Ricardo Gebrim: “O desafio é organizativo e ideológico”
07/06/2010
- Opinión
Entrevista
Ricardo Gebrim, da Consulta Popular, acredita que momento não é de formular uma teoria superadora mas, principalmente, resgatar a atualidade dos elementos centrais que asseguraram as revoluções no século 20
HÁ UM PROCESSO de alteração no caráter da crise, que parcialmente vai mudando de uma crise de acumulação de capital para uma crise fiscal dos Estados nacionais. Essa é a avaliação de Ricardo Gebrim, da Consulta Popular. Para ele, isso se dá através do intenso conjunto de políticas de ajuda e salvamento direcionadas às mais diversas frações da burguesia. Por outro lado, segundo Gebrim, vivemos um longo período de descenso da luta de massas. “Lutas ocorrem e podem gerar conflitos radicais localizados, mas permanecem localizados e não se expandem”, avalia.
Em entrevista ao Brasil de Fato, ele afirma que a Consulta Popular vai aproveitar o momento eleitoral para promover a agitação e propaganda dos pontos programáticos.
do projeto popular. E acrescenta: “Continuaremos dando prioridade ao nosso trabalho de organizar o povo, promover a formação política e incentivar as lutas sociais. Nossas lutas acumulam as forças necessárias que são imprescindíveis para um processo revolucionário”.
Brasil de Fato – Como você avalia a atual crise do capitalismo, que teve seu ápice nos EUA em 2008 e que agora se mostra com força na Grécia?
Ricardo Gebrim – Em nossos debates na Consulta Popular seguimos prognosticando que a crise capitalista será profunda e prolongada. Afirmamos isso por entender que se trata de uma crise de superprodução. Quer dizer, a causa é o acirramento de uma tendência do capitalismo em produzir um desenfreado aumento da capacidade produtiva na busca de lucro, ultrapassando seus próprios limites e acarretando contraditoriamente o declínio da taxa de lucro, implicando na diminuição do ritmo de acumulação, no desemprego dos trabalhadores e na própria destruição e desvalorização de capital. É verdade que a crise não nos atingiu fortemente e mesmo em nosso continente os impactos maiores se deram no México e na América Central. Por isso mesmo, criou-se um falso cenário de que a crise estava superada. E muitos setores populares passaram a compartilhar esse entendimento. Tal otimismo precipitado pode induzir a um grave erro de análise política. O que presenciamos é um processo de alteração no caráter da crise, que parcialmente vai mudando de uma crise de acumulação de capital para uma crise fiscal dos Estados nacionais, através do intenso conjunto de políticas de ajuda e salvamento direcionadas às mais diversas frações da burguesia. É o que assistimos na Grécia e Espanha e que provavelmente seguirá ocorrendo nos próximos anos.
Em recente artigo, o professor José Paulo Netto (da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro) disse que a crise da esquerda não é teórica, mas sim organizacional. Você concorda com essa avaliação?
Estamos enfrentando um longo período de descenso da luta de massas. Se considerarmos que a Revolução Popular Sandinista em 1979 foi a última conquista revolucionária de um Estado, estamos quase alcançando o intervalo de 34 anos que vai da Comuna de Paris em 1871 até a Revolução Russa de 1905. E sabemos que nos períodos de descenso o pensamento revolucionário enfrenta condições extremamente adversas para se construir e sua capacidade de influência é muito limitada. Além disso, a marca central deste período de descenso é o impacto ideológico que acompanhou o fim da União Soviética e demais repúblicas populares do Leste Europeu. Por mais problemas que apresentassem, a derrota destas experiências abalaram profundamente as convicções e esperanças de todos lutadores. Esse impacto reavivou concepções teóricas que haviam sido enterradas pela luta de classes e reaparecem com novas roupagens e autores. Concordo, porém, com José Paulo Netto ao afirmar que os elementos teóricos fundamentais para uma transformação revolucionária estão garantidos. Realmente não se trata de formular uma teoria superadora mas, principalmente, resgatar a atualidade dos elementos centrais que asseguraram as revoluções no século 20. Neste sentido, nosso desafio é fundamentalmente organizativo e, acrescento, também ideológico, para não se perder neste momento tão adverso em que a cada seis meses, surge uma teoria da moda.
