Resposta indígena ao papa Bento XVI

20/05/2007
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Posição da Cnfederação dos Povos de Nacionalidade Kichwa do Equador frente às declarações emitidas por Bento XVI na Conferência dos Bispos da América latina e do Caribe (Celam) no Brasil, em maio de 2007.

Nós, Povos e Nacionalidades Indígenas do Continente de Abya Yala (América), rechaçamos energicamente as declarações emitidas pelo Sumo Pontífice no que diz respeito à nossa espiritualidade ancestral e os comentários políticos emitidos em relação a alguns presidentes latino-americanos e do Caribe, ainda mais quando tais declarações são feitas diante de um continente no qual o fosso entre os pobres e os ricos se aprofunda cada vez mais, e onde se encontra grande parte da “feligreja” católica do mundo, o que implica séculos de uma “evangelização” que não conseguiu dar como frutos uma vida justa e digna para seus habitantes.

Estas declarações foram proferidas justamente quando a vida Planetária está ameaçada de morte, e não são responsáveis por isto os presidentes que o Papa cita em suas alocuções, mas sim aqueles que, como o presidente norte-americano George W. Bush, desfraldam a bandeira do voraz sistema capitalista neoliberal.

Por este motivo, é inconcebível que sejam os Presidentes Latino-americanos de viés humanista os que causem preocupação a alguém que se preza por ser o representante de Cristo na Terra.

Está na hora de se compreender que nosso continente tem direito a exercer sua livre determinação. Já não é mais tempo de novas e renovadas conquistas em nome de nada.

Se analisarmos com uma sensibilidade humana elementar, sem fanatismo de qualquer espécie, a história da invasão de Abya Yala realizada pelos espanhóis com a cumplicidade da Igreja Católica, o mínimo que podemos fazer é nos indignar.
Seguramente o Papa desconhece que os representantes da Igreja Católica naquele tempo, com honrosas exceções, foram cúmplices, encobridores e beneficiários de um dos mais horrorosos genocídios que a humanidade jamais presenciou.

Mais de 70 milhões de nativos foram mortos em campos de concentração em minas, em obras etc. Nações e povos inteiros foram arrasados. Basta ver o caso de Cuba, onde para substituir os mortos trouxeram os povos negros que sofreram desgraçada sorte. Usurparam as riquezas dos nossos territórios, para salvar economicamente seu sistema feudal. Nossas mulheres foram covardemente violadas e milhares de crianças morreram por desnutrição e enfermidades desconhecidas.

Tudo isto foi feito sob o pressuposto filosófico e teológico de que nossos ancestrais “não tinham alma”.

Junto aos assassinos dos nossos heróicos dirigentes, havia sempre um sacerdote ou bispo para doutrinar o condenado à morte e convencê-lo a batizar-se antes de morrer, renunciando as suas próprias convicções filosóficas e teológicas.

Recordemos o padre Valverde, que em Cajamarca apresenta a Bíblia a Atahualpa, dizendo-lhe que é a palavra de Deus. O Soberano, vendo que o livro não fala e considerando que a Palavra de Deus falava no coração da Mãe Terra, na água, no vento, na força luminosa do Sol e na fecundidade da Lua, nos batimentos do coração dos seres humanos, animais e plantas, atirou ao solo a Bíblia. Diante disso, o padre Valverde ordenou aos soldados a prisão de Atahualpa.

Posteriormente, o representante nestes territórios do Deus Solar-Lunar foi assassinado, após ser batizado com o nome do seu assassino, Francisco Pizarro.

Recordemos que muitos dos nossos irmãos preferiram morrer na fogueira a renunciar aos seus princípios. Basta citar o nosso irmão Hatuey, na ilha de Cuba, que, diante da doutrinação do sacerdote que ia abençoar seu assassinato, sobre a importância de ser batizado para que depois de morto pudesse ir para o “céu” onde iam os “cristãos”, respondeu que preferia ir para o inferno antes que ficar na outra vida junto dos opressores, ladrões e assassinos. Foi então levado à fogueira.

No que hoje é o Equador, o grande dirigente Calicuchima, ante a proposta do sacerdote que generosamente ia batizá-lo e abençoar a sua morte, caminhou altivo para a fogueira e gritou em meio às chamas, com toda a força do seu espírito: PACHAKAMAK! (Grande Espírito Cuidador do Universo).

