Segundo Christian Laval

Apesar das desproporções, o Comum continua sendo a principal ameaça ao neoliberalismo

27/09/2018
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Na guerra entre o neoliberalismo e o Comum não há dúvidas de que o primeiro é vitorioso. Contudo, o segundo tem se mostrado um “inimigo” difícil de ser eliminado, seja por sua plasticidade, seja por força política. Nesse sentido, pensar o Comum como categoria política e sua potência desestabilizadora do status quo foi o eixo central dos debates realizados por Christian Laval, durante suas três conferências realizadas na Unisinos dentro da programação II Ciclo de debates Desigualdades no contexto econômico brasileiro, realizado na segunda-feira, 24-9-2018.

 

Mais do que um modelo econômico ou político, o neoliberalismo assumiu uma instância de forma de vida, subsumindo tudo à lógica do capital. “A lógica da concorrência e o modelo das empresas passa a ser um imperativo de todas as instituições. O que caracteriza esse modelo liberal contemporâneo é que ele se fortalece e se radicaliza após as crises. O neoliberalismo gera crises econômicas, sociais e, agora, políticas. Mas ele responde ‘as crises com sua própria lógica, isto é, ele causa a crise e serve como ‘solução’”, descreve Laval.

 

Se na América Latina, na segunda metade do século XX, o neoliberalismo necessitou de regimes autoritários para impor seu projeto, nos Estados Unidos e na Europa o verniz de uma democracia representativa caiu-lhe bem. A transição que Europa vive atualmente, porém, vai no sentido contrário, assumindo vieses mais radicais. “Hoje se assiste a uma crise da democracia liberal clássica, por meio de governos radicais. Isso é sintoma de uma mutação na história do neoliberalismo. O que é essencial entender é que esses governos são autoritários, xenófobos, violentos e tomam referências diretas ao fascismo. Refiro-me ao Matteo Salvini, na Itália”, coloca Laval. “Eles se dizem nacionalistas, mas não contestam o neoliberalismo. O que espanta é que esses governos favorecem as empresas e desprezam questões sociais e ambientais. Esse é o caráter absolutista do neoliberalismo que foi disfarçado até agora no marco da democracia”, complementa.

 

Outra guinada na transição dos séculos, operada pelo neoliberalismo, foi o abandono da solidariedade como afeto político, que parecia algo absolutamente normal em se tratando de políticas de bem-estar social. “Quando o neoliberalismo toma a dianteira, esse princípio se enfraquece. A classe média perde isso e percebe os pobres como uma ameaça à sua seguridade. Isso tudo levou ao ódio de classe, o que foi captado pelas forças de extrema direita. Foi a racionalidade original do neoliberalismo que adotou o paradigma da guerra na relação com os estrangeiros e com parte da população local. Estamos diante de uma variante de um poder populista”, explica.

 

Comum, uma resistência

 

Enquanto o neoliberalismo tem como afeto central o empoderamento do self alheio a causas coletivas, muito baseado na ideia de empresário de si, o Comum vai no sentido inverso, assumindo a insustentabilidade política engendrada pela noção de concorrência. “No comum há a ideia de fazer junto, de constituir uma verdadeira democracia e de produzir coisas que sejam destinadas a todos”, argumenta o conferencista. “A luta pelo Comum é multifacetada. Há quem defenda o meio ambiente, quem defenda a democracia real (os movimentos das praças), quem defenda os serviços públicos e, por fim, há todas as pessoas que se engajam em redes de cooperação na área digital. O Comum tem a ver com novas possibilidade de agir coletivamente nas condições de convivência”, destaca.

 

Para definir o princípio, Laval descreve dois aspectos importantes do Comum. “O Comum é um princípio político. Ele serve como eixo para todos aqueles que lutam contra o neoliberalismo e a favor de uma democracia radical que se baseia na ideia de que devemos obedecer apenas às regras que coletivamente decidimos”, pontua. “Em segundo lugar, é a prevalência do direito de uso sobre o direito de propriedade. O que é característico e notável é que a propriedade se torna secundária, mas não comanda a atividade. As duas dimensões articulam um princípio muito simples, jogamos com o princípio político vendo o que ele poderia gerar, seja no nível de uma empresa, seja em escala mundial”, complementa.

