A ‘doutrina da dependência’ militar e a eleição de 2018

27/09/2018
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Em 1982, a sociedade brasileira estabeleceu pacto para a democracia. Por um lado, movimentos de “esquerda”, que contestavam com guerrilha maior participação no pacto político, depuseram armas. Da mesma maneira, os militares, que vinham enfrentando a instabilidade interna com excessos e tortura, também renunciaram ao poder e reinstauraram a democracia no país.

 

Desde então, os militares se mantiveram longe da política partidária nacional. Ao menos até o “Golpe dos Corruptos” em 2015, a partir de quando a situação brasileira se deteriorou ao ponto de beirar o caos interno, infiltrando-se sobre os três poderes da República.

 

No quadro externo vem se configurando ameaça territorial com emigrações em massa da Venezuela para a Amazônia brasileira. A Colômbia, onde se encontram bases norte-americanas, tem se manifestado em tom de defesa crescente de intervenção militar para substituir o regime N. Maduro, solicitando-se apoio militar do Brasil.

 

Somando-se a permanência da crise institucional interna ao crescimento da ameaça externa venezuelana, emergiu entre generais, brasileiros muito bem formados, uma nova doutrina, aqui denominada como “doutrina da dependência”.

 

O objetivo do presente artigo é interpretar quatro episódios recentes que evidenciam maior participação de militares adeptos da “doutrina da dependência” na eleição presidencial de 2018: (i) apresentação do General Mourão no BTG Pactual em 31/08/2018; (ii) entrevista a GloboNews em 07.09.2018; (iii) entrevista do General Villas Bôas ao jornal Estado de S. Paulo em 09.09.2018; e (iv) entrevista do General L. E. Paiva a GloboNews em 15.08.2018. Nos três episódios, percebe-se a manifestação da “nova doutrina” pelo Exército, a despeito de dois dos três generais citados se encontrarem aposentados.

 

1. Aproximação da vida político-partidária pelas Forças

 

De acordo com o pensamento dominante hoje no estamento do Exército, entre 1922 até 1977 observaram-se mais de dezessete crises político-militares no país. De 1977 para cá, nenhuma. E não porque as crises não tenham ocorrido, mas porque os militares se mantiveram distantes do processo de restabelecimento da normalidade. Ao se afastarem da política partidária, não houve mais participação das forças em crises políticas.

 

Para os militares, contudo, o afastamento do núcleo decisório do Estado após 1982 parece ter sido excessivo. O país, na medida em que entrou em situação de desequilíbrio interno depois de 2015, contribuiu para reaproximar a política partidária do estamento militar. Os militares voltaram a ser procurados pelos políticos, principalmente com demandas por segurança. Segurança interna (RJ) e externa (RR).

 

Com isso, o comandante do Exército parece ter se tornado porta-voz de uma “nova doutrina”, que enxerga como necessária maior atividade político-partidária pelas Forças, inclusive como núcleo de defesa de propostas para o país. É neste contexto de reposicionamento coordenado que se deve compreender a candidatura do General Mourão e a defesa de uma nova Constituição pelos militares.

 

2. Idealismo pragmático e realismo ético

 

A “doutrina da dependência” militar parece miscigenar vertentes opostas no debate clássico em Relações Internacionais. Por um lado, os militares defendem idealisticamente o propósito de implantar projeto de desenvolvimento, com ênfase nos aspectos de integração do território, controle de fronteiras e ordenamento econômico e social internos. Ao mesmo tempo, procuram aceitar que os EUA dispõem de liderança incontestável, subjugando política e economicamente mesmo nações prósperas e nuclearizadas.

 

Há um cálculo, realizado pelos “Generais da dependência”, de que o Brasil não possui meios para enfrentar, sozinho, os desafios e ameaças de ordem interna e externa, devendo-se alinhar esforços com o dominador estrangeiro, tanto na política – cybersegurança, biossegurança, combate ao crime organizado – quanto na economia – diminuição do Estado, reformas fiscais, independência do Banco Central.

 

A obsessão simplificadora pela “Ordem e Progresso” aparentemente levou este grupo de militares a aceitarem o neoliberalismo como via para a estabilidade. Assim como a Ordem precede o Progresso, a estabilidade precederia o desenvolvimento brasileiro. Neste quesito, explica-se como consistente a aparente contradição entre a assessoria econômica de J. Bolsonaro e a vice-presidência estrelada. O elemento ausente, que explica a coalizão, é o apreço pelo nacional.

 

Como forma de justificar a posição do país na hierarquia internacional, na “nova corrente” militar parece prevalecer a noção de que o brasileiro é uma “raça” inferior. Como na explicação simplificada de “malandragem dos negros e indolência dos índios”, amparada pelos Generais em referências como G. Freire e F. H. Cardoso. Ou, ainda, de que não devemos nos relacionar com a “mulambada da África ou da América Latina”, referindo-se aos esforços recentes de integração logística e energética na América do Sul e na África.

