Declaração de Roma sobre a saúde, no G20
O direito universal à saúde e o futuro da vida na Terra ainda não caminham no interesse de todos seus habitantes e em harmonia com o respeito pelos direitos da natureza.
- Opinión
1. Em primeiro lugar, a Declaração de Roma sobre a saúde nunca se refere, nem uma vez, ao "direito universal à saúde". Assim, confirma o que os grupos dominantes fazem há anos: apagam esse direito da agenda política mundial e com ele o princípio de que garantir a saúde de forma universal, ou seja, para todos, é uma obrigação institucional do poder público, dos Estados, e não uma opção política de magnanimidade ou compaixão pelos "pobres" por parte de líderes mundiais. Pelo contrário, a Declaraçao fala várias vezes do "acesso equitativo e acessível" aos instrumentos para a luta contra a pandemia de Covid-19 (vacinas, tratamentos médicos, diagnósticos e aparelhos de proteção individual). Ou seja, princípio e objetivo tipicamente comercial, de troca monetarizada (compra e venda) de acordo com as regras de mercado que nada têm a ver com o direito à saúde em igualdade e justiça. No mercado não há direitos, exceto à propriedade privada, e não há justiça social. Esquecer o direito universal à saúde é um ato de indecência política.
2 Nao é de se estranhar - outro aspecto-chave- que a Declaração insista que as medidas a serem adotadas nos próximos meses a fim de que todos tenham acesso às vacinas devem respeitar os tratados da OMC (Organizaçao Mundial do Comércio, organismo independente da ONU) e, em particular, os tratados OMC-TRIPs (Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio). E não que estejam no marco geral da ONU e, concretamente, da Organização Mundial da Saúde (OMS, uma agência da ONU). A Declaração de Roma continua presa à primazia atribuída, também no campo da saúde, à regulamentação "global" estabelecida na lógica do comércio internacional (dominado pelos mercadores e financistas dos países mais poderosos do mundo). A Declaração de Roma volta a rechaçar a atribuição deste primado à ONU em geral, e à OMS em particular, como têm pedido uma centena de Estados, centenas de premios Nobel, científicos, personalidades do mundo da cultura e milhares de associações e organizações, incluindo os sindicatos. Aceitar o primado da ONU e da OMS implica que as normas nessa matéria sejam estabelecidas respeitando a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e os tratados internacionais sobre direitos civis, sociais e políticos dos anos 70. Os signatários da Declaração de Roma têm consciência que desde 1994, ano de sua criação, a OMC tem sico x cenário de duras lutas entre a grande maioria dos Estados membros e os mais poderosos para defender o direito à vida e sua soberania econômica e social, que têm sido sistematicamente desconsiderados nos tratados da OMC.
3 Portanto, os Estados mais poderosos do G20 afirmarem que o objetivo da luta mundial contra a pandemia é “nao deixar ninguém para trás” é um ato de hipocrisia. A realidade mostra que a estratégia de luta contra a pandemia, adotada há um ano e meio em nome do acesso justo às vacinas e em cumprimento dos tratados OMC/TRIPs, tem ajudado a deixar para trás centenas de milhões de pessoas que, desde 21 de maio de 2020, nao têm acesso às vacinas (apenas 1% da populaçao africana foi vacinada) e, sobretudo, nem à atençao à saúde em geral. Segundo a OMS, mais de metade da populaçao mundial nao recebia atençao básica de saúde em 2020 - e com a pandemia a situação piorou.
4. A Declaraçao confirma que, hoje, a solução escolhida pelos governantes é aumentar a produção de vacinas, distribuí-las e aplicá-las o mais amplamente possível, o mais rápido possível e de forma equitativa, segura e eficiente, para o benefício das populações dos países mais pobres (92 no mundo) e dos países de renda média (mais de 30). Esta opção, aparentemente razoável, é inaceitável porque implica a aceitação e manutenção do abismo e das desigualdades entre os países ricos e "desenvolvidos" do Norte, particularmente os "ocidentais", e os pobres, os países subdesenvolvidos ou menos desenvolvidos. Dar prioridade à produção e distribuiçao de vacinas significa essencialmente manter a supremacia estrutural e o poder dos países ricos nas esferas financeira, tecnocientífica, produtiva e comercial. Significa que as empresas privadas do mundo desenvolvido continuam sendo as donas absolutas do conhecimento sobre a vida, as proprietárias das patentes, as produtoras de vacinas, as líderes do comércio internacional, as provedoras de serviços médicos e de saúde, as controladoras dos mercados sanitários, as donas da digitalização dos sistemas de saúde... Portanto, no espírito da Declaração de Roma a melhor solução prática é que os países ricos (continuem) "ajudando" os países pobres. Neste contexto, a vida e o futuro de bilhões de pessoas dependem e dependerão necessariamente da ajuda, da "caridade" e da benevolência dos ricos e poderosos . Que concepção indecente e cínica! Vamos dar um exemplo emblemático. Na última reuniao do conselho-geral da OMC-TRIPs, o representante dos Estados Unidos disse que o governo Biden concorda, "agora que foi garantido o pleno acesso às vacinas para os cidadaos estadounidenses", em considerar formas de suspender as normas da OMC sobre propriedade intelectual a fim de que todos os povos do mundo tenham acesso à vacina. Resumindo, só resta aos países pobres esperarem para receber as vacinas e terem acesso aos demais bens de saúde que oferecem os países ricos. Ainda assim tais países devem ser reconhecidos pela COVAX como elegíveis para a ajuda dos ricos. COVAX é o mecanismo criado pelos países do "Norte", dirigido por duas organizações público-privadas, CEPI e GAVI, para fomentar o intercâmbio de pesquisa e desenvolvimento e compra e distribuição de vacinas para o benefício dos países pobres. As vacinas adquiridas são transferidas como ajuda gratuita para os países de baixa renda e com preço reduzido para os de renda média. A COVAX tem se mostrado inadequada por duas razões principais. Em primeiro lugar, porque os países ricos e os organismos de ajuda privados, como a fundação Gates, não contribuíram como se esperava com as finanças da COVAX – ela necessitava de US$ 40 bilhões e recebeu apenas US$ 12 bilhões. Em segundo lugar, a COVAX se baseia na manutenção do sistema de patentes que torna vacinas e material médico propriedades privadas por 20 anos, dando assim - como vimos - poder de decisão política e operacional sobre a vida e a saúde a empresas multinacionais. A COVAX não tem poder político nem poder autônomo de negociação e decisão. Depende da boa vontade dos oligopólios farmacêuticos e dos Estados mais ricos.