Mas será que o descenso não virou uma desculpa para não avançar mais?
Tua pergunta reflete bem uma exasperação que existe na militância quando escuta a palavra descenso. Realmente, toda uma geração que despertou para a luta a partir da década de 1990 já não aguenta mais ouvir essa palavra. Porém, o descenso existe. Pode ser medido objetivamente pela perda da massa salarial e direitos trabalhistas, mas também é identificado subjetivamente pela inviabilidade das formas de luta se generalizarem e pelo desânimo em buscar soluções coletivas. Quer dizer, lutas ocorrem e podem gerar conflitos radicais localizados, mas permanecem localizados e não se expandem. São os períodos históricos em que os mecanismos de dominação são efetivos e apesar de se produzirem tensões, funcionam bem, cumprindo o papel de manter a ordem. É claro que um período histórico de descenso da luta de massas não pode servir como desculpa para deixar de construir lutas, até porque o re-ascenso também depende do papel dos indivíduos na história. Porém, por maior que seja nossa vontade, estamos limitados pelas circunstâncias históricas deste momento de refluxo.
Mas isso não é muito pessimista?
Pelo contrário. Os projetos de transformação e as organizações revolucionárias constroem-se exatamente nos períodos de descenso, quando podem se dedicar a formar seus quadros, construir a confiança entre seus militantes, consolidar-se ideologicamente e definir sua estratégia. Mesmo sabendo que o re-ascenso não depende apenas de nossa vontade, nossas lutas acumulam as forças necessárias que são imprescindíveis para um processo revolucionário.
Neste cenário de descenso que você apresentou, quais são os desafios atuais para a classe trabalhadora?
Antes de tudo, sobreviver a essa conjuntura tão adversa, preservando os quadros, especialmente os mais jovens, mantendo os valores, princípios e os ideais de uma sociedade socialista. É preciso reconstruir as bases políticas, organizativas e ideológicas para esse processo revolucionário. Isso implica formar toda uma geração de lutadores, em construir um paciente trabalho de base, em construir a unidade das forças populares e ter uma política clara que sempre identifica e aponta para o inimigo. Mas tudo isso necessitará encontrar circunstâncias históricas favoráveis e não será a tarefa de uma única força política.
Como você avalia a esquerda brasileira nesse atual cenário?
Desde o final da década de 1980 até 2002, a centralidade tática que unificou a esquerda brasileira foi a eleição de Lula. Ao longo deste processo a questão estratégica de conquista do Estado foi gradativamente sendo reduzida para a vitória administrativa. Portanto, não é casual que a vitória de 2002 desencadeie todo um processo de rearranjo das forças políticas de esquerda. Esse cenário gerou uma intensa divergência tática. Alguns setores acharam que o central era sustentar a todo custo o governo Lula, ainda que tivessem que rebaixar seus programas, e outro setor passou a ter como objetivo central constituir-se numa oposição eleitoral ao governo Lula. Hoje já é possível fazer um balanço deste processo e achamos que ambas as táticas foram equivocadas. Elas permaneceram aprisionadas na lógica do governo e na luta eleitoral e parlamentar. Nós optamos por uma tática diferente. Deixamos claro que o governo Lula não era o nosso inimigo, mas não deixamos de enfrentá-lo na questão agrária, na política econômica, na política energética, nos leilões entreguistas do petróleo e todas as outras ações antipopulares. Tampouco tivemos vergonha de apoiá-lo como no recente episódio do acordo com o Irã e a Turquia. Nossa referência nunca foi a sustentação ou a oposição ao governo, mantendo sempre a autonomia em torno das bandeiras do projeto popular. Neste cenário, o grande desafio consiste em unificar a esquerda e o conjunto das forças populares em torno de um programa e um calendário de lutas. Retomar o projeto estratégico e construir força social que o sustente. A isso chamamos de construir um projeto popular para o Brasil.
E como você vê a atuação dos movimentos sociais no Brasil?
Apesar de enfrentarmos uma conjuntura adversa para as lutas sociais neste período de descenso, existem paradoxalmente possibilidades promissoras de avanços organizativos e consolidação de espaços unitários. Apostamos na construção da Assembleia Popular enquanto uma articulação de lutadores e lutadoras populares, que não abandonaram o método do trabalho de base e têm a prática permanente de debater e lutar por um projeto popular para o Brasil.
