‘Desdobramento judicial do mensalão é consequência fundamental da guinada política do Partido dos Trabalhadores’

19/11/2013
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Sob intenso espetáculo midiático, o chamado escândalo do “mensalão” começa a executar as penas dos condenados. Na semana da República, dois ícones petistas, José Dirceu e José Genoíno, se apresentaram à Polícia Federal, no que se seguiu enorme grita no debate público, ante um veredicto controverso no meio jurídico. Em mãos dos ministros do STF, apenas a certeza de que se tratava de um método de transferência de dinheiro para caixas e dívidas de campanhas. Para o público em geral, insinuações de que os valores movimentados serviram para comprar votos parlamentares, inclusive para a aprovação da reforma previdenciária nos moldes exigidos pelo FMI.
 
Para discutir o assunto por fora do maniqueísmo de quem, de lado a lado, guarda interesses políticos de alta monta, o Correio da Cidadania entrevistou o ex-parlamentar petista Milton Temer. Independentemente da imensa má fé da grande mídia na contextualização do tema – já que, como se sabe, esconde escândalos de muito maior porte, de grupos com quem guarda histórica unidade de classe e ideológica –, Temer, sem pestanejar, atribui a derrota dos líderes petistas ao transformismo que os próprios conduziram no partido. “À frente, estavam José Dirceu, chefe da Casa Civil de Lula, e José Genoino, na presidência nacional do partido, totalmente à vontade por ver o partido fazer uma guinada ideológica absolutamente coerente com algo que ele já pretendia desde os anos 90”, pontua.
 
Temer rememora outro detalhe, esquecido por diversos militantes, indignados com a atuação de juristas em maioria escolhidos pelo líder da esquerda ‘oficial’. “Se houve, por acaso, ilações dos juízes sobre fatos não muito concretos, mas sobre indícios muito fortes que os levaram a tais veredictos, a declaração do Lula, de desculpas públicas em rede nacional de televisão, tem muito mais responsabilidade no processo do que a atuação dos ministros do STF. Até porque vale registrar que grande parte deles foi nomeada pelo Lula”, completa.
 
O projeto de estabilidade no poder teria sido o golpe fatal do partido contra si mesmo: Pra ficar em calma, no Palácio havia dois caminhos a seguir: o primeiro, apaziguar uma base social que tinha sido mobilizada durante oito anos, contra o neoliberalismo de FHC; o segundo, não entrar em choque com o grande capital que patrocinava o neoliberalismo de FHC”.
 
Temer não deixa finalmente de ressaltar “a arbitrariedade e autoritarismo na forma, violenta até, de efetuar as prisões. Quem vai pra regime semiaberto não pode ficar submetido ao que vimos no noticiário. Não só alojados em cárcere fechado, mas conduzidos a Brasília algemados, segundo algumas notícias. Isso não corresponde ao tratamento correto a ser dado para quem se apresenta voluntariamente na delegacia”.
 
Abaixo, a entrevista completa com Milton Temer.
 
Correio da Cidadania: Qual o significado político das prisões de José Dirceu e José Genoíno, condenados no julgamento do mensalão, efetuadas no final de semana da República?
 
Milton Temer: Eu destaco duas coisas. Antes de tudo, a decisão é judicial, sem dúvida. Mas se aproveita da hipocrisia. Ou seja, os que ganham com a decisão são parte importante de um segmento fundamental da vida política brasileira, muito mais devedora do que credora em termos de ética. Isto é, a ala tucano-pefelista (não consigo falar Democratas – DEM) tenta se aproveitar do julgamento do mensalão de maneira extremamente oportunista.
 
O segundo ponto que me chama atenção é o silêncio estrondoso que vem do Planalto a respeito de Dirceu e Genoino. Por quê? No meu modo de ver, porque Dirceu e Genoino, que têm história e passado, foram justiçados do ponto de vista judicial, mas caíram numa grande esparrela por conta de um processo político deliberadamente conduzido para o pântano, onde as chamadas “tenebrosas transações” fazem parte da rotina diária. Foi uma opção ideológica do PT na sua transição ao que chamo NeoPT, uma decisão do lulismo, que definiu não bastar chegar ao Palácio do Planalto. Era preciso chegar e ficar no Planalto, na calmaria.
 
