Diz especialista em regulação da mídia

“Grupos de comunicação não cumprem a lei na Argentina”

26/08/2013
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A Justiça argentina está perto de se pronunciar sobre a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual (LSCA, conhecida como Lei de Meios). Uma audiência pública entre o Estado e o Grupo Clarín, marcada para esta quarta-feira (28/08), é o passo prévio a uma sentença definitiva sobre a constitucionalidade de dois artigos da norma questionados pela empresa e suspensos por medida cautelar até que a Suprema Corte se pronuncie.

A Opera Mundi conversou com o especialista em regulação de meios de comunicação Santiago Marino, mestre em Comunicação e Cultura pela UBA (Universidad de Buenos Aires), onde é docente na carreira de Ciências da Comunicação, e coordenador acadêmico do mestrado em Indútrias Culturais da Universidad de Quilmes.

Em um cenário de polarização das posições a respeito da lei, Santiago defende a LSCA, fruto de três décadas de debate na sociedade civil argentina e aprovada no Congresso há quatro anos, mas assume uma posição crítica ao atual governo, que segundo ele reduz a aplicação da norma à disputa com o Grupo Clarín (leia a entrevista mais abaixo).

Discussão
 
Dois artigos são discutidos: o 45, que estipula a quantidade máxima de licenças que uma empresa de comunicação pode ter, seja em TV, rádio ou cabo; e o 161, que determina a obrigação de se desfazer das excedentes. O processo tramita há quatro anos em instâncias inferiores.
O Clarín alega que o artigo é inconstitucional, pois não deveria regular a operação de TV a cabo, já que a rede não faz parte do espectro radioelétrico e tampouco é uma concessão pública. O grupo de mídia defende que as licenças de cabo não devem ser levadas em conta na hora de se determinar o que é excedente.

Aprovada pelo Congresso em outubro de 2009, em dezembro do mesmo ano a LSCA foi suspensa por decisão de um tribunal estadual da província de Mendoza. Durante seis meses a regulação da mídia na Argentina ficou em um limbo, já que o governo se recusava a aplicar a norma anterior, sancionada em 1980 pela última ditadura militar, e a nova lei estava suspensa em todo o território nacional.

Em junho de 2010 a Suprema Corte do país interveio e declarou que a instância estadual não poderia suspender uma norma em nível nacional e determinou o prazo de 36 meses de vigência da cautelar referente ao artigo 161 da lei.

Audiência

A Suprema Corte argentina chamou para participar da audiência pública amicus curiae – partes externas que defenderão os pontos de vista do Estado e do Grupo Clarín na disputa judicial. No fim da tarde de terça-feira (27/08), a Corte confirmou a participação da Universidade Nacional de Lanús, da Universidade Nacional de San Martín, do CELS (Centro de Estudos Legais e Sociais, da Cooperar (Confederação Cooperativa da República Argentina) e da Associção Argentina de Juristas como amicus do Estado.

O Clarín será representado pelo Observatorio Iberoamericano da Democracia, pela Organização de Associações de Empresas de Televisão Paga para Iberoamérica, pela Associação Internacional de Radiodifusão em conjunto com a Adepa (Associação de Entidades Jornalísticas Argentinas), pelo Codelco (Comitê do Consumidor) e pelo diretor do departamento de Direito da Universidade de San Andrés.

Duas partes independentes (a Defesa do Público de Serviços de Comunicação Audiovisual (Poder Legislativo) e do Centro de Estudos em Dereito e Economia da Universidad de Buenos Aires) também foram aprovadas pelo Supremo argentino. 
 
Leia mais
 
Marino: "Lei é mal aplicada"

Opera Mundi: A audiência pública convocada pela Corte Suprema traz algo de novo ao debate sobre a LSCA?

Santiago Marino: É difícil identificar se traz efetivamente algo novo porque Corte, em seus argumentos, expõe a necessidade de participação cidadã na reforma institucional, mas isso já aconteceu durante os fóruns anteriores à chegada do projeto de lei ao Congresso e também durante as audiências públicas no Congresso. Na Câmara de Deputados houve audiência aberta e o Senado convocou especialistas, representantes de organizações, governadores, donos de meios de comunicação. Depois houve a elaboração participativa da norma, para o decreto de regulamentação, com participação da sociedade. O que é novo é a participação no cenário judicial, porque durante os últimos quatro anos de judicialização da norma o público e os cidadãos foram espectadores e observadores do processo.

OM: Qual é a sua opinião sobre esse novo cenário judicial?

SM: Existe algo que eu considero necessário destacar, que é que a Corte Suprema convocou Estado e Grupo Clarín em pé de igualdade. O Estado e uma empresa não são a mesma coisa. Por mais que haja distância ideológica com o governo, com o kirchnerismo neste caso, é preciso diferenciar com clareza que o Estado e o Grupo Clarín estão em patamares diferentes. Por fim, acredito que seja uma estratégia da Corte Suprema para adiar o momento de decisão, ainda que seja uma estratégia inteligente, porque usa um mecanismo que amplia a participação cidadã.
Arquivo Pessoal

OM: Qual deve ser o ponto central do pronunciamento da Suprema Corte sobre a LSCA?

