Alfabetização para todos: um grito de guerra
28/05/2003
- Opinión
Pode ser surpreendente dedicar atenção ao analfabetismo
no Brasil. Conforme a pergunta de Koichiro Matsuura,
diretor-geral da UNESCO, a questão da alfabetização
universal não deveria ter sido resolvida no século
passado? O analfabetismo está comprometendo o futuro do
Brasil. Nos vários Brasis persistem pessoas que não têm
oportunidades adequadas para alfabetizar-se. Com o
analfabetismo freqüentemente enraizado nas circunstâncias
da pobreza, em áreas rurais e urbanas, não se pode
esperar que esse grupo de excluídos caminhe para a morte,
a fim de que se reduza a sua presença nos indicadores
estatísticos. A sua exclusão é um fato que não pode ser
ignorado. Trata-se daquela privação terrível para a qual
não se pode fechar os olhos.
Por isso, o Brasil precisa engajar-se plenamente na
Década da Alfabetização das Nações Unidas, que começa
este ano e se estende até 2012. O tempo e os desafios são
dinâmicos. Desde a criação da UNESCO, ao terminar a
Segunda Guerra Mundial, verificam-se mudanças expressivas
no conceito e no modo de conceber a alfabetização. Esse é
o espelho das complexas relações entre educação e
sociedade, que interagem entre si, em rua de mão dupla e
tráfego intenso, num turbilhão acelerado de mudanças. No
pós-guerra, concebia-se a alfabetização como a capacidade
de ler, escrever e fazer cálculos aritméticos. Alunos
adultos eram tratados como crianças na prática da sala de
aula e o currículo podia ter ou não conexões com a vida
cotidiana. Era uma educação em grande parte dissociada da
sua circunstância, como se o aluno fosse uma criança que
havia simplesmente perdido as oportunidades educacionais
e pudesse ser introduzido numa espécie de máquina do
tempo para recuperá-las. No entanto, a perspectiva da
alfabetização cresceu como uma árvore, tanto para baixo
como para cima. Numa direção, ela vitalizou-se,
envolvendo competências e habilidades que a vida social
exigia cada vez mais. Noutra direção, aprofundou as suas
raízes para integrar-se e diversificar-se segundo as
condições e necessidades dos alfabetizandos.
Hoje, as raízes da árvore são mais profundas, ao mesmo
tempo em que se encontra uma profusão de ramos para
atender ao leque de diversidades que enriquecem o
processo educacional. Se as nossas possibilidades de
resposta cresceram, com novos recursos, também aumentou o
tamanho do desafio. Temos, assim, uma corrida em que não
há lugar para lamentar o tempo perdido, mas em que se
pode perceber que teria sido mais simples responder antes
aos desafios. A criação da Década da Alfabetização pelas
Nações Unidas coincide com um fato histórico da vida
nacional. Pela primeira vez, depois de tantas lutas, o
Brasil elegeu um presidente da República que veio do
povo, que pode fazer o enlace entre as aspirações e
problemas dos vários Brasis, edificando nessa matéria-
prima a plataforma de uma nova sociedade, mais justa e
mais humana. Dessa forma, a Década da Alfabetização no
Brasil, pelas condições políticas favoráveis, representa
historicamente a grande oportunidade para o país resgatar
uma dívida secular. O mesmo povo que elevou um líder
operário à posição mais alta na hierarquia do Estado
brasileiro precisa agora assumir um papel protagonista na
batalha para erradicar o analfabetismo, indignando-se por
um lado com os elevados índices de analfabetismo e, por
outro, fazendo da alfabetização para todos um grito de
guerra, para que o Brasil não perca essa oportunidade
histórica. E se isso for mais uma vez adiado, poderá ser
tarde demais...
* Cristovam Buarque é ministro da Educação e Jorge
Werthein é representante da UNESCO (Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) no
Brasil.
https://www.alainet.org/pt/active/3861?language=en
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