Teria que perguntar ao Papa se Cristo, a quem diz representar, estaria de acordo com esses crimes de lesa humanidade. Também devemos recordar ao Sumo Pontífice e ao Governo Espanhol que tais crimes não prescrevem, nem nas leis terrenas, nem nas divinas.

As igrejas cristãs e, de maneira particular, a Igreja Católica, têm uma imensa dívida com Cristo, com os pobres do mundo, com os Povos e Nacionalidades Indígenas que resistiram a semelhante barbárie. Se bem que o Estado Espanhol e o Vaticano não possam ressarcir as conseqüências do monstruoso genocídio, o Chefe da Igreja Católica deveria pelo menos reconhecer o erro cometido como o fez seu antecessor, João Paulo II, em relação ao holocausto nazista, e aprender com Jesus que, sendo Cristo, encarnou-se com respeito na cultura do povo hebreu para dar sua mensagem, além de ter sido coerente, pois pregou sua mensagem pelo exemplo, assumindo todas as conseqüências disto.

É impensável que em pleno século XXI ainda se possa crer que só pode ser concebido como Deus um ser definido como tal na Europa. O Papa deve saber que antes que viessem aos nossos territórios os sacerdotes católicos com a Bíblia em nossos povos já existia Deus, e a sua Palavra é a que sempre sustentou a vida de nossos povos e da Mãe Terra. A Palavra de Deus não pode estar contida em um livro único e, muito menos, se pode crer que uma religião possa privatizar Deus.

Nós, Povos Originários, éramos civilizações que tínhamos governos e organizações sociais estruturadas de acordo com nossos princípios; evidentemente, tínhamos também religiões com livros sagrados, ritos, sacerdotes e sacerdotisas, que foram os primeiros a serem assassinados pelos que atuavam como servidores do “deus da cobiça” e não do Deus do Amor de que fala Jesus, o Cristo.

A Bíblia ensina que quem diz que ama a Deus, que não vê, e não ama ao seu irmão, que vê, é um mentiroso. Os que profanaram o nome de Cristo, apresentando-se como seus representantes, quando na realidade foram sócios de ladrões e assassinos, foram traidores da nobre missão do Cristo. Como podiam ser representantes daquele que nasceu numa manjedoura, de padres trabalhadores rodeados de camponeses e perseguidos de morte desde o seu nascimento pelos hierarcas que ostentavam o poder político, econômico e religioso desse tempo? Não podiam representar aquele que disse que as aves têm seus ninhos e as raposas suas tocas, mas ele não tinha quaisquer bens materiais.

Como podiam os que estavam cheios de cobiça representar aquele que dedicou toda a sua vida ao serviço da humanidade, até o sacrifício de sua própria vida para revelar a verdade aos pobres de todos os tempos?

Não eram representantes do Deus de Jesus, seu “deus” era um devorador de vidas humanas e de riquezas usurpadas à custa de sangue, de crimes abomináveis que todos os profetas da Bíblia condenam!

É uma questão de justiça resgatar e valorar as vidas exemplares dos sacerdotes que, diante de tanta barbárie, se colocaram do lado daqueles que foram chamados de “índios”, como é o caso de Bartolomé de las Casas e de outros sacerdotes dominicanos que exerceram a defesa dos direitos dos nossos antepassados, vilmente ultrajados. Cabe também reconhecer e apresentar nosso mais profundo respeito a todas as religiosas, sacerdotes, bispos e pastores que dedicaram a vida para servir os mais pobres, em nosso continente e em qualquer parte do mundo. De maneira especial, reconhecemos o trabalho admirável desenvolvido no Equador por Monsenhor Leônidas Proaño, que por mais de trinta anos serviu com honestidade aos pobres do Equador e consagrou-se, de modo particular, à causa da liberação dos Povos e Nacionalidades Indígenas.

