Os exemplos de Inglaterra e Argentina

18/11/2013
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A Inglaterra e a Argentina protagonizaram novos capítulos no debate em torno da regulação dos meios de comunicação. Em Londres, a rainha Elizabeth II assinou uma Carta Real que aprova a criação de um órgão independente de regulação da imprensa. O documento foi elaborado pelos líderes dos três principais partidos. O novo órgão poderá aplicar multas de até o equivalente a 3,7 milhões de reais, impor que jornais e revistas publiquem pedidos de desculpas e estabeleçam um código de conduta. A medida é um desdobramento do Inquérito Leveson, que investigou o escândalo envolvendo o grupo de mídia do magnata Rupert Murdoch. A empresa News Corp. foi acusada de escutas ilegais para obter informações, chantagem e tráfico de influências. O caso levou ao fim o tabloide mais importante de Murdoch, o News of The World,em 2011.
 
Ao usar o mecanismo da Carta Real, os políticos pretendem conferir estabilidade ao novo órgão de regulação. Desde o início dos anos 1990, o Reino Unido conta com um dispositivo para fiscalizar a jornais e revistas, o Comitê de Queixas Contra a Imprensa (PCC, na sigla em inglês). A instituição foi acusada de não investigar a fundo as denúncias contra o grupo de mídia de Rupert Murdoch.
 
A maior parte dos jornais britânicos alegou que não aceita a fiscalização por parte de uma instituição criada pelo governo e por partidos políticos. Eles tentaram impedir o novo órgão com ações judiciais e os pedidos foram negados. A adesão ao sistema é voluntária, mas as publicações que fizerem parte do órgão terão benefícios. O Guardian, o Financial Times e o Independent se mantiveram neutros. Outros jornais anunciaram que vão resistir e propõem a criação de um órgão de autorregulação.
 
Governo vs. mídia
 
Na semana passada, o Grupo Clarín, maior conglomerado de mídia da Argentina, anunciou que vai dividir o grupo para se adequar à Ley de Medios. A decisão foi comunicada pouco depois de a Suprema Corte argentina ter declarado que a lei é constitucional. Promulgado em 2009 pelo governo Kirchner, o texto combate monopólio e estabelece que cada grupo poderá ter até 10 licenças de rádio e TV aberta e 24 de TV paga. Os produtos impressos e de radiodifusão do Clarín chegam a mais de 70% dos lares argentinos. Para os grandes empresas de mídia, a lei irá cercear a liberdade de expressão. Já os defensores do projeto garantem que o tema foi amplamente debatido pela sociedade antes de ser sancionado. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (12/11) pela TV Brasil discutiu a regulação da mídia nesses dois países.
 
Alberto Dines recebeu no estúdio do Rio de Janeiro o jornalista Silio Boccanera e o sociólogo Bernardo Sorj. Boccanera vive em Londres há mais de duas décadas. É correspondente da GloboNews e trabalhou no Jornal do Brasil. Uruguaio naturalizado brasileiro, Sorj é sociólogo. Estudou antropologia, filosofia e história, é diretor do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais e do Projeto Plataforma Democrática, e coordena o SciELO – Latin American Social Sciences Journals English Edition. Foi professor de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em Brasília, o programa contou com a presença do sociólogo e jornalista Venício A. de Lima. Pós-doutor pelas universidades de Illinois e Miami, é fundador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (Nemp) da Universidade de Brasília (UnB) e colunista do site do Observatório da Imprensa.
 
Em editorial, antes do debate ao vivo, Dines ponderou que o assunto está em pauta tanto em países onde governo e mídia vivem em atrito, como em nações onde existe longa tradição democrática. “O debate na Inglaterra começou em 2010, a partir dos métodos irresponsáveis e ilícitos adotados pelos repórteres e editores do tabloide News of The World, de Rupert Murdoch, que diante do clamor público acabou fechado. O relatório final do juiz Leveson, e aprovado pelo Parlamento, recomendava a criação de um órgão regulador e pesadas punições aos infratores. A extrema concentração da mídia argentina jamais foi contestada pelos governos militares ou democráticos até que o poderoso Grupo Clarín, em 2008, colocou-se a favor dos ruralistas e contra os interesses do então presidente Néstor Kirchner”, lembrou Dines (ver íntegra abaixo).
 
Progresso ou retrocesso?
 
