Estudo relaciona uso de agrotóxicos com câncer no sangue
- Opinión
São Paulo – O primeiro estudo realizado no Brasil sobre a relação do uso de agrotóxicos com o surgimento do linfoma não-Hodgkin (LNH), um tipo de câncer hematológico que nas últimas décadas tem afetado com mais frequência a população mundial, foi um dos destaques da audiência pública realizada nesta terça-feira (27), pela Comissão de Saúde da Assembleia Legislativa de São Paulo, para debater os efeitos causados na saúde e no meio ambiente pelo uso de agrotóxico.
O alerta foi feito por Márcia Sarpa de Campos de Mello, pesquisadora do Instituto Nacional de Câncer (Inca) e uma das três autoras do estudo. A pesquisa mostrou que os agrotóxicos 2,4-D, diazinona, glifosato e malationa estão relacionados a esse tipo de câncer – glifosato e 2,4-D são os dois agrotóxicos mais utilizados no Brasil.
“Diante desse cenário de extrema vulnerabilidade da população brasileira a doenças causadas pelos agrotóxicos, diretrizes regulatórias e legislações mais restritivas são urgentes, assim como o investimento em serviços de saúde e a promoção de políticas de prevenção de doenças crônicas não transmissíveis”, diz o trecho final do estudo Exposição ambiental e ocupacional a agrotóxicos e o linfoma não-Hodgkin.
A relação dos agrotóxicos com o LNH se soma a muitas pesquisas e estudos desenvolvidos tanto no Brasil quanto no exterior, que apontam a conexão entre o uso de venenos na lavoura e o surgimento de diversos tipos de câncer – a segunda maior causa de mortes no Brasil. Segundo estimativa do Inca, cerca de 600 mil novos casos de câncer surgiram em 2016 no país.
Márcia Sarpa enfatizou que a classificação toxicológica dos agrotóxicos leva em conta apenas os “efeitos agudos”, que afetam normalmente os trabalhadores que manipulam diretamente os produtos. Algo que, para ela, é um grave erro. O glifosato, por exemplo, é classificado como “pouco tóxico”.
“A toxicidade aguda é a pontinha do iceberg”, afirmou a pesquisadora do Inca. Para ela, o problema maior está na toxicidade crônica, aquela relacionada à exposição frequente a pequenas doses do produto. Entre os efeitos conhecidos da toxicidade crônica estão problemas de fertilidade, no desenvolvimento do feto, a má formação congênita, a desregulamentação endócrina, mutações e variados tipos de câncer.
“Já temos certeza de todas essas toxicidades, de todos esses efeitos”, afirmou Márcia Sarpa, lembrando que a literatura médica indica que entre 15% e 20% dos cânceres são relacionados à predisposição genética, enquanto entre 80% e 85% são causados por “fatores ambientais”.
Saúde pública
Desde 2008, o Brasil é o país que mais consome agrotóxicos no mundo. Mais da metade das substâncias presentes nestes produtos químicos adotados nas lavouras brasileiras são proibidas em países da Europa e nos Estados Unidos. De acordo com o Dossiê Abrasco, cerca de 70% dos alimentos in natura consumidos no país estão contaminados por algum tipo de agrotóxico, sendo que, desses, segundo dados da Anvisa, 28% contêm substâncias não autorizadas para uso no Brasil. Além disso, conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS), os agrotóxicos causam, anualmente, 70 mil intoxicações agudas e crônicas na população dos países em desenvolvimento.
Os efeitos nocivos do uso de agrotóxico na saúde humana, no meio ambiente, os interesses econômicos e políticos do agronegócio, incluindo a tramitação do Projeto de Lei 6.299/2002, o chamado “pacote do veneno”, foram os temas que predominaram durante as quase três horas da audiência pública, solicitada pelos deputados estaduais do PT Carlos Neder e Marcos Martins.
“É importante dizer que a Fundação Oswaldo Cruz tem clareza que o uso de agrotóxico é um problema de saúde pública, que precisa ser enfrentado e que está afetando a vida das futuras gerações”, afirmou Luis Claudio Meirelles, pesquisador em saúde pública da Fiocruz.
