O mito da degola da Praça da Matriz

12/08/2008
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A jornalista e doutora em Ciências Sociais, Débora Franco Lerrer, fala em entrevista como os meios de comunicação criaram o mito da “degola” do policial durante conflito entre sem terra e a Brigada Militar em Agosto de 1990, na Praça da Matriz [Porto Alegre]. Também mostra que a morte do cabo Valdeci de Abreu Lopes, uma das vítimas, apenas é reavivada hoje para criminalizar o MST.

 

Porto Alegre (RS) - Apenas depois de 18 anos de sua morte, o cabo Valdeci de Abreu Lopes recebeu uma homenagem de sua corporação, a Brigada Militar. Na última sexta-feira, dia 8 de Agosto, mais de cem policiais militares realizaram uma cerimônia em memória do colega, morto durante conflito com sem terra em Porto Alegre em 1990.

 

O confronto na Praça da Matriz ficou conhecido pela morte do policial, que na época foi retratada pelos jornais como a “degola”.  No entanto, livros e documentos posteriores contestam a versão. É o caso do livro “De como a mídia fabrica e impõe uma imagem – A ‘degola’ do PM pelos sem-terra em Porto Alegre”, da jornalista e socióloga Débora Franco Lerrer. Na entrevista a seguir, a autora fala como os meios de comunicação criaram o mito da “degola”. Também mostra que a morte do cabo Valdeci, uma das vítimas, apenas é reavivada hoje para criminalizar o MST.

 

- Qual foi a principal conclusão a que chegaste em teu livro?

 

A conclusão a que eu cheguei é que a imagem pública do que ocorreu no dia 08 de Agosto de 1990, construída pela mídia, é uma ficção. O modo como os meios de comunicação retrataram o violento conflito que ocorreu na Praça da Matriz [centro de Porto Alegre] e que teve um desdobramento trágico na Esquina Democrática é uma ficção. O meu objetivo de escrever a dissertação e publicar o livro foi para que se tivesse uma outra memória do ocorrido. Porque quando os jornais vão falar hoje do episódio, eles recorrem aos seus próprios arquivos, reiterando a ficção. Eles não vão atrás de novos conhecimentos ou pesquisas. E futuramente estes arquivos serão os históricos, os que as pessoas terão para ler.

 

- No que as tuas investigações diferem do que foi retratado pela mídia?

 

Não é que não tenham [os jornais] retratado o ocorrido em alguns momentos, mas a imagem que ficou é uma imagem ficcional. Fiz meu estudo a partir de pesquisas, de entrevistas dos profissionais que fizeram a cobertura na época, em cima dos laudos do processo judicial e dos atores do processo [sem terra e brigadianos]. O inquérito é uma fonte riquíssima sobre o episódio, é dele que eu tiro grande parte das informações que desconstroem essa ficção. O que eu posso dizer é que basicamente houve uma quebra de hierarquia na Praça da Matriz, em que a Brigada Militar desencadeou uma operação perigosa naquele cenário. Iniciou o despejo dos colonos, como os sem terra eram chamados na época, sem ordem do governador em exercício e em plena negociação. O despejo foi violento, com a polícia entrando em choque, alegando que um sem terra tinha atirado uma pedra em um policial. Uma pedra teria sido o que desencadeou a ira, a ação da Brigada Militar. Muitos colonos fugiram e, um pouco longe da Praça da Matriz, já na Esquina Democrática, um grupo de sem terra encontrou o cabo Valdeci de Abreu Lopes sozinho. E, naquele momento, aconteceu o entrevero em que o policial foi morto. É muito difícil dizer quem começou e quem terminou o desastre, mas determinadas coisas estão claras para mim, a partir das leituras que fiz em cima do laudo de necropsia e do que está nos autos do processo judicial. Segundo os documentos o cabo Valdeci, despreparado e possivelmente amedrontado, vendo aquela massa de colonos correndo rua abaixo, pegou o revólver e atirou três vezes. O revólver dele tem percutido três balas. Essas balas atingiram uma mulher [Elenir Nunes] e outra pessoa, na perna. E foi nesse episódio em que ele foi morto. O curioso do inquérito policial é que inverte a situação. Fica subentendido que Valdeci teria dado o tiro na Elenir depois de ele ter sido golpeado por uma faca.

