A censura está de volta ao Brasil
- Análisis
“Li nesses últimos dias que este Supremo Tribunal Federal iria debater a censura no cinema. Errado. Censura não se debate, censura se combate. Porque censura é manifestação de ausência de liberdades e a democracia não a tolera”. Assim a ministra do STF, Cármen Lúcia, abriu os trabalhos da audiência pública sobre liberdades de expressão, artística, cultural e de comunicação, que aconteceu nessa segunda 4 e seguiu na terça 5, em Brasília. A audiência contou com a exposição de argumentos por parte de representantes do setor audiovisual e artístico brasileiro, parlamentares, representantes do governo federal e organizações da sociedade civil, entre essas, o Intervozes.
A audiência foi convocada para subsidiar as análises dos ministros ao julgarem a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 614, proposta pela Rede Sustentabilidade contra o Decreto 9.919, de 18 de julho de 2019, que altera a estrutura do Conselho Superior do Cinema. A ADPF 614 também questiona a Portaria 1.576/2019, do Ministério da Cidadania, que suspendeu por 180 dias o edital de chamamento para produção de conteúdo para TVs públicas.
Para o partido, os atos do governo federal teriam o objetivo de censurar a produção audiovisual brasileira por meio do esvaziamento do conselho, responsável pela implementação de políticas públicas de desenvolvimento da indústria cinematográfica nacional.
Quem tem medo da participação social?
O reconhecimento da importância da arte e da cultura como valores estruturantes da sociedade brasileira emerge de diversos dispositivos da Constituição Federal cidadã de 1988 e se consolida com o estabelecimento do Sistema Nacional da Cultura, que traz entre seus princípios a “democratização dos processos decisórios com participação e controle social”. Foi este o espírito que inspirou a criação do Conselho Superior do Cinema.
O Decreto 9.919 deve ser analisado dentro de um quadro que começa a se delinear com a extinção do Ministério da Cultura (MinC), pelo atual governo, já como um dos primeiros atos editado em 2 de janeiro deste ano. As atribuições do MinC foram repassadas ao Ministério da Cidadania, comprometendo o foco e a incidência dos esforços públicos no setor da cultura. Pertinente resgatar que o MinC foi criado em março de 1985, justamente o ano em que nosso país retomou o rumo da democracia depois de mais de 20 anos de ditadura militar. Tratou-se de manifestação política clara pelo Estado reconhecendo o papel da cultura para o desenvolvimento da diversidade e das políticas públicas voltadas para a ampliação da produção artística e do acesso à cultura.
O Conselho Superior de Cinema, por sua vez, criado em 2001, foi estabelecido com as atribuições relacionadas à formulação da política nacional do cinema, aprovação de diretrizes gerais para o desenvolvimento da indústria cinematográfica nacional, ao estímulo da presença do conteúdo brasileiro nos diversos segmentos de mercado da área cinematográfica nacional e estabelecimento da distribuição da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine) para cada destinação prevista em lei, entre outras. Essas atribuições devem estar independentes da incidência exclusiva e determinante de governos, na medida em que podem, a depender da ideologia adotada pelos governantes, representar supressão da liberdade de expressão artística, censura e controle ideológico do audiovisual.
O Decreto 9.919 reduz a representação da sociedade civil no Conselho Superior do Cinema, aumentando o poder do governo sobre a atuação do colegiado. Além disso, a sua inclusão na composição da Casa Civil da Presidência da República altera a dinâmica de funcionamento do colegiado. Com isso, esvazia-se a finalidade de promoção da participação social e do estímulo ao controle social, uma vez que cria uma via de subordinação da atuação do colegiado às interferências diretas da Presidência, com risco de torná-lo um instrumento de patrulhamento ideológico ou de censura da produção artística brasileira, como lamentavelmente vem acontecendo com frequência no governo Bolsonaro.
Essa não foi a primeira vez que o governo federal atentou contra a participação social. Vale lembrar do Decreto 9.759, de 11 de abril de 2019, cuja inconstitucionalidade foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6121. Aquele decreto pretendia extinguir em massa centenas de conselhos relacionados à administração pública federal, sob a justificativa de que os colegiados seriam uma manifestação da ideologia “bolivariana”.