Para ele, a falta de informações oficiais confiáveis sobre o uso de agrotóxico no Brasil causa um cenário de “embate técnico”. Meirelles disse que há uma lacuna na transparência e no direito à informação, tanto em nível federal quanto estadual. “Em vez de melhorar, nos últimos anos conseguimos piorar.”
O pesquisador destacou que, embora a literatura internacional seja “inequívoca” com relação aos perigos causados pelos agrotóxicos, os órgãos de controle e fiscalização no Brasil são frágeis. Como exemplo, citou o caso da água, dos alimentos processados ou de origem animal, cujo monitoramento é “parcial ou inexistente”.
“No Brasil, se usa produtos perigosos ou já banidos em outros países. A Europa está falando em banir o glifosato e aqui a gente ainda nem discute o tema”, criticou. O pesquisador da Fiocruz enfatizou o caminho errado adotado pelo país para lidar com o assunto, ponderando que, enquanto a Organização das Nações Unidas (ONU) defende regulamentar e eliminar o uso de agrotóxicos, privilegiando práticas sustentáveis, no Brasil tramita o “pacote do veneno” – uma série de medidas com o objetivo de facilitar ainda mais o uso de agrotóxicos.
“Não é uma questão trivial, é complexa, mas podemos produzir os mesmos alimentos sem o uso de veneno”, afirmou Meirelles.
Proposta de transição
Coube a Carla Bueno, representante da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e Pela Vida, trazer à audiência pública informações que traçam o cenário atual da realidade do campo no Brasil. Entre os dados apresentados, destaque para o fato de míseros 1% dos agricultores do país serem donos de 45% das terras boas para a agricultura. Apesar da enorme concentração de terra, entre 2003 e 2010 os latifúndios aumentaram sua área em 5%, enquanto os minifúndios, pequenas e médias propriedades, diminuíram de tamanho. “Estamos concentrando ainda mais terra”, afirmou.
Segundo Carla, quanto maior a concentração de terra, mais baixo é o PIB per capita e maior a pobreza. “O agronegócio é dependente do veneno e não consegue sair dele. Eles não sabem como parar de produzir sem veneno.”
Apesar do cenário difícil, ela propõe que haja um debate público e um modelo de transição para o agronegócio diminuir o uso de agrotóxicos. Algo que tornou-se realidade por meio da Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PNaRA), transformada em dezembro do ano passado no Projeto de Lei 6.670/2016.
“O projeto é uma proposta de transição do modelo da agricultura, baseado em menos insumos químicos. O que estamos propondo para o Brasil é a construção, de forma gradual e cuidadosa, de uma transição de modelo de produção, algo mais do que necessário no processo em que vivemos, inclusive internacional, de cuidar da natureza, da nossa população e evitar ao máximo o uso dessas substâncias”, explicou a representante da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e Pela Vida.
“Sabemos que esse Congresso não representa o desejo e o que pensa o povo brasileiro. Nossa tarefa é fazer a mobilização social fora do Congresso para então estimular o debate lá dentro e tentar, de alguma forma, colocar uma consciência mais humana nos deputados que lá estão.”
O PL 6.670 começará a tramitar em comissão especial criada para analisar o tema. Após alcançar o número mínimo de deputados, a expectativa é que a comissão seja instalada em breve.
“A audiência de hoje teve o caráter de denúncia, mas também caminhamos para a busca de alternativas. Vamos nos dedicar cada vez mais a pensarmos alternativas no marco legal, na produção de políticas e na geração de produtos sem o uso de agrotóxicos. Continuaremos essa discussão no sentido de pensar um fórum permanente, que se articule com o fórum paulista e a campanha nacional, para que São Paulo esteja na dianteira dessa luta contra o uso de agrotóxico e os prejuízos causados à saúde e ao meio ambiente”, disse, ao final da audiência, o deputado Carlos Neder.
- Luciano Velleda, para a RBA
28/06/2017
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