 

Mais do que rigor a certos princípios, o Comum exige das pessoas imaginação política. “Precisamos ser capazes de pensar uma organização política que não seja pautada pela competição neoliberal”, assevera Laval. Ao passo que o neoliberalismo tem como letimotiv o imperativo da técnica e sua reprodutibilidade, o Comum opera por outra lógica. “O Comum não está ligado a uma técnica, mas a uma instituição, é uma questão humana de decisão democrática. Podemos e devemos, hoje, pensar muito mais coisas comuns, precisamos de muitas coisas novas que sejam reconhecidas como comum”, provoca. “O desafio é fazer com que os seres humanos sejam capazes de produzir condições de sua própria sobrevivência, instituindo o Comum”, frisa.

 

O Comum sob o sol dos trópicos

 

Além de apresentar algumas considerações para dar lastro ao tema principal das conferências, Laval comentou a recepção de seus textos no Brasil que, no seu entendimento, foi excepcional. O autor se disse surpreso, tendo a impressão de que as pessoas ainda leem livros – ou pelo menos querem autógrafos, comentou. “Pode ser ilusão, ou impressão, mas percebo que há leitores exigentes.”

 

Laval contou sobre sua parceria com Pierre Dardot, com quem divide a autoria do livro A Nova Razão do Mundo. Do neoliberalismo ao comum. Ambos se conheceram aos 20 anos, na universidade. Pertenciam a uma organização política de extrema esquerda, militavam em facções diferentes e um não gostava do outro. Cerca de 20 anos depois, se reencontraram, as diferenças ficaram para trás e começaram a trabalhar juntos para “animar e ampliar o pensamento crítico”.

 

“A tarefa de nossa geração era ir a fundo no pensamento de Marx, então formamos um grupo de estudo fora da universidade (Question Marx)”, disse. Um dos princípios que seguiam em sua ética intelectual, conforme Laval, era ter uma relação livre com os autores estudados, e não defendê-los ou citá-los apenas. Um dos resultados é o livro Marx, prénom: Karl (Paris, Gallimard, 2012), que a dupla escreveu, contendo 815 páginas sobre o pensamento do filósofo alemão.

 

Releituras

 

Outro eixo de suas reflexões é a interpretação minuciosa do que acontece na França, na Europa e no mundo, em especial as transformações do sistema educacional. “Como professor e sindicalista, me interessa a transformação neoliberal da escola e do ensino superior”, salientou. Fruto desta reflexão é o livro A Escola não é uma empresa: o neo-liberalismo em ataque ao ensino público (Londrina: Editora Planta, 2004).

 

Ao citar o utilitarismo, doutrina defendida principalmente por Jeremy Bentham e John Stuart Mill, afirmou que essa perspectiva começou a se estender e alcançou as escolas. Então Laval percebeu que era importante lidar com as origens do neoliberalismo, o que motivou a escrita de L'Homme économique: Essai sul lhes racines du néolibéralisme (Paris: Gallimard, 2007).

 

Ao tratar do livro que motivou uma de suas falas, Laval comentou que ele e Dardot começaram a escrever A Nova Razão do Mundo entre 2006 e 2007. A ideia surgiu depois de uma “revelação” tida após a leitura de um texto sobre uma aula que Michel Foucault proferiu em 1979 acerca do neoliberalismo, algo que na época pouco se conhecia e falava. A aula permaneceu inédita até 2004, quando foi transcrita em formato de livro, o que “foi desencadeador do desejo de recolocar o neoliberalismo em outros termos”.

 

Desde os anos 1980, Laval pesquisava sobre o neoliberalismo nas escolas, mas desconhecia o pensamento de Foucault. “Retomamos Foucault, mas não éramos seus discípulos, e também sabíamos que era insuficiente o que ele falou em 1976.” Outro autor destacado por Laval foi Karl Polanyi, cuja obra “ajuda a entender e fazer diagnóstico do mundo”. A intenção era “entender como o neoliberalismo funcionava e transformava a sociedade, como ele transformava as subjetividades e produzia o novo homem”.

 

Laval lembra que Foucault descobriu nos anos 1970 que o modelo empresarial se aplica a tudo, incluindo as subjetividades. Ele percebeu as injunções feitas para que indivíduos funcionem como empresas. “Se cada um é considerado como capital, o indivíduo tem que se autovalorizar em tudo o que faz.” O conceito de capital humano passa a direcionar as estruturas educativas no mundo todo. “Desde tenras idades, é valorizada a autovalorização, os indivíduos devem acumular créditos para formar um mercado rentável.” Neste sentido, “escolas fabricam subjetividades neoliberais”, adotando a norma da concorrência e o modelo de empresa.