SM: Há quatro aspectos em discussão: os limites da concentração de meios de comunicação em geral, a concentração de TV a cabo, a propriedade cruzada dos meios de comunicação e a obrigação de desconcentrar. A chave está no segundo e no terceiro, que é onde a sentença da Corte pode afetar a lei, se o Supremo declara a inconstitucionalidade do limite de concentração em TV a cabo e se declara a inconstitucionalidade o limite à propriedade cruzada. Quero dizer, a chave está no artigo 45.

OM: Como o senhor lê em termos políticos que a aplicação da lei passe por uma disputa judicial entre o Estado e o Grupo Clarín?

SM: É certo que a decisão de sancionar a lei foi tomada em um cenário de conflito entre o governo e o Grupo Clarín, que antes eram sócios. Mas é difícil encontrar um governo que tenha dado tanto ao Grupo Clarín quanto o de Néstor Kirchner (2003-2007). O grupo era benevolente com o governo em troca de 'furos', financiamento, publicidade oficial e um marco regulatório que o beneficiava. A lei emerge em 2008, em um cenário de enfrentamento por conta do conflito entre o governo e o setor rural [quando houve tentativa de aprovar uma lei de retenção de impostos para o setor agropecuário].

Agora, quando se lê a lei é muito difícil encontrar aspectos que sejam estritamente contra o Clarín. Há alguns artigos que podem ser vistos dessa maneira, mas porque o Clarín concentra meios de comunicação.

OM: O senhor considera que há duas etapas da LSCA, um que vai de 2009 a 2011 e outro de 2011 em diante. Quais são as diferenças entre esses dois momentos de aplicação da lei?

SM: Em ambos períodos a lei é mal aplicada. O que muda são os fatores que levam a isso, mas não os protagonistas da questão. Entre 2009 e 2011 há uma combinação entre a incidência dos grandes grupos concentrados sobre o Judiciário que termina por conseguir que a justiça impeça a aplicação da lei. A LSCA é aprovada em outubro de 2009 e em dezembro o Clarín obtém a cautelar sobre a qual estamos falando até hoje. A ação dos partidos de oposição, que se apropriaram da agenda das empresas de comunicação, foi fundamental para isso. A Justiça de Mendoza suspendeu a aplicação da lei depois de uma denúncia de um deputado que, ao terminar a votação no Congresso, foi direto ao seu estado e abriu um processo judicial para impedir sua aplicação. Esse período também é marcado pela falta de decisão política do governo nacional para implementar a legislação.

Em 2011, quando Cristina Fernández de Kirchner é reeleita com ampla maioria, há uma fase intermediária que vai até setembro de 2012, quando essa falta de decisão política começa a ser preponderante na má aplicação da lei, ganha mais força que a capacidade dos grupos de comunicação para incidir nas decisões judiciais depois da sentença da Corte Suprema em 2010, que determina um prazo para o fim da medida cautelar que suspendia a norma em âmbito nacional. Isso se combina à redução de toda discussão ao Grupo Clarín. Não há um plano técnico, não há licenças para cooperativas em TV a cabo, previsto pela lei, não há fomento à produção.

OM: E também não há aplicação da lei para grupos que não estão protegidos por medidas cautelares.

SM: Esse é outro aspecto. Os grupos concentrados decidem não cumprir a lei. No caso específico do Clarín, não apresenta sequer o plano de adequação à norma. Mas também há desrespeito à norma quando não se adequam os conteúdos veiculados: não emitem a quantidade de filmes nacionais estipulada, não respeitam os prazos de tempo publicitário. Na Argentina não há um vínculo entre as empresas privadas e o respeito às normas. Nem a esta nem a outras. O jornal La Nación, por exemplo, não paga os impostos trabalhistas de seus funcionários há 10 anos. Por quê? Porque historicamente os governos e os meios de comunicação foram sócios. A cultura empresarial argentina passa por não respeitar as normas.

OM: Quais são as consequências políticas da falta de aplicação da lei?

SM: O governo fica debilitado. Se o governo tivesse implementado ações para fazer valer o resto da lei, sua posição seria mais legítima diante da discussão política, inclusive diante do Judiciário. Se tivesse implementado o plano de adequação do resto dos grupos com transparência, ficaria evidente a estrutura dos meios de comunicação, inclusive dos que são aliados.

OM: Como o senhor avalia o cenário atual da disputa judicial e seu desenlace político?

SM: Seria um cenário drástico se sete membros de um tribunal têm maior peso que os de 257 deputados e 72 senadores do Congresso, além da sociedade, que discutiu a lei por três décadas. Esses sete membros estão aí por mérito, mérito permitido pelo próprio Néstor Kirchner com a reforma da Corte Suprema.

É preciso lembrar, no entanto, que as razões da sentença serão políticas, não há dúvidas. É uma sentença transcendental para a relação entre o Estado e uma parte das corporações. Podem até apresentá-la como um pronunciamento técnico, mas é político.
 
- Aline Gatto Boueri | Buenos Aires
 
 
https://www.alainet.org/fr/node/78762
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