetados, além das emendas parlamentares e do repasse de verba aos municípios.
Cá entre nós, dá para acreditar nesse arrocho? Os gastos públicos foram progressivamente inflados pelos sucessivos governos. Inchou-se demasiadamente a máquina, sempre havia uma “boquinha” para um amigo, um afilhado, um companheiro. São por demais conhecidas expressões como: “o trem da alegria”, “a farra do Planalto Central”, “o uso indiscriminado do dinheiro público”, “o superfaturamento de obras públicas”... Sem falar do tráfico de influência e da corrupção pura e simples. Por isso, a notícia de corte e arrocho na máquina pública, num primeiro momento, nos deixa críticos e com “uma pulga atrás da orelha”, para não dizer perplexos e incrédulos.
Normalmente, quando nos deparamos com notícias, eventos ou promessas inéditas, emerge das águas turvas uma frase que se tornou familiar: “Freud explica!” Aprendemos a desconfiamos das esmolas muito gordas ou das motivações imediatas. Daí o apelo meio sério e meio jocoso a Freud, seja em direção ao passado que bem conhecemos, seja em direção ao futuro sobre o qual jogamos nossas dúvidas. Neste caso, porém, e sem qualquer trocadilho, o próprio Freud nos alerta. Segundo ele, dificilmente o ser humano renuncia a um prazer ao qual está acostumado. Cabe repetir a pergunta que abriu o parágrafo: dá para acreditar em semelhante arrocho? Conhecendo o “jeitinho brasileiro de governar”, não é mais compreensível imaginar que os moradores do andar de cima farão todo tipo de malabarismo para repassar esses custos para os porões da sociedade? Adaptando o chamado “pai da psicanálise”, ninguém renúncia aos privilégios e benesses acumulados ao longo da história, sobretudo se, além de tudo, eles receberam a benção de leis elaboradas pelos próprios interessados. É verdade que, a essa altura, seria vergonhoso elevar a carga tributária para cobrir os diversos ralos por onde escapa o erário público. Os impostos brasileiros estão entre os mais vultosos de todo o planeta, em franca contradição com serviços públicos que deixam muito a desejar.
Terceiro nó
Por falar em serviços públicos, recente pesquisa do IPEA (instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) procura detectar o parecer da população com vistas a uma avaliação do SUS (Sistema único de Saúde) e dos serviços de saúde pública. Os resultados foram mais do que esperados. Salta à vista a precariedade da saúde pública, especialmente quanto ao atendimento imediato, às filas nos estabelecimentos hospitalares e postos de saúde, às listas de espera para exames e cirurgias, não raro de extrema urgência. O que tem resultado em freqüentes notícias de óbitos á porta desses estabelecimentos. Um das reclamações mais freqüentes, e previsíveis, é a falta de médicos habilitados. Em favor do SUS, é preciso que se diga, a população aprova a chamada saúde familiar e a distribuição de remédios. Mas o que fica evidente e estridente é a enorme distância entre, de um lado, os tributos pagos pelos trabalhadores brasileiros e, de outro, o retorno em termos de qualidade de vida. Os impostos de Primeiro Mundo contrastam com os serviços de Terceiro Mundo!
Dessa defasagem resulta a clássica constatação de Bastide sobre os contrastes que minam o território brasileiro. Em nenhuma área quanto na saúde fica tão visível a realidades dos “dois Brasis”: há um sistema privado para o andar de cima e um sistema público para o andar de baixo, respectivamente Casa Grande & Senzala, na expressão de Gilberto Freire. Além de R. Bastide e G. Freire, caberia uma alusão a Josué de Castro, o teórico nordestino da “geografia da fome”. O pior é que o mesmo abismo separa condomínios fechados de alto padrão e favelas, apartamentos de luxo ao lado de sórdidos e insalubres cortiços; shoppings centers disputando o frenesi do consumo com o comércio de rua e/ou ambulante; escola para as classes média e alta e sistema escolar para a população pobre; honorários ou rendimentos estratosféricos de celebridades, políticos, técnicos especializados, etc., em oposição dos salários dos trabalhadores... E assim por diante!
Quarto nó
Uma vez mais, sem entender grande coisa de economia e finanças, a população intui que esse estado de coisas tem algo a ver com a taxa de juros e com o retorno ameaçador da inflação. Em ambos os casos, quem paga a conta são os trabalhadores, que são igualmente os consumidores dos produtos de primeira necessidade. Num país de tamanhas dimensões territoriais, de um povo tão criativo e trabalhador, de fontes energéticas diversificadas, de invejável produção agrícola, de um poderoso parque industrial, de um comércio dinâmico e efervescente – por que sobem os preços dos alimentos, da energia e dos bens de primeira necessidade? Já sabemos que a resposta está na ponta da língua: os preços são regulados pelo mercado internacional.
Mas vale insistir na pergunta, agora de forma modificada: não seria possível desenvolver políticas públicas de proteção e defesa do consumidor, particularmente quanto aos bens produzidos no país, tais como grãos, carne bovina e de frango, agro-combustível, tecidos em geral, sapatos, para citar apenas alguns bens de primeira necessidade? Políticas públicas bem estruturadas, além de evitar a dependência de programas como o “bolsa família”, por exemplo, combatem o vírus do populismo, do centralismo e do personalismo, tão presentes na prática política brasileira.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
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