Pra ficar em calma no Palácio havia dois caminhos a seguir: o primeiro, apaziguar uma base social que tinha sido mobilizada durante oito anos, contra o neoliberalismo de FHC; o segundo, não entrar em choque com o grande capital que patrocinava o neoliberalismo de FHC. O apaziguamento dessa base social se deu, fundamentalmente, a partir da imagem de “governo progressista”, que tiraria o subproletariado de sua condição de miséria, introduzindo-o no mercado de consumo de massas. Isso se fez através de revisão do salário mínimo, com o Bolsa Família etc., realmente criando mercado de consumo interno massificado.
 
Correio da Cidadania: Essa derrota seria uma tragédia anunciada, ante a metamorfose ideológica e acomodação ao jogo político das alianças pragmáticas?
 
Milton Temer: Claro. Não foi criada uma lógica de democratização e socialização do poder, passando por uma democratização dos meios de comunicação. O que houve foi a radicalização do projeto capitalista em curso desde a década de 90. Aquela tríade maldita do FMI, de superávit primário, câmbio flutuante e metas de inflação. Isso aliado a nossa altíssima taxa de juros, o que fez os títulos da dívida pública brasileira se tornarem um mercado de libertinagem para os especuladores. Sem nenhum problema.
 
Com isso, Lula conseguiu pôr em prática, na presidência da República, a forma de agir do sindicalista norte-americano: fechar com o grande capital e, depois, conseguir a necessária concessão aos setores mais miseráveis. Na expressão dele mesmo: “cuidar de pobre é barato”.
 
Assim, ferindo o espírito de partido socialista, contra a ordem e transformador, introduzindo-o na lógica dos partidos tradicionais, colocaram o PT no pântano das tenebrosas transações. Esse pântano obriga a um tipo de situação, queira-se ou não, na qual os responsáveis do partido começam a se relacionar com os Jucás, Valdemar Costa Neto, Eduardo Cunhas da vida... Enfim, com toda essa gente que controla a grande cúpula da agremiação suprapartidária voltada à privatização do poder público nacional. E quando se começa a conviver com os porcos, da mesma farinha se come.
 
Objetivamente, acabaram caindo na armadilha propiciada por um desses tipos: Roberto Jefferson. Eles foram acusados quando Jefferson, vendo seus interesses ameaçados nos ataques à corrupção dos Correios (2004), resolve botar a boca no trombone. E ele tinha autoridade pra tanto, visto que quem lhe deu o cheque em branco foi ninguém mais, ninguém menos, que Luiz Inácio Lula da Silva.
 
À frente, estavam José Dirceu, chefe da Casa Civil de Lula, e José Genoino, na presidência nacional do partido, totalmente à vontade por ver o partido fazer uma guinada ideológica absolutamente coerente com algo que ele já pretendia desde os anos 90. Já nessa época, Genoíno tentava afirmar teses no partido que dialogassem melhor com os interesses econômicos dominantes, sendo um grande responsável, no Congresso Nacional do partido em 2002, no Parque Anhembi, por referendar a Carta aos Brasileiros.
 
Mas ele sempre teve uma história parlamentar sem manchas. Era um deputado que devolvia diária não utilizada, algo absolutamente impensável hoje. Ele tinha realmente a imagem de alguém probo. E de repente se viu metido no meio de operações bizarras, algo que merece ser lembrado também, é certo.
 
No entanto, volto a lembrar que a primeira grande denúncia a Luiz Inácio Lula da Silva não foi feita pela direita, mas pela comissão de ética, instalada contra ele no PT, e pelo Dirceu, em 1995, por conta de relações espúrias que ele e seu grupo no partido, principalmente seu advogado particular, mantinham com as prefeituras do PT. A comissão de ética não deu em nada, mas acabou condicionando o Lula, no meu modo de ver, a ceder mais terreno. Assim, Dirceu terminou ombreando-se com Lula dentro do partido, atingindo a Casa Civil em 2003, com a vitória eleitoral.
 