 

O neoliberalismo foi refundando nos anos 1930, conforme Laval. Entre isso e sua aplicação, há etapas. No final dos anos 1950, deliberou-se a criação de uma união baseada na concorrência. “A Europa é a expressão disso, baseada no espírito ordoliberal alemão.” Na América Latina, há diferenças. Por exemplo: a Escola de Chicago influenciou o Chile de Augusto Pinochet. “O projeto neoliberal tem modalidades diferentes, dependendo dos países”, comenta. “O neoliberalismo se tornou um sistema jurídico, político e institucional.”

 

Em uma tentativa de resumir, Laval afirmou que o neoliberalismo é uma racionalidade que associa aspectos particulares, conduzido pelo estado, mas que pressupõe transformações do estado. “Normas são aplicadas para que o estado tenha a generalização de certos funcionamentos, como a concorrência, o espírito de empresas e a implantação de regras de gestão criadas para setor privado.” Neste processo, os interesses de ordem social não são reconhecidos. A consequência é que os governantes fazem com que indivíduos adotem novas subjetividades capitalistas.

 

Laval lembrou que o presidente francês, Emmanuel Macron, disse durante a campanha eleitoral que se chegou a um momento em que não havia mais esquerda ou direita. “Eu e Dardot rimos muito”, comentou. O político disse que era necessária uma revolução cultural na França para mudar os franceses, para que se tornassem inovadores e empreendedores, a França se tornando uma startup. “Não há vergonha, disfarce ou hipocrisia”, criticou Laval.

 

No seu entendimento, o neoliberalismo é “uma ação profunda exercida sobre a sociedade que acelera a mutação iniciada há vários séculos, mas que tinha resistências, como na religião, ou na França, na sociologia ou na filosofia kantiana”. Antes, havia barreiras e defesas. “A maior talvez fosse o sistema escolar, que na França formava cidadãos”, reconhece. “A partir de agora, as políticas neoliberais tendem a quebrar todas as defesas que as sociedades tinham.”

 

Mesmo com este cenário, Laval não acredita que o neoliberalismo ganhe totalmente. “Há defesa em desenvolvimento contra a lógica neoliberal, mas o neoliberalismo tem se intensificado e ganhado lógica autoritária e fascista em alguns países. Há ameaça fascista em muitos países, na Europa principalmente, mas não apenas.” No seu entendimento, “o jogo do mercado leva à figura de uma hiperautoridade”. A situação está bastante complicada, admite. “O que era condenado pelas religiões se torna elemento para governar indivíduos.”

 

Dez questões para pensar a emancipação

 

As proposições foram apresentadas por Christian Laval ao final de sua última conferência.

 

1. Como fazer uma análise correta do neoliberalismo?

2. Como pensar a emancipação alheia à noção do progresso imanente?

3. Qual pode ser o papel dos partidos políticos para a emancipação se eles não podem se fundamentar no progresso histórico?

4. Como se separar da relação de exploração da natureza, desta ontologia que a esquerda compartilhou com o capitalismo? Como integrar outras ontologias na emancipação?

5. Devemos esperar do Estado medidas de liberdade? Não haveria uma armadilha nisso?

6. O que foi feito das dimensões libertárias da emancipação? A estatização recalcou o autogoverno e autonomia da sociedade?

7. Os movimentos emancipatórios se nacionalizaram (sobretudo com projetos de poder) e como fica a dimensão internacionalista?

8. Como pensar na superação do capitalismo sem estatização?

9. A reinvenção da emancipação por meio de práticas experimentalistas passa por uma reinvenção por baixo. O problema é: como construir coligações democráticas com todas essas forças e movimentos diferentes contra o poder oligárquico?

10. Como fazer com que a esperança ressurja diante de um mundo tão sombrio e do extermínio de seres humanos e outras espécies? Como refazer a imaginação política e as utopias?

 

- Christian Laval é professor de sociologia na Universidade Paris Ouest Nanterre La Défense, especialista em liberalismo e em particular na filosofia utilitarista de Jeremy Bentham. É doutor em sociologia, membro do GÉODE (Groupe d’étude et d’observation da démocratie, Paris X Nanterre/CNRS) e do Centro Bentham. Também é investigador e vice-presidente do Institut de recherches da Fédération syndicale unitaire.

Laval é autor de muitos livros sobre esses temas, muitos deles em colaboração com Pierre Dardot.

 

26 Setembro 2018

http://www.ihu.unisinos.br/583093-para-christian-laval-apesar-das-desproporcoes-o-comum-continua-sendo-a-principal-ameaca-ao-neoliberalismo

 

https://www.alainet.org/es/node/195562
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