Brasil e América Latina – novo momento político

20/02/2003
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A América Latina está atravessando um período de importantes mudanças políticas. O fato de maior destaque foi a eleição com uma votação consagradora (53 milhões de sufrágios no segundo turno, correspondendo a quase 60% dos votantes) de Luís Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), à frente de uma ampla coalizão eleitoral que tinha em seu núcleo central o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e contava também com a participação de agremiações do centro, como o Partido Liberal (PL), que indicou o vice-presidente, o senador José Alencar, um empresário nacionalista do setor têxtil . Lula conquistou a presidência da República no maior país do subcontinente, com uma extensão de 8,5 milhões de quilômetros quadrados e uma população já superior a 170 milhões de habitantes, defendendo um programa de mudanças políticas, econômicas e sociais, entre elas a democratização ampla e profunda do estado, a implantação de um novo modelo de desenvolvimento, com inclusão social, distribuição de renda e soberania nacional, a realização de uma reforma agrária e o início de uma caminhada para fazer o país avançar no rumo do progresso social. A vitória de Lula despertou enormes expectativas no povo brasileiro, um forte sentimento de esperança que, como ele próprio disse no discurso da vitória perante a multidão que se comprimia na Avenida Paulista, "venceu o medo". Significado e causas da vitória de Lula O triunfo eleitoral das forças progressistas e da esquerda brasileiras interrompe um ciclo histórico de domínio de forças oligárquicas, conservadoras, antidemocráticas e subordinadas aos centros de poder internacional que se sucederam nas posições de mando do estado nacional desde a proclamação da República, há 113 anos, período que foi marcado também por golpes militares e ditaduras, algumas de caráter fascista, como a que perdurou por 21 anos em fase recente (1964-1985). Pela primeira vez na história do Brasil, ascende ao vértice do poder nacional uma força política de cariz democrático e progressista, com a particularidade, também inédita, de que o novo presidente possui uma trajetória de vida com sentido épico. Originário das camadas mais empobrecidas do Brasil profundo, emigrou ainda em tenra idade para uma São Paulo que já se transformava em principal centro industrial do país em meados do século passado, passou parte de sua infância como vendedor de rua, cursou apenas a escola primária, tornou-se torneiro-mecânico, foi operário numa filial de grande multinacional do setor automobilístico, onde se tornou sindicalista. Presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo (cidade do pólo industrial de São Paulo), liderou as mais importantes greves operárias em finais dos anos 70, em pleno regime militar. Fez aí seu batismo de fogo na luta social, para em seguida ingressar nas lides da política fundando o Partido dos Trabalhadores. Lula venceu as eleições presidenciais depois de malograr em três tentativas anteriores: 1989, 1994, 1998. Importa compreender por que venceu agora. Politólogos de curta visão, mas com opinião influente nos grandes meios de comunicação, atribuem a vitória de Lula a fatores meramente conjunturais e a uma bem feita peça de "marketing" eleitoral, numa superestimação da publicidade sobre a política. Não há negar que Lula superou também esse obstáculo, encontrando a justa medida e a justa forma de realizar a campanha quebrando ou neutralizando os inomináveis preconceitos de uma classe média cosmopolita e boçal, que freqüenta Miami duas vezes por ano, mas nunca viu de perto a periferia dos grandes centros urbanos do próprio país, onde se concentram imensos contingentes de miseráveis. Não se pode tampouco eludir os limites da situação. Lula vence as eleições num quadro de correlação de forças desfavorável, numa sociedade essencialmente conservadora, debaixo de uma pressão neoliberal e de uma forte chantagem dos donos do capital financeiro, credores da dívida brasileira e detentores dos capitais que financiam as contas externas do país, o que o obrigou