No debate ao vivo, Silio Boccanera contou que a pressão popular em torno da regulação da mídia para coibir os abusos da imprensa ficou mais forte após os escândalos protagonizados pelos jornais da News Corp. A imprensa, de maneira geral, não foi favorável à Carta Régia e propôs como alternativa uma melhoria no PCC, o antigo órgão de autorregulação. Entre as medidas sugeridas, estão punições financeiras mais altas e agilidade no trâmite dos processos. Boccanera contou que havia dúvida entre essa nova forma de autorregulação e a Carta Real até que, no domingo (10/11), a ministra da Cultura Maria Miller anunciou que seria favorável à autorregulação feita por um órgão mais atuante.
 
Dines lembrou que a Inglaterra abriga discussões sobre a liberdade de imprensa desde o século 17 e ressaltou que a atuação da rainha no controle da mídia não tem o mesmo significado de uma intervenção do governo, porque a monarca representa uma espécie de poder moderador. E destacou que os três partidos de maior representatividade foram favoráveis à Carta Real. Boccanera contou que isso só foi possível porque a pressão da sociedade e de entidades civis foi enorme. O escândalo que provocou o fechamento do tabloide News of The World revelou que celebridades e políticos tiveram suas comunicações interceptadas. Houve um caso particularmente grave: jornalistas grampearam o telefone da adolescente Milly Dowler, que estava sequestrada, apagaram mensagens de sua caixa postal e prejudicaram as investigações policiais.
 
“Havia uma pressão grande. Mas, ao estilo inglês, não se parte para fazer alguma coisa em 24 horas. Houve uma comissão de inquérito, uma investigação, todo um ritual, ouviu-se todas as partes. E a recomendação do juiz foi justamente isso: precisa haver algo mais forte. E a debate que se seguiu foi exatamente esse: isso será uma imposição do governo?”, disse Boccanera. Era esperado que o governo britânico impusesse uma regulação externa no lugar de uma “autorregulamentação com garra”, por isso a surpresa quando a ministra manifestou-se favoravelmente a que se testasse um órgão independente que seguisse os princípios fundamentais que norteiam a Carta Real.
 
Legislação ultrapassada
 
Venício Lima destacou que o movimento para a substituição do decreto argentino que regulava os serviços audiovisuiais, promulgado na época da ditadura, é anterior aos governos Kirchner: “Existe uma organização chamada Farco, o Fórum Argentino de Rádios Comunitárias, que desde o fim da ditadura tem promovido debates e feito propostas para a mudança da legislação por uma razão simples: porque a legislação da época da ditadura proibia que entidades sem fins lucrativos fossem concessionários de radiodifusão”. Por isso, na opinião de Venício, reduzir a questão da mídia argentina a um conflito entre o governo Kirchner e o Grupo Clarín falseia a situação real.
 
O sociólogo diz que a Ley de Medios deveria ser examinada e discutida pelos estudiosos da regulação da mídia porque é bem elaborada: “Dos 166 artigos da lei, existem 37 notas explicativas que fundamentam as principais opções que a lei tomou. Aliás, diga-se de passagem, oriundas de um documento que não foi feito pelo governo. Foi preparado pela Farco e por uma coalizão de mídia democrática que criou um documento chamado ‘21 Pontos’. A lei incorporou essas sugestões”. Venício sublinhou que essas notas explicativas se referem não só a documentos de organismos internacionais, como a ONU e a Unesco, mas também trazem análises comparadas da legislação de várias democracias contemporâneas.
 
Conflito de interesses
 
A questão principal na Argentina, na avaliação de Bernardo Sorj, não é o conteúdo da legislação, que tem pontos positivos e negativos, mas a aplicação do texto. “No primeiro governo Kirchner, o Grupo Clarín, que apoiou o governo, aumentou a concentração, recebeu concessões novas do governo. Na verdade, o governo ficou chateado com o Clarín ter mudado de posição política. E o que era uma discussão legítima, que é a regulamentação da área, passou a ser um mero confronto com interesses políticos mesquinhos”, criticou Sorj.
 
Bernardo Sorj comentou que uma das particularidades da lei argentina que é pouco comentada é a que enfoca o uso de recursos públicos para propaganda. De acordo com Sorj, o governo Kirchner aumentou a verba publicitária em cinco vezes para apoiar determinados grupos de mídia de acordo com os seus interesses políticos. O sociólogo enfatizou que o debate sobre a regulação da mídia precisa ser estimulado no Brasil, mas que não se pode permitir que uma lei vire um instrumento político, como na Argentina. Dines perguntou como é possível despolarizar a discussão sobre o controle da mídia brasileira. “Em primeiro lugar, impedir que o debate fique monopolizado nas mãos das empresas e do governo. Enquanto ficarem dois lobbies lutando entre eles, não é bom para o debate”, disse Sorj. Intelectuais deveriam estimular a reflexão sobre o tema para que a legislação seja efetivamente de interesse público, e não apenas do Estado.
 
