1968: Quarenta anos depois (ii)
- Opinión
Eu tinha 18 anos quando passei no vestibular de Jornalismo para a PUC-Rio. Era o ano de 1968. Eu vinha de um colégio de freiras, que me deu excelente formação, mas abria para nós, meninas "de família", poucas janelas ao mundo. A entrada na universidade me deslumbrava. Era um novo mundo, múltiplo e plural.
Logo nas primeiras semanas de aula um colega propôs formarmos um grupo de teatro. Aderi imediatamente. Apaixonada pelo teatro, aluna do Tablado nos tempos da saudosa Maria Clara Machado, fascinava-me a idéia. A proposta de peça a ensaiar foi "Os pequenos burgueses", de Gorki. Começaram as leituras de texto, a escolha dos papéis. Orgulhosa, fui escolhida para um dos principais: a sombria e frustrada Tatiana.
Dedicava todas as horas livres de estudo a meu personagem. Lia e relia os textos, pesquisava Gorki em outros livros e textos. Depois vieram os ensaios. Conseguimos o Teatro Ginástico, no Centro da cidade, para ensaiar e exibir a peça. Nos bastidores, apoiava-nos o Pe. Raul Laranjeira Mendonça SJ, vice-reitor comunitário da Universidade, homem sincero e bom, com um coração do tamanho da cara séria e circunspeta.
Foi então que aos meus verdes e despreocupados 18 anos começou a chegar o conhecimento duro e real de que a situação que o Brasil vivia naquele momento era séria. Fazíamos teatro – pelo menos alguns de nós – penetrando no texto de Gorki, mas ao mesmo tempo não realizando que sua leitura da realidade estava muito mais próxima do que pensávamos.
Desde 1967, o movimento estudantil se tornara a principal forma de oposição ao regime militar instaurado com o golpe de 1964. Nos primeiros meses de 1968, várias manifestações haviam sido reprimidas com violência. Prisões e arbitrariedade marcavam a ação do governo em relação aos protestos dos estudantes. Essa repressão atingiu seu apogeu no final de março de 1968 com a invasão do restaurante universitário "Calabouço", onde foi morto Edson Luís, de 17 anos.
O cadáver do jovem Edson exacerbou os enfrentamentos entre polícia e estudantes. E foi assim que chegou até nosso ensaio geral. Lembro-me do dia anterior à estréia. Minha mãe nos havia acompanhado sob pretexto de preparar-nos um lanche para os intervalos. A idéia era ensaiar o dia inteiro, para estar muito afinados no dia seguinte. De repente, ouvimos o barulho nas ruas. Agachados atrás das coxias, vimos a polícia montada em cavalos arremetendo contra os estudantes que gritavam palavras de ordem. Alguns se aproximavam e eram golpeados, agarrados, presos, violentamente imobilizados. Bombas de gás lacrimogêneo eram lançadas e embaçavam o ar e os olhos.
Lembro-me do medo, das lágrimas que desciam pelo rosto, sem que eu quisesse chorar. Da mão de minha mãe segurando a minha e de seu abraço querendo proteger-me. Ao lado, meus colegas mostravam seu apoio aos estudantes. E comentavam que a despesa com a alimentação dos cavalos da polícia era muito maior do que o dinheiro que aqueles jovens dispunham para estudar. Olhei-os e pela primeira vez vi nossa diferença: minha vida de menina de classe média protegida e a luta de muitos deles e delas para chegarem à universidade e batalharem um cotidiano que não se deixava viver facilmente.
Algo partiu-se dentro de meu ingênuo coração de 18 anos naquele dia de 1968. Algo que depois conheceu dolorosa encarnação nos colegas presos, torturados, exilados e mortos. Ao voltar para casa, tarde da noite, pelas ruas finalmente tranqüilas , sentia que já nada mais poderia ser como antes. O texto de Gorki não era produto da imaginação, mas pura, dolorosa e palpável realidade.
Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, é autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape <http://wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape> )
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