5. Isto nos leva à polêmica suspensão provisória das patentes. Este era o ponto mais aguardado da Cúpula Mundial da Saúde do G20, que decidiu levar o debate para a reunião do Conselho Geral da OMC de 7 a 9 de junho. Na verdade, o adiamento se fazia necessário devido ao desacordo entre países, como África do Sul, Índia, Rússia, Indonésia e China, por um lado, e a UE, Reino Unido, EUA e Japão, por outro. Isso dará tempo à UE e aos EUA para chegarem a uma posição comum, como propõe a UE, entre o rechaço e a aprovação da suspensão. A União Européia se opõe até mesmo à suspensão do regime de patentes, quanto mais à sua abolição. Portanto, ela tenta levar o debate para a definição de um novo tratado global sobre um sistema comum de vigilância e resposta a pandemias atuais e futuras. É verdade que o sistema atual tem demonstrado sua debilidade e ineficiência. Na opinião dos dirigentes da União Européia, o novo tratado poderia adotar um modelo mais próximo do sistema de coordenação estabelecido na recém-criada União Européia da Saúde. Esta posição também parece ser a de Mario Draghi. Em seu discurso na cúpula, ele se mostrou favorável à suspensão das patentes , "com a condição que seja específica e com tempo limitado". Posição semelhante foi apresentada em Roma pela vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris (o que gerou certa decepção). Entre os membros do G20, apenas a África do Sul tem posição clara sobre a garantia da saúde de seus cidadãos e dos demais países africanos. A Índia é bastante ambígua. Na estratégia ultranacionalista e competitiva do premier Modi, a suspensão atende ao objetivo de reforçar o papel crescente da Índia como líder mundial na produção de vacinas de baixo custo por meio da empresa privada Serum Institute of India. A estratégia é apoiada pela Universidade de Oxford e pela AstraZeneca, que assinaram no ano passado um acordo com o instituto para a produção de mais de 1.2 bilhão de doses de sua vacina. A Índia tem uma estratégia de expansão econômica no setor para competir com a China. Por seu lado, a Indonésia, outro membro do G20, deixou claro seu interesse na redução das limitações de patentes, numa tentativa de se tornar o principal centro do Sudeste Asiático, em oposição à China e Índia. Em resumo, nem tudo que brilha fora dos países do Norte Ocidental no que diz respeito à estratégia econômica da indústria farmacêutica global é ouro.
6. O estado da arte descrito acima será perpetuado até que os poderes públicos dos países mais poderosos do mundo libertem sua política de saúde pública da submissão às multinacionais farmacêuticas e químicas e aos grupos financeiros, depois da maciça privatização dos sistemas nacionais de saúde e a legalização de patentes privadas com fins lucrativos. A Declaração de Roma não trás uma linha sobre o servilismo dos poderes públicos. Como todos sabem, as autoridades públicas financiaram quase inteiramente (no caso da AstraZeneca,) e em grande parte (no caso da Pfizer, Moderna, Johnson & Johnson, ...) o desenvolvimento, produção e comercialização das vacinas. Se elas existem não é graças às empresas citadas, mas às grandes somas injetadas pelos Estados no setor (estamos falando de dezenas e dezenas de bilhões de dólares) por meio de diversos canais, inclusive o decisivo “Compromisso Antecipado de Mercado ”, ou seja, os compromissos públicos de compra de bilhões de doses produzidas pelas empresas.
O escândalo é que as empresas embolsaram tudo e, sem investimentos significativos, obtiveram bilhões de lucros para distribuir entre seus acionistas, sem que os Estados, os cidadãos, cujo dinheiro público foi despejado nos cofres das multinacionais, tenham conseguido qualquer benefício econômico em troca. Os Estados continuam gastando e as empresas continuam tendo lucros.
Neste contexto, a soberanía do povo, dos cidadãos se reduz a zero. A hipocrisia, o cinismo e a indecência prevalecem.
Concluindo, após a Cúpula Mundial da Saúde do G20 fica novamente claro que o direito universal à saúde e o futuro da vida na Terra ainda não caminham no interesse de todos seus habitantes e em harmonia com o respeito pelos direitos da natureza.
- Riccardo Petrella, Roberto Morea e Roberto Musacchio são, respectivamente, presidente de Ágora dos Habitantes da Terra, presidente da Transform.Italia, ex-eurodeputado e membro da Transform. Italia
Tradução de Carlos Alberto Pavam
26/05/2021
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