a fazer algumas cedências programáticas, mormente no que se refere à aceitação de aspectos da política macroeconômica imposta no último acordo com o FMI. Nesse cenário, o PT completou sua conversão socialdemocrática, tornando-se palatável e até merecendo elogios das classes dominantes locais e de forças liberais e conservadoras da América e da Europa. Mas nada disso, isoladamente, explicaria a derrota de uma força política solidamente instalada no poder, como era o grupo comandado pelo ex-presidente Cardoso. A vitória de Lula correspondeu ao fracasso da política neoliberal posta em prática pelos dois sucessivos governos de Fernando Henrique Cardoso, que levou o país à bancarrota financeira, à extrema vulnerabilidade externa, a uma impagável dívida (interna e externa), à desvalorização da moeda nacional em face das moedas fortes, à estagnação econômica, a um desemprego e a uma precarização do trabalho nunca antes vistos, à queda da renda do trabalho, a uma economia de penúria, agravando todos os problemas sociais históricos e estruturais do país. O Brasil, sob a orientação econômica-financeira do Fundo Monetário Internacional transformou-se numa usina de superávites primários para financiar uma dívida pública que ultrapassa a marca de 60% do PIB. E num torniquete de restrição monetária, através do mecanismo de estabelecimento de elevadas taxas de juros. A lógica que preside tal orientação é a contenção do crescimento e a geração de excedentes exportáveis a fim de pagar religiosamente o serviço da dívida externa. O país se exauriu com a vigência prolongada de tal política. O indicador do esgotamento desse modelo, além dos fenômenos econômico-financeiros mencionados, é a crise social refletida na existência de mais de 50 milhões de brasileiros vivendo abaixo da linha de pobreza e na eclosão de uma assustadora violência urbana – cerca de 30 mil mortos anualmente em ações violentas de variados tipos. A política de FHC deixa uma herança maldita, causou danos profundos à sociedade brasileira, somente reparáveis a médio e longo prazos. Objetivamente, o Brasil chegou ao final de um ciclo. O neoliberalismo levou o povo e a nação a uma situação limite, cuja continuidade acarretaria ingentes sofrimentos, comprometeria irremediavelmente o futuro do país e poderia levar a sociedade a um inaudito estágio de degradação. Através de diferentes meios e modos, foi isso o que o povo percebeu e foi nesse sentido que se pronunciou ao dar a Lula vitória tão consagradora, nele identificando o intérprete das suas inquietações e anseios. A vitória de Lula é resultado também de uma acumulação de forças que se vem processando na sociedade brasileira desde o período das lutas contra o regime militar (pacíficas e violentas, legais e clandestinas, eleitorais e armadas), passando pela campanha por eleições diretas (1984), pela Assembléia Constituinte (1986-1988) e incontáveis lutas políticas e sociais, entre elas as campanhas presidenciais já mencionadas. O triunfo eleitoral das forças progressistas brasileiras é ainda fruto do amadurecimento político da esquerda, que encontrou os caminhos para escapar ao isolamento, descobriu que a frente ampla, a unidade de forças, constituía o instrumento fundamental da vitória. Nesse particular, foi de extraordinária importância a contribuição do Partido Comunista do Brasil, que com sua experiência e densidade política e ideológica protagonizou a formulação do novo pensamento político que orientou a campanha. A eleição de Lula, com base em uma frente ampla, foi a forma concreta de enfrentamento da atual correlação de forças no mundo e no Brasil, fortemente marcada pela ofensiva conservadora e direitista contra as forças transformadoras e revolucionárias. Pelo menos no caso brasileiro, ficou provado que para enfrentar uma situação com essas características, é necessário criar coalizões amplas e levantar bandeiras amplas, capazes de aglutinar amplas massas em torno de objetivos concretos claros e precisos. No Brasil, em decorrência da sua formação econômica, social e política, emergiram três questões- chave entrelaçadas: a questão nacional, porque o Brasil é extremamente dependente, a