 

Em ambos vizinhos o General Mourão teve atuação importante. Na Venezuela, foi adido militar, posição ocupada por elementos de inteligência no país estrangeiro. Em Angola, integrou missão de paz. Coincide a visão dos Generais com a dos ultrarricos de que o capital privado estrangeiro, além de mais eficiente, não é (tão) corrupto.

 

O combate à corrupção ocupa posição central na “doutrina da dependência” militar, localizando-se nos sistemas de caixa dois para campanhas eleitorais instrumento para projetos de poder alheios ao interesse nacional. Acusam diretamente membros de segundo escalão no PT, os quais estariam “infiltrando” pessoas com propósitos “gramscianos” de revolução silenciosa no Estado. Citam os ideólogos do que tratam como projeto de ditadura de esquerda “pelo voto” no Brasil: J. Dirceu, M. A. Garcia, V. Pomar.

 

A “nova corrente” militar não descarta, inclusive, eventual golpe militar no Brasil, delineando-se cenário de “caos econômico e social como o enfrentado na Venezuela”, ou ainda “fragmentação dos poderes”, citando-se o Supremo Tribunal Federal.

 

3. A facada do PSDB em J. Bolsonaro

 

A agressão com faca ao candidato J. Bolsonaro no dia 6 de setembro último abriu espaço para protagonismo dos formuladores fardados da “nova doutrina” na campanha presidencial.

 

Apoiados na imensa popularidade de J. Bolsonaro entre os subordinados militares, o grupo de Generais revisionistas parece reunir meios e propósitos para disputa nas ruas com a esquerda organizada. A batalha das urnas parece ser apenas o primeiro capítulo em crescente envolvimento das Forças na vida nacional.

 

Em entrevista concedida ao jornal Estado de S. Paulo exatos sete dias após o ataque a J. Bolsonaro, o presidente do PSDB T. Jereissati manifestou mea culpa em relação ao Golpe dos Corruptos de 2014/15:

 

O partido cometeu um conjunto de erros memoráveis. O primeiro foi questionar o resultado eleitoral. Começou no dia seguinte (à eleição). Não é da nossa história e do nosso perfil. Não questionamos as instituições, respeitamos a democracia. O segundo erro foi votar contra princípios básicos nossos, sobretudo na economia, só para ser contra o PT. Mas o grande erro, e boa parte do PSDB se opôs a isso, foi entrar no governo Temer. Foi a gota d’água, junto com os problemas do Aécio (Neves). Fomos engolidos pela tentação do poder. [T. Jereissati, presidente PSDB, Jornal Estado SP, 13.09.2018]

 

Explica-se a declaração do PSDB como gesto de aproximação com o PT. Uma aproximação na contramão do avanço de teses ultraliberais, alheias ao que resta de empresários brasileiros, incluindo-se aí conjunto de remanescentes banqueiros paulistanos (Itaú, Bradesco e outros poucos).

 

Outro grupo de interesse que potencialmente pode contribuir para a resistência contra proposta neocolonialista defendida pelos “Generais da dependência” vem das próprias Forças. Durante o período do PT no poder houve forte apoio a projetos tecnológicos há muito ambicionados pela Aeronáutica e pela Marinha, como o submarino nuclear, o caça supersônico e os foguetes lançadores de satélites.

 

Finalmente, pode-se antecipar que os governadores eleitos dificilmente seguirão passivamente ao ideário ultraliberal, mesmo que a segurança pública venha a ser parcialmente federalizada. Em apenas 400 dos cerca de 5.700 municípios no Brasil há reais oportunidades para investimentos do setor privado.

 

Alinhados aos ultrarricos, os “Generais da dependência” assumem posição de alavancas para aumento de influência norte-americana sobre a vida brasileira, antecipando-se novo patamar tecnológico de identificação e enfrentamento de grupos percebidos como ameaças à “ordem e progresso” no país.

 

Resta saber se a integridade dos Generais será fielmente seguida pelos subordinados que virão provavelmente a assumir postos de confiança no Brasil que se projeta para o futuro. Ou se quem é corruptor e corrupto é o tal capital.

 

- Marco Aurélio Cabral Pinto é professor da Escola de Engenharia da Universidade Federal Fluminense, mestre em administração de empresas pelo COPPEAD/UFRJ, doutor em economia pelo IE/UFRJ. Engenheiro no BNDES e Conselheiro na central sindical CNTU. É colunista do Brasil Debate

 

27/09/2018

http://brasildebate.com.br/a-doutrina-da-dependencia-militar-e-a-eleicao-de-2018/

 

https://www.alainet.org/es/node/195575
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