Lá, como cá
- Opinión
O declínio do centro democrático exprime a ruptura entre o poder do mercado e os direitos dos desfavorecidos
Leio no La Repubblica: o prefeito de Riace, pequena cidade na província de Reggio-Calabria (Italia), foi preso. Domenico Lucano, o prefeito, tornou-se um símbolo do acolhimento aos imigrantes. Seu desempenho é insuportável para o vice-ministro e ministro do Interior, o ultradireitista Matteo Salvini.
A Operação Xenia da guarda de finanças italiana acusa Domenico de favorecimento à imigração clandestina e de fraude na contratação de serviços de coleta de lixo, entregues às cooperativas que reúnem forasteiros e desempregados locais. Outras acusações de malversação de dinheiro foram recusadas pela Procuradoria.
Às vésperas da prisão de Domenico, o economista da esquerda democrática, Emiliano Brancaccio manifestou no L’Espresso on Line sua indignação com a adesão de ex-companheiros às teses populistas de direita.
“Estou, ao mesmo tempo, horrorizado e cientificamente fascinado com a monstruosa e súbita transformação sofrida por ex-companheiros, digna de Dr. Jekyll e Mister Hyde no clássico de Robert Louis Stevenson. Esses cidadãos tomam os imigrantes como bodes expiatórios de todos os males econômicos e se afastam das batalhas pelos direitos: como as que se empenham pela igualdade de gênero, pela liberdade e emancipação sexual e contra as discriminações, as críticas às superstições e as lutas por uma cultura laica e progressista nas escolas.”
Brancaccio prossegue em sua diatribe contra o obscurantismo. Invoca o Iluminismo e as grandes revoluções deflagradas em nome da igualdade e da liberdade. Esses valores, hoje apropriados pelos magnatas e senhores da finança global, escapam entre os dedos dos tribunos que dizem lutar pelos oprimidos.
Na Europa, crescem os partidos de extrema-direita. São grandes as dificuldades das posições políticas de centro diante da “radicalização” à direita e à esquerda. Os Estados Unidos caíram no colo de Donald Trump.
O declínio do centro democrático não decorre das idiossincrasias individuais, mas exprime de forma dramática a ruptura das relações mais “equilibradas” entre os poderes do “livre-mercado” e o resguardo dos direitos econômicos e sociais dos cidadãos desfavorecidos.
Nos estertores dos anos 1970, a estagflação desarranjou o acordo social e econômico concertado no Pós-Guerra. Mais na Europa, mas também nos Estado Unidos, esse acordo ensejou, durante 30 anos, uma virtuosa combinação entre crescimento econômico, baixa inflação, ganhos reais nos salários médios, ampliação do emprego e da massa salarial com redução das desigualdades.
A democracia e as liberdades individuais floresceram sob o manto protetor dos direitos econômicos e sociais abrigados no Estado do Bem-Estar Social.
No início dos 80, Ronald Reagan e Margareth Thatcher proclamavam que “o Estado era o problema e não a solução. Eles preconizavam a redução de impostos para os ricos “poupadores”. Acusavam os sistemas de tributação progressiva de desestimular a poupança e debilitar o impulso privado ao investimento.
Os sindicatos “prejudicavam” a economia e os trabalhadores ao pretender fixar a taxa de salário fora do “preço de equilíbrio”. Como recomenda o liberal autoritário nativo Jair Bolsonaro, “era preciso acabar com tudo aquilo”.
Liberada, a velha toupeira do capitalismo cavou fundo e redefiniu em poucos anos a distribuição espacial da produção, do comércio, dos fluxos de capitais. Em sua fúria criadora e destrutiva, entregou os mercados financeiros às suas insanidades.
As algemas monetárias do euro, fabricadas nas usinas da intransigência alemã, decretaram a estagnação da renda média per capita da Península, estacionada na marca de 20 anos atrás. No interior dessa média sobrevivem 25% de italianos – habitantes do Sul e das periferias do Centro-Norte –, que padecem as penúrias da queda de 30% em seus rendimentos.
Não por acaso, os eleitores italianos aceitaram o risco de entregar o governo à coalização Lega Nord-Movimento 5 Stelle. Além da rejeição aos imigrantes, entre tantas propostas contraditórias, os dois partidos oferecem aos ricos o corte de impostos, aos deserdados a adoção da renda básica de cidadania. Em uníssono, proclamam ameaças de ruptura com a União Europeia.
Como assinalou o lúcido conservador Martin Wolf em artigo publicado no Valor em dia 3 de fevereiro de 2016, “políticos bem-sucedidos compreendem que as pessoas precisam sentir que suas preocupações têm de ser levadas em consideração, o desejo de seus filhos de desfrutar a perspectiva de uma vida melhor e de garantir uma dimensão adequada de segurança econômica”.
09/10/2018
https://www.cartacapital.com.br/revista/1024/la-como-ca
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