questão democrática, porque, embora sob regime constitucional formal, a democracia brasileira é restritiva, e a questão social, porque o capitalismo no Brasil é socialmente iníquo e gerador de insuportáveis desigualdades regionais e sociais. Uma tendência com sentido revolucionário na América Latina A instalação de um governo das forças progressistas no Brasil abre a possibilidade de alterar a correlação de forças na região. Aliás, a vitória eleitoral de Lula ocorreu numa seqüência de fatos que estão abalando o continente. No Equador, onde reina a instabilidade política e econômica entrelaçada com uma deterioração chocante das condições de vida do povo, onde a economia foi dolarizada e decorreram importantes crises políticas nos últimos cinco anos, o ex- coronel Lúcio Gutiérrez, também à frente de uma coalizão ampla de forças políticas e sociais, venceu as eleições presidenciais, deixando para trás os candidatos das oligarquias. Gutiérrez se notabilizou no cenário político ao se incorporar à liderança da rebelião indígena-popular de janeiro de 2000, um movimento popular de extensão e profundidade que derrubou o governo e abriu uma perspectiva de mudança revolucionária no país andino. Tudo indica estar em curso a formação de uma forte tendência que marcará por muito tempo a evolução política na região. Tal tendência aponta para o crescimento das lutas e do clamor por mudanças de fundo na ordem constituída. De outra maneira e trilhando distintos caminhos, já se manifestara na Argentina, quando da retumbante queda do governo de Fernando de la Rua. O país platino é a manifestação mais eloqüente e aguda da falência do modelo neoliberal. A rebelião popular que derrubou De la Rua não se converteu em revolução pelo atraso do fator subjetivo, de que é ilustração maior a fragmentação da esquerda. Mas dela resultou a criação de um novo movimento social, combativo, das ruas, que se vai aos poucos convertendo em fator diferencial e progressivo em meio ao caos instalado e à falência das instituições. A politização e a construção da unidade permanecem como os grandes desafios. O cenário político latino-americano foi fortemente marcado recentemente também pela memorável campanha eleitoral de Evo Morales na Bolívia, que canalizou os sentimentos anti-oligárquicos e antiimperialistas de extensas camadas da população; pelos acontecimentos na Venezuela, onde as tentativas de golpe, sabotagens e interferência direta dos Estados Unidos não conseguem parar o ímpeto mudancista incrementado na população pela revolução bolivariana; pelas novas possibilidades que se abrem no Uruguai, com o crescimento da Frente Ampla e sua consolidação como a principal força política do país; pela retomada do movimento popular no Peru, após a queda da ditadura de Fujimori. Na Colômbia, a emergência de um governo de extrema-direita, que optou pela escalada de militarização, não consegue aniquilar a luta armada. O conflito colombiano continua a exigir o reinício do diálogo e a busca de soluções justas e duradouras. A tudo isso se soma o movimento unitário que se está construindo contra a ALCA, com base na mesma consciência nacional que repudia as privatizações e o pagamento das dívidas às expensas da fome dos povos. Os dois plebiscitos realizados no Brasil – o do ano 2000 sobre a dívida externa e o de 2002 sobre a ALCA – são fatos paradigmáticos desse sentimento, como o são também os encontros continentais que tiveram lugar no ano passado no Equador e em Cuba e o XI Encontro do Fórum de São Paulo, em Antígua, Guatemala, assim como o III Fórum Social Mundial em Porto Alegre neste início de 2003. Tudo isso configura uma nova tendência e um novo ambiente político e na luta social. Mas ainda insuficiente para alterar substancialmente a correlação de forças. É uma tendência que precisa de tempo para se firmar e assumir um caráter antiimperialista mais nítido, dado que, por ora, ainda é fortemente influenciada por forças vacilantes e intermediárias. Na forma e nos caminhos concretos, é uma tendência variegada, que se manifesta a ritmos desiguais nos diferentes países e cuja intensidade ainda corresponde a um quadro de forças condicionado pela