 

- E por que isso não teria acontecido?

 

Por que é impossível o policial ter recebido o golpe e depois atirar, por exemplo. Quando a artéria carótida é atingida, a pessoa perde a reflexão e morre muito rapidamente. Claro que a pessoa que atacou o soldado tinha conhecimento disso, porque é assim que se matam os animais no campo. Mas foi uma reação que se assemelha, muito provavelmente, à legítima defesa. Não é natural, entre as pessoas, atacar um policial na rua. No meio do conflito, o cabo Valdeci pode ter sido atacado por uma foice, mas não foi isso a causa da morte. É uma situação muito triste, uma tragédia, mas que tem que ser colocada neste contexto: centenas de pessoas estavam sendo atacadas pela força policial e estavam desesperadamente em fuga quando encontraram o policial. Tem que ser colocada a verdade.

 

- Na tua opinião, quais são as ficções retratadas pelos jornais da época?

 

Eles continuam reiterando o que os laudos de necropsia deixaram evidente. O golpe que causou a morte do cabo Valdeci foi feito por arma branca, porque o tipo de corte por uma faca ou um canivete é completamente diferente do corte que faz uma foice. A foice precisa de força para cortar, já a faca é afiada, então ela faz um corte "limpo", de botoeira. Não quero diminuir a importância da morte do soldado com esse debate de que se foi com foice ou não. Só quero mostrar que a própria "degola", como os jornais chamam, é toda uma construção do imaginário e, no fundo, uma ficção. O que se imagina com a palavra "degola"? Classicamente, nos parece o corte de orelha a orelha, como se fazia no RS durante a guerra civil. É óbvio que em um estado como RS, que teve uma guerra civil entre 1893-1895entre gaúchos em que houve execuções com base na degola, este tipo de morte está muito presente no imaginário do povo. Só que a degola é um processo de execução. Quando os jornais falam na degola do policial, imagina-se que o sem terra cortou totalmente o pescoço de Valdeci, mas não foi isso o que aconteceu. No caso do conflito, foi um corte muito pequeno, mas preciso, na artéria carótida, e aí a pessoa morre na hora.

 

- Há outras ficções além da degola e da foice?

 

Outra ficção muito séria para mim é a Elenir Nunes, que foi vítima e depois foi tornada culpada pela morte do soldado. Ela sobreviveu ao tiro que levou do policial, mas não há a bala para comprovar. O tiro entrou no abdômen e transpassou todo o corpo dela. Mas mesmo assim Elenir, que levou o tiro, foi condenada como co-autora pela morte do soldado. Não quero justificar a morte de Valdeci, porque as mortes não se justificam. Mas quero mostrar que, no contexto da luta pela reforma agrária na época e ainda hoje se explica porque os meios de comunicação e demais forças sociais vivem reiterando essa história que não é verídica. Porque querem classificar o Movimento Sem Terra [MST] como violento, que é criminoso, "vejam, ele matou um policial". E as coisas não são assim. O MST, do modo que promove a luta pela reforma agrária com as ocupações massivas por famílias, é uma forma inclusive de defesa. Porque no momento em que se junta muita gente para fazer uma ocupação fica-se menos vulnerável a ataques de jagunços e de forças paramilitares. Existe uma tentativa de coibir esse processo de violência. E se no RS o MST não é vítima de paramilitar ou jagunço, no resto do país essa técnica de luta é central, fundamental. É um movimento mais de contra-violência do que de violência, como tentam classificar.

 

- Como foi construído esse imaginário da degola?