O decreto acabou barrado pelo STF, que reconheceu que tais objetivos afrontavam as garantias constitucionais da participação social. Assim, o governo passou a outras estratégias para centralizar decisões relacionadas às mais diversas políticas públicas quanto à organização social.
Suspensão de edital efetiva a censura
A edição da Portaria 1.576/2019, pelo Ministério da Cidadania, suspendeu o Edital de Chamamento para TVs Públicas, que destinava recursos públicos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) para projetos classificados em procedimento licitatório absolutamente regular e inquestionado, também é objeto da ADPF 614.
Quanto a este ato, merece destaque a recente decisão proferida pela Justiça Federal do Rio de Janeiro, em ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal, reconhecendo seu forte potencial discriminatório e lesivo a direitos fundamentais e ao interesse público, determinando que a União e a Agência Nacional de Cinema (Ancine) deem continuidade ao edital interrompido pelo ministro da Cidadania, Osmar Terra, que o fez com o objetivo de substituir o grupo de análise de projetos.
Cabe ressaltar que a referida portaria limita, sem a adequada justificação, com a finalidade de promover a censura, a produção de conteúdo para as emissoras públicas. Tal medida, se não combatida desde já, coloca em risco a sobrevivência de projetos de TVs públicas, em confronto com o disposto no art. 223 da Constituição Federal, que estabelece a complementaridade entre as emissoras privadas, públicas e estatal, com vistas a assegurar a pluralidade nos meios de comunicação.
As iniciativas do governo bem como as falas do Presidente da República com relação às atividades culturais correspondentes à produção cinematográfica, pelo viés de ridicularizar produções artísticas que retratem as comunidades LGBTIs, os cidadãos negros entre outras, evidenciam a real motivação tanto do Decreto 9.919/2019 quanto da Portaria 1.576/2019, qual seja, discriminar e restringir apoio a obras que contrariem as orientações morais e religiosas com as quais publicamente se identifica o Presidente da República e seu grupo político, contumaz em semear ódio e discórdia contra a diversidade.
Há elementos inequívocos demonstrando que a motivação que levou às medidas do governo federal estão em desconformidade com garantias constitucionais, pois reduzem o potencial de participação e controle social e aumentam a possibilidade de discriminação, no caso quanto às comunidades LGBTIs alardeada de forma pública e notória pelo Presidente da República. O respeito à dignidade da pessoa humana, sem preconceitos de origem social, raça, gênero, idade e quaisquer outras formas de discriminação, assim como a proteção de direitos fundamentais, como a liberdade de expressão, são as bases que efetivam o Estado Democrático de Direito que, esperamos, ainda reine no Brasil.
Censura já é realidade, denunciam artistas
“Nós vamos emburrecer se tivermos que vir neste plenário defender o óbvio. É isso que estamos fazendo, estamos defendendo o que está escrito por direito”, manifestou a atriz Dira Paes em seu discurso em defesa do audiovisual nacional e contra a censura que assombra a produção artística brasileira.
O ator Caio Blat foi ainda mais enfático e afirmou que a censura já está instaurada na arte brasileira. “Tentamos trazer aqui o sentimento do que está se vivendo nos teatros, nos corredores, nos estúdios de televisão. A censura já está de volta a esse país de forma velada, de forma imunda”. E continuou: “para que serve um edital público se não para distribuir a justiça? Como um edital pode ser recolhido para se retirar as minorias?”, questionou.
Caco Ciocler reforçou o discurso de seus colegas. “A gente sabe de gente que não quis vir para cá por medo de retaliação. Isso é prova de uma censura institucionalizada. Foi dito aqui que existe uma tentativa do governo de alinhar o audiovisual e a cultura a um tipo de pensamento. Esse é um indício extremamente preocupante. Em todos os exemplos da história, sempre que um governo enxergou a cultura e a arte como uma maneira de propaganda, o desfecho foi sempre trágico”.
- Flávia Lefèvre é advogada e integrante do Conselho Diretor do Intervozes.
- Marina Pita e Gyssele Mendes são jornalistas e coordenadoras executivas do Intervozes.
7 de novembro de 2019
Del mismo autor
Clasificado en
Comunicación
- Jorge Majfud 29/03/2022
- Sergio Ferrari 21/03/2022
- Sergio Ferrari 21/03/2022
- Vijay Prashad 03/03/2022
- Anish R M 02/02/2022