derrota do socialismo como sistema mundial e pelo exercício da hegemonia pela superpotência norte-americana. Mas o importante a reter é que o sentido de fundo do fenômeno é revolucionário. Controle hegemônico e ameaças do imperialismo NA Em seu conjunto, a América Latina também vive um fim de ciclo, que coincide com a crise do neoliberalismo e de uma ordem internacional injusta, que precisa perecer para destravar o caminho ao progresso social. A estagnação, a dependência e a vulnerabilidade externa constituem a característica central da situação econômica. Com variações apenas de ritmos e formas, de acordo com situações nacionais específicas, a América Latina viveu a última década e meia sob o signo do "Consenso de Washington" e dos acordos com o FMI, cujas receitas são o ajuste fiscal permanente, a flexibilização das legislações laborais, a abertura econômica e financeira indiscriminada, as privatizações generalizadas e o pagamento estrito dos serviços da dívida externa. Para a aplicação dessa receita, criou-se uma institucionalidade baseada nas "democracias controladas", regimes políticos que embora formalmente democráticos, restringiram a representação popular e usaram os parlamentos como caixas de ressonância do poder executivo. Esse tipo de governo é a garantia do controle político pelo imperialismo norte-americano e os organismos financeiros internacionais depois de superada a fase dos regimes militares. Formou-se uma espécie de condomínio de interesses entre setores das classes dominantes locais com o capital financeiro internacional, que passou a ditar as regras da política econômica através do FMI, do Banco Mundial e da Organização Mundial de Comércio. Em essência, ainda que nem sempre se manifeste assim, é contra essa ordem, contra essa nefasta dominação imperialista, que se desenvolve o atual movimento social e político em terras latino-americanas. O processo político em curso no Brasil e no conjunto da América Latina, se desperta muitas esperanças de transformações políticas, econômicas e sociais, e abre a possibilidade de alteração na correlação de forças, contém simultaneamente muitos riscos e ameaças à democracia e à soberania dos povos e países latino- americanos. Os Estados Unidos nunca deixarão de considerar a América Latina o seu pátio traseiro e toda a sua estratégia de domínio hegemônico no mundo parte da consideração, que no centro do império tem o valor de uma cláusula pétrea, de que a América Latina está definitivamente integrada à sua área de influência. Por isso, é ilusório imaginar que o fato de estar voltado para o Oriente Médio, a Ásia Central e o Extremo Oriente, leve os Estados Unidos a reduzir o seu empenho para exercer controle econômico e político sobre o subcontinente. Onde residem as principais ameaças? Primeiro, na reafirmação por parte de autoridades do imperialismo norte-americano de que, haja o que houver em termos de evolução política, os Estados Unidos não cederão espaço, nem renunciarão ao seu controle sobre o subcontinente. Isto ficou patente na conduta norte-americana durante a crise venezuelana, quando o governo de Bush tomou partido abertamente da oposição, propondo o afastamento do presidente Hugo Chaves e ao reagir à proposta brasileira de criar o grupo de países amigos, primeiro combatendo-a, depois, quando a proposta vingou, exigindo a inclusão do seu governo entre os integrantes do grupo. A reação dos Estados Unidos à eleição de Lula no Brasil e Gutiérrez no Equador foi ilustrativa de como a superpotência do Norte está encarando as mudanças políticas em curso. Ao mesmo tempo em que convidava Lula a visitar a Casa Branca antes mesmo da posse do novo presidente brasileiro, o governo norte-americano, através de seus porta-vozes, fazia veladas ameaças, mostrando que não está disposto a tolerar mudanças de rumo: "Lula e Gutiérrez podem ser de esquerda, mas enquanto forem democráticos, estiverem prontos para serem amigos de seus vizinhos e dos EUA… podemos trabalhar com eles para contribuir com a liberdade e a segurança do hemisfério", declarou Otto Reich, então subsecretário de Estado norte-americano para a América Latina. Em segundo lugar, na