Heróis e vítimas da anti-reforma agrária

10/04/2007
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Apresento-lhes um pequeno herói: Chama-se Eduardo Sousa Pereira Júnior.  Completou 9 anos.  Desde os três meses de idade até hoje vive com seu pai, Eduardo, e sua mãe, Maria Aparecida, no acampamento “Gurita”, no município de Jataí, Goiás, sob a lona preta, entre a cerca do latifúndio e a rodovia, à espera da terra, juntamente com outras famílias.  Viu e ouviu muita coisa.  Desde as ameaçadoras visitas da polícia e dos jagunços, até os insultos vindos dos carrões em trânsito.  Vive a dureza inenarrável do dia-a-dia.  Esta é a sua infância.  No mais é a poeira, o sereno, a tosse.  Eduardo é um pequeno anti-herói da anti-reforma agrária.

Há também o pessoal da cana.  Segundo levantamento da Delegacia Regional do Trabalho (DRT) de São Paulo morreram, neste Estado, 416 trabalhadores rurais em 2005 no setor sucroalcooleiro.  É preocupante a incidência da exaustão e das câimbras entre as causas de algumas mortes, sendo que o mais velho tinha 55 anos.  Estes e outros são heróis e vítimas da política atual fundiária. 

Estaria, então, em curso uma anti-reforma agrária em nosso país?

Há dois dados que apontam nesta direção: Em primeiro lugar o não cumprimento da constitucional “função social da propriedade”.  Em segundo lugar a nova mega-política energética governamental do agro-combustível. 

A Constituição brasileira de 1988 produziu uma jóia das mais luminosas, digna desta “Carta cidadã”, a saber, a “função social da propriedade”.  E isto figura no título fundacional dos “Direitos e Garantias Fundamentais”, onde, no item XXIII é dito: “a propriedade atenderá a sua função social”.  Estamos, de fato, diante de uma inovação jurídica copernicana.  Na Carta de Ribeirão Preto, os membros do Ministério Público Estadual e Federal, no seminário sobre “O Meio Ambiente e Reforma Agrária”, de 13 de dezembro de 1999, a respeito desta preciosidade constitucional, com admirável solidez jurídica declaram o seguinte: “A função social define o direito de propriedade.  A função social não é uma limitação do uso da propriedade, ela é o elemento essencial interno que compõe a definição da propriedade.  A função social é elemento do conteúdo do direito de propriedade”.  É o fim, portanto, do nefasto direito absoluto da propriedade privada.

A Constituição assumiu um mecanismo de garantia desta função social e também do estabelecimento do ordenamento fundiário.  Trata-se da “desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária, do imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social” (Art.  184).  Ora, infelizmente, o que assistimos é o abandono da terra pelo poder Executivo à voracidade da privatização nacional e estrangeira.  Até mesmo quando pressionado a rever os índices de produtividade para cumprir o tímido plano de reforma agrária, o Governo prefere comprar a terra do que executar a desapropriação.  E o Judiciário, salvo honrosas exceções, não faz outra coisa do que garantir a defesa do latifúndio através da indústria de liminares contra as desapropriações e da condenação das lideranças dos movimentos sociais.  Em 2006 foram despejadas da terra 19.449 famílias. 

80% das desapropriações realizadas nos últimos 10 anos foram obtidas graças às ocupações de terra pelas organizações camponesas.  Sem isto, o instituto da desapropriação já seria letra morta.  Entretanto, a bancada ruralista do Congresso, cegamente apegada ao latifúndio, já anda articulando, sorrateiramente, a criminalização da ocupação de terra como terrorismo e, portanto, como “crime hediondo”.

A omissão da garantia da função social da propriedade pelo exercício da desapropriação viola abertamente a Carta Magna em questão fundamental.  Esta quebra da função social não tipifica crime de responsabilidade do Estado?

A reforma agrária, sempre farta no discurso demagógico governamental e escassa na prática, hoje desapareceu até do discurso.  As estimativas, ainda não divulgadas, é que em 2006 tenham sido assentadas apenas cerca de 40 mil novas famílias.  Como os recursos orçamentários para 2007 são praticamente os mesmos irrisórios de 2006 não se pode esperar nenhum avanço significativo em termos de novos assentamentos de reforma agrária.  É a prática descarada da anti-reforma agrária. 

E o “agro-combustível”? Aqui, pelo contrário, o dinheiro corre solto.  A começar pelo perdão bilionário para usineiros.  Num dos períodos mais lucrativos para os usineiros de cana-de-açúcar no país, o Banco do Brasil concedeu ao setor perdão de dívidas superior a R$ 1 bilhão conforme documentos obtidos e publicados pela Folha de São Paulo. 

Agora, com as alianças com o grande capital internacional, sobretudo o norte-americano, em vista do agronegócio da energia chamada “limpa”, o ritmo de implantações de usinas de álcool no país, com os respectivos canaviais, é na média de uma por mês até 2010.  É grande, conseqüentemente, a corrida à terra, principalmente a terra com mananciais, por parte de empresas nacionais e estrangeiras.  Nunca a terra esteve tão valorizada.  Como fica, então, a reforma agrária que vinha sendo feita pelo modelo da compra da terra e já com parcos recursos? Como fica a soberania territorial?

Levanta-se também a questão da soberania alimentar.  Trata-se do direito do acesso à terra, ao território, às sementes, trata-se do direito a se alimentar de acordo com a própria cultura.  Com efeito, a proposta, até tentadora, de incorporar a agricultura familiar neste grande projeto do etanol com a expectativa da diversificação da cultura, vem resultando, ao contrário, na perda da pequena propriedade incorporada ao latifúndio da cana na forma do aluguel pago antecipadamente.  Acaba logo o dinheiro e a família não consegue recuperar sua terra arrasada pela monocultura.  Nisto até os quilombolas e os índios vêm sucumbindo.  Amanhã não faltarão tanques cheios às custas de barrigas vazias.

Propala-se muito a multiplicação do emprego.  Há, de fato, uma corrida em disparada em direção aos canaviais, semelhante à do garimpo.  Muitas escolas do Nordeste se fecharam porque os alunos migraram para o corte da cana.  Gente de toda procedência, da cidade e também do campo, posseiros, pequenos produtores, até assentados.  O trabalho existe, sim, mas veja-se o quadro sombrio acima.  O trabalhador, estimulado a competir com as máquinas, tenta às vezes cortar de 12 a 20 toneladas de cana por dia.  Mas as máquinas, temidas pelos cortadores de cana, estão chegando para ficar.  Por fim, nem trabalho, nem terra, nem reforma agrária.  Fica a anti-reforma agrária. 

Felizmente as organizações sociais estão agora se mexendo, depois de um tempo de paralisia, na expectativa do sonho de mudança a partir do Governo.  É hora, pois, da reforma que nos restitua um Estado estruturado para cumprir sua verdadeira razão de ser a serviço do povo, em lugar do Estado que está aí, majoritariamente voltado para o empresariado capitalista.

- Dom Tomás Balduino é Conselheiro permanente da Comissão Pastoral da Terra e bispo-emérito da Cidade de Goiás, Goiás.

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