A política econômica dos mosquitos
- Opinión
No início desta semana, em conjunto com a revisão trimestral do Banco de Compensações Internacionais (BIS), o economista Claudio Borio chamou atenção para o aumento da dependência dos mercados financeiros em relação aos bancos centrais, que estão sobrecarregados por tempo prolongado. A atuação das autoridades monetárias tem impulsionado os preços dos ativos, ainda que os “fundamentos econômicos” não tenham se alterado.
Após o quantitative easing a liquidez assegurada pelos Bancos Centrais permanece represada na posse dos controladores da riqueza já acumulada, que rejeitam a possibilidade de vertê-la em criação de riqueza nova, ante o medo de perdê-la nas armadilhas da capacidade produtiva sobrante e do desemprego disfarçado nos empregos precários com rendimentos cadentes.
Desamparados do empuxo da demanda, os bancos centrais rebaixam suas taxas de juro para o subzero, tentam mobilizar a liquidez empoçada para o crédito e do crédito para a demanda de ativos reais ao longo do tempo. Mas a coisa não anda ou trota a passos de Rocinante.
O relatório trimestral do BIS destaca os níveis historicamente baixos dos rendimentos dos ativos de renda fixa: “As taxas de juro de curto prazo próximas de zero nos Estados Unidos e no Reino Unido equivalem ao vale do pós-Grande Depressão, enquanto as taxas de curto prazo na Alemanha e no Japão alcançaram níveis sem precedentes”. O volume de dívida governamental negociada a taxas negativas ultrapassou o valor de 10 trilhões dólares em julho desse ano.
Junto à queda nas taxas de juro, o relatório do BIS relata a elevação nos preços das ações, o que chamou de “dissonância aparente”. Em agosto deste ano o site Zero Hedge publicou matéria com a epígrafe “Comprador misterioso revelado: o Swiss National Bank aumentou sua posição em ações de empresas norte-americanas em 50% no segundo trimestre de 2016, alcançando o recorde de 62 bilhões de dólares”.
Entre os aproximadamente 30 bilhões de dólares em ações comprados pelo Banco Nacional Suíço estão empresas como Apple, Exxon Mobil, Microsoft, Johnson & Johnson, At&T, General Electric, Amazon, Facebook, Procter & Gamble e Coca-Cola.
O Zero Hedge aponta outro ator estatal na compra sem precedentes de ações de empresas americanas, o General Pension Investment Fund do Japão. Com poder de fogo de 1,3 trilhão de dólares, o fundo de pensão japonês adquiriu bilhões em ações nos últimos meses. Segundo a matéria “isso responde a recorrente pergunta de quem tem comprado ações enquanto os outros vendem: bancos centrais”.
O aumento na liquidez não anima as grandes corporações que, segundo Joseph Stiglitz, estão sentadas em centenas de trilhões de dólares, pois já detêm capacidade produtiva em excesso, ou os bancos que ainda estão relutantes em repassar taxas de curto prazo negativas aos seus depositários, conforme afirma o relatório do BIS.
Nesse cenário, a proposta de passar por cima dos bancos e injetar liquidez diretamente nas pessoas (helicopter money), para retirar as economias da letargia, parece cada vez menos teórica e hipotética. Usado originalmente por Milton Friedman para ilustrar os efeitos da política monetária sobre a inflação, e não como uma proposta real, o conceito vem crescendo no debate entre economistas como alternativa mais efetiva para elevar a demanda agregada, especialmente em situações de armadilha da liquidez.
Ao longo do século XX, políticas econômicas foram forjadas, almejando estabilizar uma economia com fortes inclinações à instabilidade, sob o receio de reedição do desastre social e econômico ocorrido na Grande Depressão dos anos 30.
As políticas anticíclicas cumpriram o que prometiam ao sustar a recorrência de crises de “desvalorização de ativos”. Mas, ao garantir o valor dos estoques de riqueza já existente, as ações de estabilização ampliaram o papel dos critérios de avaliação dos Mercados da Riqueza nas decisões de gasto de empresas, consumidores e governos.
As injeções de liquidez concebidas para evitar a deflação do valor dos ativos já acumulados incitaram colateralmente a conservação e valorização da riqueza na sua forma mais estéril, abstrata, que não carrega qualquer expectativa de geração de novo valor, de emprego de trabalho vivo. O que era uma forma de evitar a destruição da riqueza abstrata provocou a necrose do tecido econômico e o sufocamento do espírito empreendedor pelo garrote do rentismo refestelado nas bolhas de ativos.
Não por acaso, o Federal Reserve hesita em subir a taxa de juros. O choque sobre a pirâmide de ativos sobrevalorizados ficticiamente pode ser fatal. Enredadas nas teias da globalização financeira, as economias nacionais balançam entre uma reunião e outra do Comitê de Política Monetária de Tio Sam. Umas sacodem mais que outras. O BIS “aponta para potenciais preocupações no Brasil, China, Canadá e Turquia”. O Brasil apresenta o maior custo de serviço da dívida dos países listados, quase 30% acima da Turquia, que detém o segundo maior, figurando em posição extremamente vulnerável no caso de uma eventual elevação das taxas de juro internacionais.
A nova equipe econômica no Planalto tenta vender a “redução estrutural da taxa de juros” a partir da aprovação do teto para as despesas primárias e reforma da Previdência. Anuncia o “Projeto Crescer”, com projeções de queda na Selic de 3,25 pontos para os próximos 12 meses. Faltou combinar com o presidente do Federal Reserve de Boston, Eric Rosengren. Sua declaração de que o BC norte-americano enfrenta cada vez mais riscos se esperar muito tempo para elevar a taxa de juros foi suficiente para provocar a maior alta diária do dólar ante o real dos últimos quatro meses. Na quarta-feira 21 de setembro a presidente do Fed jogou a ameaça para as próximas reuniões do FOMC. Alívio na Tropicália.
A política monetária nacional está subsumida à forma de inserção passiva do Brasil na hierarquia entre nações e suas moedas. A saliência da taxa Selic expressa a volátil correlação de uma moeda não conversível com os capitais em movimentos da finança globalizada. A valorização do real por meio da exorbitância da Selic é o expediente empregado (há mais de 20 anos) por nossas autoridades monetárias para conter a inflação e ceifar a indústria nacional.
Dany Rodrik, economista de Harvard, afirma que ao analisarmos economias como Japão, Coreia do Sul e China, veremos que todas se engajaram globalmente de forma seletiva e estratégica. A China impulsionou exportações, mas também administrou as importações para proteger o emprego em empresas estatais e exigiu de investidores estrangeiros a transferência de conhecimento para companhias domésticas.
Outros países que apostaram na globalização como motor do seu crescimento falharam em arquitetar uma estratégia doméstica. O proclamado Novo Renascimento dos anos 90 transmutou-se na Decadência do Novo Primata Exportador.
Rodrik relata a descrição de um estudante chinês da estratégia de globalização do seu país. A China abriu uma janela para a economia mundial, mas colocou uma tela nela. O país recebeu o ar fresco necessário – aproximadamente 700 milhões de pessoas foram alçadas da pobreza extrema desde o início dos anos 1980 –, mas manteve os mosquitos fora.
No Brasil, a abertura financeira infestou a economia de moscas e mosquitos.
29/09/2016
http://www.cartacapital.com.br/revista/920/a-politica-economica-dos-mosquitos
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