estratégia dos Estados Unidos consistente em exercer tal controle hegemônico sob a forma de "integração", através da Área de Livre Comércio das Américas – Alca, programada para entrar em vigor em 2005. Para além de uma integração comercial ou da formação de um "mercado comum" das Américas, uma ficção em face das colossais disparidades entre as economias dos Estados Unidos e as dos demais países da região, a Alca é parte de um projeto estratégico do imperialismo norte-americano visando a aumentar o seu domínio na América Latina. Uma vez concretizado, o projeto da Alca implicará um salto de qualidade nas já tradicionais relações de dependência econômica e política entre a gigantesca potência do hemisfério norte e os países centro e sul-americanos. É o mais ambicioso e abrangente plano de americanismo e integração subordinada jamais concebido pelos Estados Unidos na América Latina. É um projeto de dominação neocolonialista, de avassalamento, em que os países que nele se integrarem transformar-se-ão em apêndices e colônias dos Estados Unidos.O andamento do processo de implementação da Alca está caminhando celeremente. A aprovação pelo Congresso dos EUA da Autoridade de Promoção Comercial, nova versão do antigo "fast track" e o início das negociações concretas, com a entrega por cada país das ofertas de reduções tarifárias, neste início de 2003, são passos para a viabilização da Alca. A integração proposta pelos Estados Unidos, que traz em seu bojo também a exumação do Acordo Multilateral de Investimentos – Ami – redundará num desastre econômico para todos os países latino-americanos, afetará irremediavelmente as suas soberanias. São previsíveis as suas conseqüências nefastas: aprofundará o modelo neoliberal; acarretará a abertura total das economias, derrubando o que resta de salvaguardas nacionais; criará uma zona econômica privilegiada para os grandes grupos econômicos e financeiros norte- americanos; implicará novos sacrifícios para os trabalhadores, porquanto a flexibilização das leis laborais e a abrogação de direitos se tornarão inevitáveis; no plano político, a vida democrática sofrerá novas mutilações, pois os países passarão a ser regidos não mais por suas Constituições, que em definitivo virarão letra morta, mas por códigos de normas supranacionais. À Alca se agregam dois outros planos estratégicos: o Plano Puebla-Panamá, voltado para a América Central e o Caribe e o Plano Colômbia – Iniciativa Regional Andina, de interferência política e, quiçá militar, no conflito colombiano. Como se nota, é um cenário deveras ameaçador. A terceira ordem de riscos e ameaças que hoje pesam sobre a América Latina e em especial sobre o Brasil é a ameaça de mais um colapso financeiro. Desde há muitos anos, o Brasil não fecha as contas do seu balanço de pagamentos nem financia o seu comércio exterior se não contar com aportes maciços anuais de divisas, o que tem sido assegurado por sucessivos acordos com o FMI. É o nó górdio da vida econômica brasileira, é o principal obstáculo ao desenvolvimento nacional e à construção de um modelo alternativo, baseado na independência nacional e na justiça social. Já antes do desfecho do processo eleitoral, e principalmente depois da posse do novo governo, as principais pressões externas e, diga-se, as principais cedências do governo convergem para esse ponto. Entre o 1º e 2º turnos, o sub-secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Kenneth Dam, declarou: "Os Estados Unidos estão dispostos a colaborar com o governo de Lula, desde que adote políticas sadias, baseadas no equilíbrio orçamentário (leia-se arrocho fiscal), no controle da inflação e no respeito aos contratos (leia-se o pagamento religioso do serviço da dívida)… o dinheiro do FMI está lá, desde que as políticas corretas também estejam". O governo Lula até aqui tem sido constrangido a ceder a essas pressões. A política econômica posta em prática na fase de transição e a anunciada agenda de "reformas" guardam semelhanças com a do governo anterior. Essa política econômica é o paradoxo do governo de Lula, que se revela um governo ativo, avançado e cheio de iniciativas nas áreas social e de política