 

Entrevistei jornalistas da época e coloquei estas questões. As respostas foram inacreditáveis. Perguntei porque eles não olharam o laudo de necropsia e eles me responderam que não tinham se dado conta. Isso é uma grave falta jornalística. Os jornalistas têm consciência de que era uma informação relevante que não foi tocada e nem apurada. O editor da Revista Veja, na época, me falou que a reforma agrária tinha se tornado umamedida discricionária devido à derrota na Constituição de 88. Ou seja, tinha uma vontade de criminalizar sim o MST, que estava insistindo na questão da reforma agrária. Temos que levar em consideração que era o primeiro ano do governo Collor e todo mundo queria jogar esse debate para debaixo do tapete. E de repente vem um movimento social, o MST, com a bandeira da reforma agrária que foi importante no combate à Ditadura Militar e na reorganização das forças democráticas no país. Era uma demanda histórica, que existia desde a década de 60, que estava sendo reavivada. E a gente não pode esquecer que o jornalismo precisa de motes publicitários para vender suas notícias. A batalha campal na Praça da Matriz e, principalmente, a tragédia na Esquina Democrática, são casos que chamam a atenção. E usar a "degola", usar a figura da "foice", foi um mote que "pegou" no imaginário. À medida que entrevistei esses jornalistas, vi como se formou esse imaginário.

 

- Mas o livro mostra que alguns jornalistas tiveram outras posturas –

 

Sim, tenho que ressaltar algo que é muito importante. Ao mesmo tempo em que alguns jornalistas contribuíram para a criminalização do MST com as suas versões da história, foi de um outro grupo de jornalistas vinculados ao sindicato e que lançou um jornal [o COOJORNAL] a única versão mais aproximada do que aconteceu. E foi desses jornalistas também a gravação que ajudou a absolver o sem terra que era considerado o principal acusado como assassino do soldado, Otávio Amaral. Então existe essa ambigüidade na imprensa. Sua atividade é central para o debate público e saudável na sociedade. Ela tem armas e é poderosa para estabelecer um diálogo, um debate em uma sociedade que tem que resolver os seus problemas sociais. No entanto, o que se vê hoje é que a gente piorou em termos de imprensa, porque ao invés de aprimorar a leitura dos episódios, do que ocorreu no passado, ela reitera uma ficção. A imprensa tem papel fundamental para dar visibilidade para as questões e lutas sociais e poderia ser um ambiente saudável para colocar as forças que estão se confrontando em diálogo. Dando visibilidade para as demandas, explicar porque estas não podem ser atendidas, se for o caso. No entanto, não é isso o que me parece que está acontecendo no RS. Essas reportagens que foram feitas sobre a homenagem ao cabo Valdeci depois de 18 anos de morto apenas cristalizam o episódio sob o ponto-de-vista hegemônico, sem levar em consideração todas as versões que existem. Não se aprimorou a leitura do passado. Ao contrário da História, que pretende, com novos dados, fazer a leitura do que aconteceu.

 

- Há formas de desfazer um imaginário construído pela mídia?

 

Para isso a gente tem que ter meios de comunicação que de alguma forma combatam a desinformação, mas também precisamos aprimorar a educação das pessoas. O que vejo é muito jornalista despreparado, que não conhece nem a história do próprio país. Não conhece a história das lutas sociais, não sabe do que se trata e assim reitera o ponto-de-vista dominante, muitas vezes sem elementos. É a desinformação que é a grande arma dos que são contra a luta da reforma agrária e dos que são contra os movimentos sociais. As organizações, como o MST, somente aparecem na mídia quando há um embate violento, quando há algum grande fato escandaloso. Nunca se mostra o aspecto positivo dessa luta e que deve ser conhecido pela sociedade brasileira. A população só conhece o MST pelos conflitos que, com sua luta, ele provoca. E não aquilo que o movimento constrói. São pessoas que lutam e estudam para permanecer no campo, não querem ir para a periferia das cidades. Querem ter dignidade. O MST investe em educação e em formação técnica. É uma pena que a sociedade brasileira não saiba o que ela foi capaz de construir. E acho uma pena, particularmente no RS, um estado com uma história de luta política muito importante, que tem tradição histórica política, e que não promove a visibilidade para o outro lado da moeda. Isso impede que os movimentos sociais se catalizem na sociedade, o que é muito saudável. Os conflitos nunca vão deixar de existir; sempre terá pessoas com posições diferentes. Mas precisamos conhecer a integridade de uma posição para ter a nossa própria. E não é isso o que acontece quando se reduz um movimento social a um agente violento e criminoso, como se ele somente tivesse essa face. O que me entristece é que essa face pública não condiz com a riquíssima vida interna que o MST promove.  

 

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