Nem loucos, nem mortos…, ode à vitória coletiva
- Opinión
Uma luta histórica, pontual, de dimensão universal
Ex-presos políticos argentinos, novamente, tomam a palavra
Traduzido para o francês e atualizado, o livro argentino Del otro lado de la mirilla (Do outro lado do olho mágico), sobre a resistência na Prisão de Coronda, na última ditadura, será lançado no dia 24 de março nas livrarias da Suíça e da França com o nome Ni fous, ni morts (Nem loucos, nem mortos). “É mais uma contribuição significativa para o trabalho de reconstrução coletiva da memória, justamente na data de mais um aniversário do trágico Golpe de Estado de 1976”, diz Augusto Saro, ex-preso político naquela prisão (e na prisão de Caseros), e atual presidente da Asociación El Periscopio, autora e gerente editorial do livro. Para os ex-prisioneiros de Coronda, como eles mesmos apontam na introdução de Ni locos, ni muertos (Editorial L'Aire, Vevey, Suíça), MEMORIA, com letras maiúsculas, constitui “o melhor antídoto” contra as brutalidades do poder, em qualquer lugar e momento histórico.
P: Há 17 anos, em 2003, a Asociación El Periscopio publicou o livro coletivo Del otro lado de la mirilla (Do outro lado do olho mágico), com depoimentos sobre as vivências de presos políticos na Prisão de Coronda durante a última ditadura. Em 24 de março de 2020, sua tradução atualizada para o francês será lançada na Europa, sendo distribuída primeiramente na Suíça e na França. O que motivou você a se lançar nesse projeto de perfil internacional?
R: Há anos, a eventual tradução do livro Del otro lado de la mirilla (Do outro lado do olho mágico) estava entre os sonhos da nossa Associação. Em particular, esta primeira versão internacional em francês surgiu do intercâmbio que tivemos em 2018 com uma ex-professora suíça de literatura, após o julgamento e a condenação dos ex-diretores de Coronda. Ela soube da existência do nosso livro em espanhol e ficou muito surpresa com o caráter coletivo de sua elaboração. Seu interesse nos entusiasmou e encaramos o projeto sentindo que a reconstrução coletiva da memória é uma obra que transcende as fronteiras de um país ou de um continente. Essa convicção foi reforçada pelo compromisso assumido por um grupo de militantes da solidariedade suíça, convocados por um dos autores do livro radicado em Berna. Se não tivéssemos contado com o trabalho exemplar desse coletivo -com uma dúzia de membros- e com o apoio financeiro individual de cerca de setenta pessoas, Ni locos, ni muertos não existiria.
P: Quais são as “diferenças” ou complementos de Ni fous ni morts, em relação ao Del otro lado de la mirilla?
R: A versão original consiste em depoimentos reunidos em 38 capítulos que formam um mosaico de vivências da resistência na prisão de Coronda entre 1974 e 1979. Isso se mantém exatamente igual na versão francesa. Anexamos, como epílogo, um capítulo final (acompanhado de fotos e ilustrações coloridas) sobre o julgamento dos comandantes da força militar, que eram diretores da prisão, realizado em 2018. E atualizamos a Introdução e o Prólogo, considerando a passagem do tempo, os novos destinatários do livro, e certas chaves de leitura que, com muita modéstia, nosso livro pode trazer para a dinâmica social nessa terceira década do século XXI prestes a começar.
A memória, essência da identidade
P: Parece que, para vocês, como Asociación El Periscópio de ex-presos políticos da Prisão de Coronda, o tema da MEMÓRIA tornou-se quase uma “obsessão”...
R: Isso mesmo. Porém, não só para nós, mas para todos os sobreviventes do terrorismo de Estado, para seus familiares e parentes próximos, organizados em centenas de organismos de Direitos Humanos em todo o território nacional, porque a memória é um componente central da identidade de um povo e porque não é possível construir uma sociedade verdadeiramente democrática com base no esquecimento, no negacionismo e na impunidade.
Isso me leva a esclarecer de que tipo de memória falamos, sobre que tipo de fatos..., porque não se trata de um conceito literário. Significa lembrar e compreender a ditadura cívico-militar (1976-1983) como um verdadeiro plano estratégico com vistas a eliminar toda a oposição política e reformar a sociedade em todos os seus aspectos. Um plano que terminou em um verdadeiro genocídio, com centenas de mortos, trinta mil desaparecidos, mais de dez mil presos políticos e milhares de exilados internos e externos. Foi executado a partir do poder real como parte de uma estratégia regional elaborada nas usinas do império. O terrorismo de Estado começou a se desenrolar antes do golpe com assassinatos cometidos por gangues armadas paraestatais e foi completado a partir do ataque ao poder em 24 de março de 1976. Foi cometido com o compromisso e a participação de grandes grupos econômicos, das forças armadas e de segurança, da cúpula da Igreja Católica. E com o apoio cúmplice da mídia hegemônica, de setores do judiciário e também de uma parte da própria sociedade civil que, por medo ou inconsciência, ficou em silêncio ante o genocídio. E outros civis que, conscientemente, colaboraram com os repressores, delatando ativistas e opositores, em bairros, escolas, fábricas, colégios, universidades etc.