externa. Pode ter efeitos paralisantes sobre o projeto transformador, inviabilizá-lo, o que redundaria em defraudação das expectativas e da confiança do povo brasileiro, que continuam altas. O enfrentamento dos impasses econômicos para construir um novo modelo de desenvolvimento nacional e promover a justiça social estará no centro dos embates políticos. Em torno das opções que se fizerem produzir-se-á uma diferenciação e decantação de forças políticas. O governo de Lula é hegemonizado por um partido de esquerda heterogêneo, o PT, que abriga um sem-número de facções, desde uma maioria social democrata a grupelhos inconseqüentes de "ultra-esquerda". Conta com o apoio e a participação, inclusive no nível ministerial, do Partido Comunista do Brasil, que tem existência autônoma e independente no Brasil há mais de 8 décadas. No Ministério estão presentes também partidos de centro representativos de importantes frações das classes dominantes. É, pois, um governo de centro-esquerda (o que no Brasil e na América Latina não tem a mesma conotação européia) , plural, heterogêneo, que reúne amplas forças políticas. Tudo indica que em seu interior haverá unidade e luta. Unidade quando convergirem os interesses nacionais e populares comuns contemplados na plataforma eleitoral de Lula. Luta, quando se confrontarem no dia a dia as duas linhas opostas e os dois projetos antagônicos da sociedade brasileira no seu estágio atual – o projeto continuísta e de subordinação ao neoliberalismo e o projeto democrático, nacional e popular consistente em abrir um novo rumo para o país, de desenvolvimento econômico combinado com o progresso social e o aprofundamento da democracia. A possibilidade de uma nova correlação de forças O Brasil se tem revelado ao longo das últimas décadas um país cheio de potencialidades de luta transformadora. O governo de Lula,pela sua história de vida e compromissos, e pela capacidade que tem de unir um núcleo politicamente maduro da esquerda brasileira, do qual fazem parte os comunistas, poderá ser uma trincheira importante dessa luta. E dar uma contribuição decisiva para alterar a favor dos povos a correlação de forças na região. Essa trincheira, em tempos de globalização imperialista, necessariamente se articula com os espaços internacionais, principalmente o Fórum de São Paulo e o Fórum Social Mundial. O Fórum de São Paulo é e seguirá sendo por muito tempo, um espaço de convergência da esquerda latino-americana e caribenha. Depois de 11 encontros, está afiançado como um dos espaços de confluência das forças avançadas e progressistas de maior relevo mundial. Certamente, a convergência não implica monolitismo nem nega as diferenciações. Também em seu interior estão presentes a unidade e a luta, entre visões terceiristas e adaptativas e concepções revolucionárias de maior alcance estratégico. O Fórum Social Mundial, depois de três encontros em Porto Alegre, consolidou-se como um espaço e um momento de reflexão, debate e luta contra a globalização imperialista. Tendo colocado no centro temas políticos, como a luta pela paz, a luta contra a Alca e o questionamento da ordem econômica e financeira neoliberal, o Fórum na prática se politizou, refutando objetivamente falsas prédicas sobre a fragmentação dos movimentos sociais e seu isolamento de uma perspectiva política. Muito ao contrário de afirmar o "movimento dos movimentos" como via de superação da "crise geral da política", o Fórum Social Mundial aproxima os movimentos sociais da política. As relações destes com os partidos políticos passam a ser, nessa medida, uma questão de método. Como é também uma questão de método o equacionamento da relação entre as lutas nos espaços nacionais e as lutas de alcance internacional. A interação entre ambas as esferas também se impõe na prática. Os acontecimentos em curso no Brasil e em toda a América Latina são a melhor ilustração disso. * José Reinaldo Carvalho, Jornalista, vice-presidente e secretário de Relações Internacionais do Partido Comunista do Brasil, autor de Conflitos Internacionais num Mundo Globalizado (Ed. Alfa Omega, São Paulo, Brasil, 2003).
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