Os representantes de Cristo hoje, pertencentes a qualquer igreja cristã, deveriam respeitar e venerar a Vida, como o fez Jesus. Têm o dever ético e moral de condenar toda injustiça e, conseqüentemente, devem entregar a mensagem de Jesus estando a serviço dos pobres, e não ao lado dos opressores. E se querem realizar uma verdadeira evangelização dos Povos e Nacionalidades Indígenas, devem entregar a autêntica mensagem do Cristo sem pretender destruir nossas culturas, porque assim o fez Ele, a quem dizem representar.

Não se pode pregar a mensagem de Jesus Cristo na opulência, ao lado dos que profanam a Vida criada por Deus, ao lado dos maiores destruidores da vida Planetária.
Rechaçamos as coincidências políticas e religiosas que existem entre Bush e o Papa, para criminalizar as lutas dos povos oprimidos.

Exigimos coerência! A incoerência de muitos dos que dizem ser representantes de Cristo é o que provoca a deserção das Igrejas e, de maneira particular, da Igreja Católica, situação esta que tanto preocupa o Papa.

Nós aceitamos a mensagem da esperança, do amor e da libertação de Jesus, o Cristo. Sabemos que Ele disse que veio para que tenhamos todos vida e vida abundante. O que não aceitamos é que, em nome de qualquer religião, voltem a pretender abençoar a nossa morte, a morte de nossos filhos e de milhões de pobres no mundo.

O pontífice assegurou que “a utopia de voltar a dar vida às religiões pré-colombianas, separando-as de Cristo e da Igreja universal, não seria um progresso, mas um retrocesso” para os “povos originários” que conseguiram “uma síntese entre suas culturas e a fé cristã que os missionários lhes ofereciam”.

Para nós, a vida de Jesus é uma Grande Luz proveniente da Inti Yaya (Luz Paternal e Maternal que tudo sustenta), que veio expulsar tudo aquilo que não nos deixa viver com justiça e fraternidade entre os seres humanos e em harmonia com a Mãe Natureza. Nós respeitamos seus seguidores autênticos.

A vida nos ensinou que “é pela árvore que se conhece os frutos”, como disse Cristo, e sabemos distinguir quem serve aos pobres e quem se serve deles. Cabe comunicar ao Pontífice que nossas religiões JAMAIS MORRERAM. Aprendemos a sincretizar nossas crenças e símbolos com os dos invasores e opressores.

Continuamos freqüentando nossos templos, porque sabemos que debaixo dos principais templos católicos estão as fundações de nossos templos sagrados que foram destruídos, pela suposição de que as novas edificações sepultariam nossas crenças. Mas isto não é verdadeiro, já que nossos templos foram edificados em lugares onde se concentram grandes forças que refletem a Força, Sabedoria e Amor do Grande Espírito, Pai e Mãe de todos os seres que habitam este maravilhoso planeta.

Apresentamos a nossa total solidariedade ao Presidente EVO MORALES, nosso irmão, que é um servidor dos pobres, um ser que consagrou toda a sua vida a serviço da verdade, da justiça, da liberdade e da fraternidade entre os povos, e estamos seguros que Jesus Cristo o considera seu AMIGO.

Nossa solidariedade com os presidentes HUGO CHÁVEZ e com FIDEL CASTRO, humanistas consagrados a lutar pela vida digna dos povos.

Nosso coração está sempre à disposição daqueles que, em qualquer parte do mundo, estejam trabalhando por uma vida digna para toda a humanidade e pela saúde da Allpa Mama (Mãe Terra).

Em nome dos nossos ancestrais ultrajados e dos milhões de pobres que temos no Continente de Abya Yala, temos esperança de uma vida digna para todas e todos, e renovamos nossa firme determinação de recuperar nossos direitos. Não permitiremos que ninguém pretenda perpetuar o genocídio iniciado há quinhentos e catorze anos.

- A Confederação dos povos de nacionalidade Kichwa do Equador, ou ECUARUNARI , a organização mais numerosa do CONAIE (Conselho de nacionalidades indígenas do Equador).

Traduzido por Marta Guerra e revisado por Omar L. de Barros Filho, ambos membros de Tlaxcala, rede de tradutores pela diversidade lingüística. Esta tradução é Copyleft para qualquer uso não comercial. Pode ser reproduzida livremente, sob a condição de que sejam respeitadas integralmente as menções de autor, tradutores e fonte.

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