P: Memória, Verdade e Justiça foram bandeiras promovidas pelo El Periscopio. No início, você se referiu ao envolvimento de sua Associação no julgamento dos Comandantes da força militar que comandava aquela prisão durante a ditadura. Que balanço você faz dessa experiência?
R: Consideramos que nossa contribuição à Verdade, a partir de nossa história e prática, foi muito valiosa. Nós éramos querelantes e o livro Del outro lado de la mirilla serviu como prova da acusação. Testemunhamos, e, através de nossa voz, levamos a voz dos quatro companheiros mortos em Coronda durante esse período. Foi revelado o documento (secreto durante a ditadura) “Campaña Pensionistas”, no qual a ditadura dava as diretrizes destinadas à destruição psicofísica dos presos políticos. Um dos diretores da prisão várias vezes nos disse que só conseguiríamos sair de lá loucos ou mortos. Este objetivo desejado, mas não alcançado pelos militares inspirou o título de nosso livro em francês, Nem loucos, nem mortos. Em relação à Memória, durante os quatro meses de duração do processo, do final de 2017 até 11 de maio de 2018, convocamos professores e estudantes, militantes sociais, líderes sindicais e políticos para assistir às audiências. Conseguimos condenar os dois principais autores a 22 e a 17 anos por crimes de lesa humanidade, e não restou a menor dúvida sobre a responsabilidade total de todo esse corpo, a força militar, na ação repressiva. Além disso, juntamente com sua sentença, o Tribunal ordenou a investigação do papel cumprido pelo resto da oficialidade da força militar e do corpo de guarda prisional em Coronda. Esse será o próximo julgamento, agora em fase de instrução. Quero destacar o excelente trabalho profissional e solidário de nossa equipe de advogados, membros do coletivo HIJOS (Filhos), que reúne os filhos e filhas de desaparecidas/os.
Temática universal
P: Você acha que um livro sobre um tema específico -mesmo que universal- de fatos ocorridos há mais de 40 anos pode, hoje, ter um valor e impacto em lugares distantes de onde esses eventos ocorreram, como, por exemplo, no continente europeu?
R: Sim. O poder que os poderosos têm (e suas estratégias para preservá-lo) é uma questão universal, assim como a resistência dos povos a esse poder injusto. As formas variam ao longo da história da humanidade e de acordo com as características de cada sociedade. Mas, essencialmente, é a mesma questão: a eterna disputa entre aqueles que subjugam aos povos e aqueles que anseiam viver em liberdade. Em suma, como mencionamos na nova Introdução, qual é a diferença entre ser assassinado em um campo de extermínio europeu ou na América Latina? Ou entre morrer enfrentando uma ditadura latino-americana ou nas águas do Mediterrâneo escapando das fomes, das guerras ou como refugiado climático? Reconstruir a história das lutas pela emancipação dos povos é uma contribuição para a memória universal e um antídoto contra a repetição das brutalidades do poder.
P. Na América Latina, Del outro lado de la mirilla foi distribuído apenas em pequena escala, devido aos meios limitados de publicidade com que contavam. Seria imaginável difundi-lo mais massivamente?
R: É quase um sonho encontrar editores interessados em publicá-lo ou distribuí-lo em países da América Latina e na própria Espanha. Claro que queremos que isso aconteça. Faz parte dos nossos projetos futuros.
P: É impossível terminar esse diálogo sem falar sobre a atual situação política da Argentina. Qual é o verdadeiro lugar, hoje, para os ex-presos e para as organizações de direitos humanos em geral? Quais são os desafios essenciais neste período?
R: Em relação ao novo Governo, é auspicioso ouvir novamente que a tríade Memória, Verdade e Justiça será promovida como uma política de Estado, uma visão que não só não existiu durante a gestão anterior de Mauricio Macri, mas que foi deliberadamente abandonada por ele. Mas, o nosso verdadeiro lugar será aquele que soubermos ocupar a partir de nossa militância, sempre independentes do Estado e do Governo de turno, promovendo o julgamento e a punição dos responsáveis militares e civis do genocídio, apoiando a continuidade da busca dos “bebês desaparecidos” e promovendo as reparações para todos os afetados. É importante ter uma visão que vá além do conjuntural e estritamente referente ao terrorismo de Estado, considerando que o tema dos Direitos Humanos abrange todos os aspectos da vida das pessoas e, particularmente, os direitos que lhes são violados. Enlaçar as nossas lutas com outras que, há anos, emergiram com força na vida política. Cito apenas dois exemplos: a militância do movimento de mulheres e da diversidade de gênero contra o patriarcado. E a dos chamados movimentos ambientalistas contra a economia extrativista, com seu modelo de produção e consumo que leva à extinção dos recursos naturais, colocando o planeta em risco de morte.
Tradução: Rose Lima – rltradutora@gmail.com
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