Portanto, o desdobramento do processo judicial do mensalão é consequência fundamental da guinada política e da entrada no pântano das tenebrosas transações. Zé Dirceu e Genoino terminam sendo responsáveis, por caminhos distintos... É aquilo, quando se entra na areia movediça não adianta saber nadar, afunda-se junto... Entraram numa lógica, denunciada pelo Roberto Jefferson, quando teve seu interesse ferido, que se tornava quase uma consequência natural, por conta da política de alianças que tal pântano propiciou.
 
Correio da Cidadania: Como vê o tratamento que a mídia grande vem dispensando ao assunto, tratando-o como a realização de justiça perante o “maior caso de corrupção da história”?
 
Milton Temer: Bom, a mídia de direita, no mundo inteiro, trabalha com esse corte. Como eu disse em rede social, “tá legal. Os dois estão presos. Mas para que a justiça seja justa, quando começa a investigação e abertura de processo daquele que lançou Marcos Valério no mercado, no caso, o ex-governador e deputado Eduardo Azeredo, cujo mensalão, semelhante a esse, já havia sido realizado pioneiramente em Minas Gerais? E aí, isso vai ou não ocorrer? Os tucanos que fizeram a festa com privatizações e com a compra de votos para a emenda da reeleição de FHC vão a julgamento?”.
 
A grande falácia do ataque aos dois petistas é, evidentemente, ignorar o esquema anterior de Minas Gerais. E o fato é que o escândalo atribuído ao PT ajudou a revelar o mensalão mineiro, uma vez que nele reaparecia no circuito o nome do Marcos Valério, conhecido publicitário de campanhas de Eduardo Azeredo, quando este governou Minas, e responsável pela distribuição de propinas na Câmara mineira. A diferença, nesse caso, é que todos eram do mesmo grupo e ninguém se traiu, o que fez o escândalo passar mais tempo escondido.
 
Correio da Cidadania: Mas acredita que haverá empenho similar pela punição dos políticos da direita tradicional, da parte de quem tanto gritou por punição no caso petista?
 
Milton Temer: Tem uma diferença: a mídia de direita jogou pesado no mensalão do PT, porque o PT era o símbolo, até então, da ética. Não se sente a mesma pressão no que se referes ao envolvimento dos políticos e secretários do PSDB, metidos com a Alstom, em esquemas de dinheiro altíssimo, corrupção de atacado internacional, denunciada a partir da Suíça e da própria empresa, portanto, incontestável.
 
Mesmo com tudo isso, vemos que não há maior cobertura na mídia. Há notícia, mas não o que chamamos de suíte, com os desdobramentos naturais. Pelo contrário, não há continuidade na cobertura sobre os fatos, não há contextualizações claras. É evidente que essa mídia se esforçará pra esconder este e outros casos envolvendo partidos e políticos que ela apoia e com quem tem mais afinidade de classe, histórica e ideológica.
 
Correio da Cidadania: E dos argumentos que tratam esse episódio como um julgamento de exceção e político, o que diria?
 
Milton Temer: Julgamento de exceção é difícil dizer, principalmente depois do que disse Lula. Se há uma declaração fundamental, a ser destacada em todo o processo, foi o reconhecimento que ele fez do mensalão e o pedido de desculpas à população. Aquela declaração, pra mim, foi decisiva no comprometimento de seus companheiros. E de uma forma até bizarra, ao dizer que o único que não sabia de nada era ele. Tudo bem. De resto, o silêncio continua estrondoso.
 
Penso o contrário. Se houve, por acaso, ilações dos juízes sobre fatos não muito concretos, mas sobre indícios muito fortes que os levaram a tais veredictos, essa declaração do Lula, de desculpas públicas em rede nacional de televisão, tem muito mais responsabilidade no processo do que a atuação dos ministros do STF. Até porque vale registrar que grande parte deles foi nomeada pelo Lula.
 
No entanto, é de se falar da arbitrariedade e autoritarismo na forma, violenta até, de efetuar as prisões. Quem vai pra regime semiaberto não pode ficar submetido ao que vimos no noticiário. Não só alojados em cárcere fechado, mas conduzidos a Brasília algemados, segundo algumas notícias. Isso não corresponde ao tratamento correto a ser dado para quem se apresenta voluntariamente na delegacia.
 
- Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.
 
19/11/2013
 
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