Benvindos à Era do Novo Normal
- Opinión
Instrumentado por aquilo que se chamou “pós-verdade”, o Brasil ingressou numa nova etapa de sua trajetória de alguns avanços e maiores recuos. Após a última investida – um estágio fugaz de atualização civilizatória – vive a retirada para uma zona de trevas. Tudo sob a égide do que era insólito, estapafúrdio ou francamente grotesco mas que hoje está sendo aceito, digerido e assimilado: a Era do Novo Normal.
No período histórico impreciso em que passamos a viver em 2016 – arrisco um palpite entre as versões sociais do Permiano e do Triássico – o Novo Normal dá as cartas e joga de mão. Legitima-se através das capitanias hereditárias da mídia que, embora decrépitas, ainda subjugam o país à agenda que adotam, impõem e disseminam. Que define o que existe e o que não existe. O que é ou que não é. E, no limite, quem deve receber afeição ou quem merece abominação.
Sua tarefa é respaldar a implantação do Novo Normal. Antes, acionou seus canhões incessantemente contra o governo que seria deposto. Limpo o terreno, suas Panzer Divisions forçaram o impeachment. Sem crime de responsabilidade seria golpe como efetivamente o foi. Mas já era o Novo Normal pedindo passagem. Golpe aplicado, uniu-se o útil – a defesa do governicho temerário – com o agradável – a irrigação com verba pública dos combalidos cofres das empresas. A gratidão deixa-se ver nas manchetes: a economia não está tão ruim quanto aparenta, há fortes sinais de reaquecimento, a Bovespa reage, Meirelles sabe das coisas. É o Ministério da Verdade em ação. Orwell não faria melhor.
Ironicamente, o Novo Normal não é novo. É arcaico. Algumas de suas novidades remetem ao século 19. Tampouco é normal. É bizarro. Sua imposição é avassaladora no cotidiano mas não pretende publicidade. Antes deseja passar despercebido. Apresentar-se como algo que sempre foi assim. Que sempre esteve aqui e contra o qual não existe fuga ou remédio.
Só assim o Novo Normal consegue o efeito que procura. Só assim alguns eventos se encaixam numa sociedade apalermada e não numa comédia de costumes. Só assim torna-se banal um réu delatado 43 vezes levar seu juiz para um passeio em Portugal.
Somente na Era do Novo Normal entende-se como fato nada mais do que tedioso o encontro entre o mesmo réu, o mesmo juiz e mais um réu do mesmo juiz para uma conversa domingueira amena na residência do primeiro réu à sombra convidativa de uma árvore.
Só mesmo com a autoridade do Novo Normal seria possível um dos réus acima indicar para ministro da suprema corte, um candidato três vezes acusado de plágio acadêmico, que, pitorescamente, fez pós-doutorado antes do doutorado, tomou zero em prova para professor de direito, mostrou-se inepto e mentiroso enquanto ministro da Justiça, submeteu-se à sabatina informal de senadores e delatados num barco-puteiro do lago Paranoá, e que, aceito no STF, será justamente o revisor dos processos da Lava-Jato e que implicam justamente aquele que o indicou e boa parte de seus examinadores no Senado.
Em nenhum momento da História senão da Era do Novo Normal seria considerado normal o novo ministro da Educação, tão logo assentou os glúteos no trono da pasta, receber de um ator de filmes pornôs como “Foda Radical” dicas de como salvar o Brasil e as crianças brasileiras.
Nada senão a Era do Novo Normal permitiria a médicos,com o compromisso de salvar vidas conforme o juramento e o sentido de sua profissão, frequentarem o Facebook para sugerir modos de assassinar pacientes.
Quem, exceto o Novo Normal, admitiria que juízes do tribunal dos tribunais decidam julgar calcados muito mais em subjetividades, conveniências e acordos políticos do que na letra fria da lei?
Em que outra época, senão a do Novo Normal, seria aceitável que uma corte suprema opine de um modo – para inviabilizar um governo – e depois de maneira totalmente oposta embora a questão em julgamento fosse exatamente idêntica – para viabilizar outro governo?
Sob o Novo Normal aceita-se que um governo eleito e legítimo seja removido sem crime e que, no seu lugar, instale-se, sem votos, uma tropa de delatados, a escumalha da ribalta política nacional, para, de pronto, deflagrar a dilapidação frenética do patrimônio do país.
Um governo onde, à semelhança da crônica policial, seus protagonistas e cúmplices atendem por apelidos como “Careca”, “Caju”, “Angorá”, “MT”, “Primo”, “Índio”, “Botafogo”, “Missa”, “Boca Mole”, “Gripado”, “Santo”, “Justiça”, “Caranguejo”… Assim são descritos, com escárnio, pelos diretores da Odebrecht na lista de dinheiro distribuído sorrateiramente pela empresa.
Apenas sob a normalidade do Novo Normal uma nação de jovens, com maioria negra e também maioria de mulheres, poderia ser governada por um colegiado espúrio de homens, ricos, velhos e brancos.
O Novo Normal acha normalíssimo o Executivo e o Legislativo, mancomunados, congelarem por 20 anos os gastos com saúde e educação. Quem, afinal, precisa dessas duas bobagens?
Na Era do Novo Normal restringir – agora, para banir mais tarde – o ensino de filosofia, sociologia, artes e história no ensino médio – disciplinas emancipadoras, imprescindíveis para compreender a vida e o mundo numa época de tantas fragmentações — não resulta em mais do que sonolência.
Somente na Era do Novo Normal um juiz de primeira instância decreta um festival de prisões preventivas ao ponto de vulgarizar tal instrumento e, ao se defender, proclama que os tempos são “excepcionais”. E, portanto, dane-se a ausência de provas, dane-se a presunção de inocência, dane-se a Constituição.
Refulgindo sob os holofotes de seus parceiros midiáticos, o mesmo magistrado transfigura-se numa cornucópia de vazamentos seletivos, entre os quais um grampo telefônico da presidente da república e de seu antecessor numa clara, grave e aberrante ilegalidade que deveria, de imediato, apartá-lo da lide. Não, porém, segundo as diretrizes do Novo Normal.
No Novo Normal ganham foro de trivialidade atitudes como as de sair à rua para pedir a volta da ditadura militar, de pedir bala na cara para quem pensa diferente, de intimidar pessoas que vestem vermelho!
Logo, daqui há pouco, quando o pior parlamento que o dinheiro pôde comprar, votar e aprovar a reforma da previdência urdida à socapa e você souber que somente se aposentará post mortem, não estranhe. Também não estranhe quando a destruição das leis trabalhistas deixá-lo desamparado frente à injustiça. Compreenda que, com o advento dos novos velhos tempos, todo o Brasil se converteu em campo de caça. É um território completamente aberto à predação. É um vasto galinheiro administrado pelas raposas. E, lembre-se: você é uma galinha. Benvindo à Era do Novo Normal.
- Ayrton Centeno é jornalista.
fevereiro 16, 2017
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