Esse ano teremos eleições no Brasil. Ao que tudo indica não há nenhuma perspectiva viável eleitoralmente, capaz de enfrentar os grandes desafios do ponto de vista da esquerda. Como você vê esse cenário?
Ao longo de seu processo de construção, o PT aprovou em 1986 o chamado “Programa Democrático Popular”. Segue sendo um programa extremamente atual que enfrenta os principais problemas estruturais de nosso país. Ainda que alguns setores não gostem do nome, todas as principais forças populares sustentam o mesmo programa porque nossos problemas permanecem os mesmos. Porém, esse não foi o programa adotado no governo Lula. O programa implementado pelo governo rebaixa completamente aquele programa histórico. A grande questão é que, ao contrário dos setores mais organizados e das forças de esquerda, a maioria do povo brasileiro não considerou que houve um rebaixamento programático porque não tinha expectativa nestas transformações. Enxergam o governo Lula como um avanço, uma conquista. Vivenciaram como uma experiência positiva e concretamente existiram aspectos positivos. E todo o esforço de retomar as bandeiras históricas do programa que enfrenta os problemas estruturais não é percebido pelo nosso povo enquanto uma alternativa política. Esse é um tremendo desafio para as forças populares. Exigirá unidade e a realização de muitas lutas para aparecermos enquanto alternativa. Nestas eleições haverá um plebiscito, entre a manutenção deste projeto rebaixado e o retrocesso. O projeto popular não estará em debate e as candidaturas de esquerda que tentam romper essa lógica são residuais, impotentes para alterar essa lógica.
Mas qual é a posição da Consulta Popular nestas eleições?
Recentemente realizamos nossa III Plenária Nacional, onde deliberamos não apoiar nenhuma candidatura presidencial no primeiro turno. Aproveitaremos o momento eleitoral para promover a agitação e propaganda dos pontos programáticos do projeto popular. Continuaremos dando prioridade ao nosso trabalho de organizar o povo, promover a formação política e incentivar as lutas sociais. Também decidimos que vamos nos empenhar em denunciar e combater as candidaturas que expressam o projeto neoliberal e o imperialismo, como a candidatura de Serra.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o jornalista José Arbex Jr. defendeu a criação de um novo instrumento político, impulsionado pelo movimentos sociais, que seja capaz de fazer frente ao atual estágio capitalista no país. Como você vê essa proposta? A esquerda brasileira precisa construir um novo partido revolucionário?
O Arbex é um grande amigo nosso, embora não seja militante da Consulta Popular. Sua proposta expressa a angústia das pessoas sensíveis aos problemas sociais e aflitas para responder rapidamente a um processo complexo que exige uma construção paciente. Em nossa experiência, aprendemos que a necessidade de contar com uma referência política que se coloque de forma visível para as massas não depende apenas da vontade das lideranças. A recente construção do Psol por lutadores sérios e consequentes apostava nesta possibilidade e sua atual crise demonstra os limites deste caminho. Nossa aposta enquanto Consulta Popular, que estamos construindo desde 1997, aponta em outra direção. Percebemos que não bastava reunir alguns bons militantes, aprovar um programa e disputar cargos institucionais para resolver esse problema. Não estamos preocupados com nossa visibilidade e sim com a construção de uma estrutura de quadros, organizados em núcleos que funcionem de modo regular, construindo coletivamente uma estratégia unitária que tem como centro a luta pela conquista do poder do Estado. Sabemos que é uma aposta que exige a combinação de paciência e ousadia. Os desafios são enormes, mas aprendemos que a construção de um projeto revolucionário precisa ser desenvolvida exatamente nos períodos não revolucionários da história. Estamos orgulhosos com nossa trajetória.
Quem é
Ricardo Gebrim é advogado, ex-presidente do Sindicato dos Advogados do Estado de São Paulo e integrante da coordenação do Movimento Consulta Popular. Foi presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE Livre da PUC) em 1980 e militante da Solidariedade com a Revolução Nicaraguense. De 1988 a 1991, foi assessor jurídico da Central Única dos Trabalhadores (CUT).
Brasil de Fato – edição 379 - de 3 a 9 de junho de 2010
https://www.alainet.org/fr/node/142027
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