 
 
A regulação da mídia argentina e britânica
 
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 709, no ar em 12/11/2013
 
Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.
 
O debate sobre a regulação da mídia trava-se nos quatro cantos do planeta, tanto em países onde a mídia sofre constrangimentos como onde ela goza de total liberdade.
 
Há sempre alguém insatisfeito, já que a questão da liberdade de expressão continua irresolvida mesmo em regimes democráticos. É bom que assim seja, já que a conquista de direitos é uma tarefa interminável e ilimitada.
 
Esta transitoriedade e a condição de “obra em construção” levou os patriarcas da República americana a aprovar a Primeira Emenda à Constituição, proibindo a aprovação de qualquer lei que porventura possa restringir a liberdade de pensar ou expressar-se.
 
No grande fórum mundial sobre a regulação dos meios de comunicação, dois países se destacaram praticamente em simultâneo, com a diferença de um dia. O Reino Unido e a Argentina.
 
Antípodas, anteriormente muito próximos, Argentina e Inglaterra tornaram-se antagonistas na guerra pela posse das Ilhas Malvinas, em 1982, e hoje tentam resolver de forma diametralmente oposta a questão da regulação dos meios de comunicação.
 
O debate na Inglaterra começou em 2010, a partir dos métodos irresponsáves e ilícitos adotados pelos repórteres e editores do tabloide News of The World, de Rupert Murdoch, que diante do clamor público acabou fechado. O relatório final do juiz Leveson, e aprovado pelo Parlamento, recomendava a criação de um órgão regulador e pesadas punições aos infratores. Tudo isso foi referendado há duas semanas, numa Carta Régia assinada pela rainha Elizabeth II.
 
A extrema concentração da mídia argentina jamais foi contestada pelos governos militares ou democráticos até que o poderoso Grupo Clarín, em 2008, colocou-se a favor dos ruralistas e contra os interesses do então presidente Néstor Kirchner. O governo reagiu e promulgou no ano seguinte a Lei da Mídia, que há duas semanas foi finalmente considerada constitucional pela Suprema Corte.
 
O que nos leva à pauta da edição de hoje: a mídia precisa ser regulada ou autorregulada? E qual o estilo apropriado para a regulação – o estilo britânico ou o argentino?
 
 
 
A mídia na semana
 
>> Na terceira tentativa, o jornalista e escritor baiano Antônio Torres foi eleito para o seleto clube da Academia Brasileira de Letras. Com dezessete livros publicados, alguns premiados e muitos traduzidos para outros idiomas, é o primeiro romancista a entrar na Academia nos últimos dez anos. Na cadeira 23, ocupada inicialmente por Machado de Assis, sentaram-se antes o brilhante escritor Jorge Amado e sua mulher, a memorialista Zélia Gattai, ambos baianos. Junto com João Ubaldo Ribeiro, Torres, o novo imortal, é o segundo repórter egresso do Jornal da Bahia.
 
>> Apesar do tamanho do assalto aos cofres públicos (cerca de 500 milhões de reais), o escândalo dos peritos fiscais da Prefeitura paulistana estava restrito apenas à imprensa local. O teor das gravações de conversas telefônicas, o estilo de vida e o vulto dos bens acumulados pela quadrilha, bem como as conexões dos réus com autoridades da atual e anterior administração municipal, dão ao escândalo um lugar de destaque. No Fantástico do último domingo (10/11) o caso finalmente deixou a esfera municipal e ingressou no âmbito das grandes roubalheiras nacionais.
 
>> A Folha de S.Paulo é um jornal que gosta de fazer barulho e alguns dos seus colunistas seguem a onda. Na semana passada, Antonio Prata publicou um texto onde assumia posições excepcionalmente reacionárias e retrógradas. A reação dos leitores foi imediata e intensa. O colunista então explicou que se tratava de uma provocação para denunciar o ideário da extrema direita brasileira. Esse é um tipo de brincadeira imprópria para um grande jornal, talvez valesse num blog de humor. Acostumados a levar a sério o trabalho da imprensa, os leitores comportaram-se com mais seriedade do que o colunista.
 
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- Lilia Diniz é jornalista
 
Observatório da Imprensa, edição 772, 16/11/2013.
 
https://www.alainet.org/es/node/80923
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