Guerra civil no distrito petrolífero do Rio de Janeiro
- Opinión
Em 2006, com o anúncio público de extraordinárias reservas de petróleo, o Brasil foi abruptamente levado para o centro da geopolítica das grandes potências. E isso mudou tudo.
Pelo menos até 2014, a confluência de interesses nacionais de construção civil pesada e de empresas de mineração ajudou a garantir uma democracia liderada pela esquerda. Essa associação explica os principais movimentos do país desde então: (i) aproximação econômica com a China; (ii) expansão das fronteiras econômicas para a América do Sul e África; e (iii) geração de massa crítica de empregos tecnológicos qualificados no país.
No entanto, as enormes reservas de petróleo descobertas no subsolo profundo atraíram o interesse dos EUA. O hegemon passou a entender então o caminho escolhido pelos brasileiros como ameaça. O petróleo não é apenas “ouro negro”. É também o combustível de quase todo o transporte de mercadorias e passageiros no mundo. Sem o fornecimento contínuo de produtos processados (refino), as megalópoles rapidamente se tornam inviáveis e os países sem meios de defesa.
Os principais atores do “projeto nacional brasileiro” entre 2003 e 2014 foram sistemática e politicamente eliminados entre 2014 e 2016. O Supremo Tribunal Federal, o Congresso e a mídia corporativa ajudaram a implementar técnicas de guerra desenvolvidas dentro das agências de inteligência dos EUA (guerra híbrida, cooptação do Judiciário, espionagem etc.). A operação “de mãos limpas” Lava Jato atingiu estritamente os protagonistas do projeto brasileiro: firmas de engenharia, Petrobras, BNDES e líderes políticos responsáveis pela gestão e coordenação de políticas públicas.
O objetivo do presente trabalho é argumentar que a presença direta e indireta dos EUA no Brasil nos próximos anos deverá aumentar. Ao ponto de já ser possível identificar relações neocoloniais impostas de maneira profunda a partir do dominador externo. Pela primeira vez sob a égide norte-americana.
Nesse contexto, considerando-se a pior hipótese de que o tráfico de drogas não deponha armas, argumenta-se que o distrito petroleiro do Rio de Janeiro se tornará, nos próximos anos, um território de guerra.
1.A complexidade do crime organizado no Rio de Janeiro
Deve-se reconhecer que o porto do Rio de Janeiro foi elemento-chave na acumulação de riqueza pelas elites de São Paulo e de Minas Gerais desde meados do século 18. A política e o comércio no Rio de Janeiro tiveram papel fundamental: (i) como entreposto para o tráfico ilegal de escravos, quando as exportações de café ganhavam competitividade mundial; e (ii) como centro comercializador de droga estimulante, ingerida na forma de uma bebida preta, essencial para motivar a massa de trabalhadores recém-encarcerados nos EUA e na Europa.
Apesar de ser problema nacional, o tráfico de drogas foi inicialmente estabelecido nos morros e áreas pobres do Rio de Janeiro no início do século passado. No entanto, apenas nos anos 1980 o tráfico passou a ganhar escala. Anteriormente, era centrado na maconha, com emprego de armas leves, cujo símbolo máximo era o revólver de 38 calibres.
Nos anos 80, a cocaína começou a se espalhar entre camadas mais prósperas em quantidades crescentes, o que intensificou o processo de competição entre traficantes. Os primeiros rifles AR-15 apareceram. A cidade cresceu e o mesmo aconteceu com o número de favelas. A política possui enlaces com a cocaína desde o início. Primeiro nos anos 70, devido ao encarceramento de militantes de esquerda com criminosos comuns, foram criadas organizações criminosas complexas (Comando Vermelho).
Depois dos anos 80, a crescente corrupção da polícia e a correlação entre drogas e votos levaram os governos a se adaptar ao crime, limitando-se o confronto. Os anos 90 podem ser percebidos como a “era dourada” do tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Passado o apogeu, a concorrência autofágica aumentou entre traficantes de drogas.
Uma rápida sucessão de líderes, frequentemente mortos em conflitos entre grupos, elevou o número de violência na cidade. Os jovens, cada vez mais jovens, em infinita sucessão, surgem de um mundo de oportunidades restritas e escassez material. Espera-se que, uma vez que os militares iniciem a repressão em larga escala, os traficantes locais que lutam entre si estarão juntos contra ameaça externa mútua.
Em 2008, 71 favelas eram dominadas por traficantes e 85 pelas milícias. Formadas por ex-militares, as milícias são grupos armados que se beneficiam da repressão policial contra traficantes de drogas. Uma vez que uma comunidade é invadida pela polícia, uma milícia garante a ordem social no dia seguinte. Mas as milícias cedo também começaram a fornecer serviços públicos, como água, gás, energia, tv a cabo etc. Tudo estritamente ilegal – nem contas, nem impostos. Recentemente, a milícia restabeleceu o tráfico de drogas como parte de seu cardápio ilegal. Milícias e tráfico de drogas possuem leis próprias, e qualquer desobediência contra as regras geralmente é punida com crueldade.
Por outro lado, o território do Rio de Janeiro tornou-se recentemente crucial para a geopolítica do petróleo dos EUA. Por causa disso, entende-se que nenhum grupo pesadamente armado, que possa ser cooptado por interesses “comunistas”, será mais tolerado pelo dominador estrangeiro. O retorno das forças militares à vida política se explica pelo imperativo da segurança.
Pela segurança é que deveria haver, entende-se que a qualquer custo, estreita relação entre o novo presidente eleito, os militares e o governo dos EUA. Para ampliar a confiabilidade no suprimento de petróleo, antecipa-se que os EUA estenderão ao Brasil os melhores meios para identificação e monitoramento de ativismo político. Para isso, torna-se importante que o Governo local colabore para que se implante tudo o que vemos nos filmes, plus acesso gratuito a todos os bancos de dados oficiais.
O “pacote de bondades” inclui “compartilhamento” de dados de biometria, finanças e redes sociais dos brasileiros. Como se pode compreender facilmente, a perseguição aos traficantes, moradores de áreas miseráveis, não impedirá a criminalidade ou o fornecimento de drogas no Rio de Janeiro. A verdadeira questão deve ser: em que configuração as elites locais atenderão às necessidades dos dominadores externos e continuarão a lucrar?
2.Um barril de óleo prestes a explodir
De acordo com o Mapa da Violência publicado pelo IPEA, 62.000 cidadãos foram assassinados em 2016, o que representa 10% da perda total de vidas no país. Entre estes, 72% de todos os assassinatos foram cometidos com armas de fogo. O Rio de Janeiro respondeu por 18% do crescimento anual. A quantidade e a sofisticação do armamento despachado pelos traficantes para o Brasil aumentam exponencialmente (Figura 1).
A resposta oficial tem sido a construção de novas instalações prisionais. Em 2017, mais de cem mil pessoas foram encarceradas por causa do tráfico de drogas. Cinco vezes quando comparado com a década anterior.
Infelizmente, o laissez faire, laissez passer não parece obter bons resultados como política de segurança. Nos últimos anos, o Departamento de Polícia do Rio de Janeiro dedicou tempo e esforços para a prevenção e repressão de crimes com alto grau de violência, como sequestro, agressão sexual, homicídio, etc. O resultado foi uma diminuição significativa no número de casos reportados de violência no território.
Por outro lado, desde 2012, os crimes contra os cidadãos quase duplicaram. Durante o mesmo período, os crimes contra a riqueza mais do que triplicaram. Em 2014, o Exército lançou uma das maiores operações urbanas que as Forças Armadas do Brasil já empreenderam – a Operação São Francisco, conduzida no Rio de Janeiro contra o tráfico de drogas. A permanência do problema levou o governador a pedir uma intervenção militar em janeiro de 2018.
Com a eleição do ex-militar J. Bolsonaro para a presidência da República em novembro passado teme-se que o Exército se prepare para uma ofensiva armada em larga escala contra o tráfico de drogas no Rio de Janeiro. A despeito da vida de muitas pessoas pobres que vivem nas áreas dominadas.
Para garantir a “vitória do bem”, os EUA estão apoiando a preparação brasileira para a guerra civil. Em 2016, chegaram mais de 50 veículos de vários tipos: 34 veículos modelo M577 A2, 12 veículos modelo M113 A2 e quatro veículos de recuperação blindados M88 A1. Todos objeto de doação realizada pelo governo dos EUA por meio de “programa de vendas militares no exterior”.
A quantidade e variedade de armas armazenadas pelo tráfico de drogas no Rio de Janeiro são pouco conhecidas. Especialistas (Viva Rio) estimam que quase metade dos 15,5 milhões de armas de fogo no Brasil está associada ao tráfico de drogas, sendo metade localizada no Estado do Rio de Janeiro. Pode-se concluir que não menos que 2 milhões de armas de fogo podem ser distribuídas entre a população, se o tráfico de drogas decidir coordenar uma resistência armada no ERJ.
Os moradores das “favelas” aumentaram mais de 27% nos anos entre 2000 e 2010. Em 2018 havia 1,4 milhão de pessoas (20% do total) vivendo em favelas na cidade do Rio de Janeiro. Conclusivamente, o acesso a armas não parece um problema para uma possível resistência armada contra a aplicação da lei.
O grande impedimento parece ser a cooptação dos moradores. Os traficantes de drogas podem fazê-lo por meio de imposição, recompensas ou voluntarismo. Excluído voluntarismo, as demais soluções demandariam muitos recursos por parte dos traficantes. Ademais, nas outras vezes em que o tráfico foi confrontado, recuou. O voluntarismo pode surgir se, e somente se, as forças oficiais forem brutais com os pobres e/ou a permanência do desemprego não trouxer outra perspectiva de futuro que a miséria.
Daqui a dez anos, o resultado histórico provavelmente acomodará os principais atores em novo arranjo social: (i) o tráfico de drogas armado terá sido derrotado com a ajuda dos EUA, apesar da perda de almas no território contestado; (ii) a milícia se espalhará por todas as áreas mais pobres e a paz prevalecerá às custas da liberdade; (iii) os políticos serão beneficiados pelos votos reunidos pela milícia; (iv) o tráfico de drogas permanecerá como um trabalho possível para aqueles que são progressivamente excluídos do mundo moderno.
- Marco Aurélio Cabral Pinto é professor da Escola de Engenharia da Universidade Federal Fluminense, mestre em administração de empresas pelo COPPEAD/UFRJ, doutor em economia pelo IE/UFRJ. Engenheiro no BNDES e Conselheiro na central sindical CNTU. É colunista do Brasil Debate
27/11/2018
http://brasildebate.com.br/guerra-civil-no-distrito-petrolifero-do-rio-de-janeiro/
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