As afrodescendentes como sujeitas de direitos
- Análisis
Artigo publicado em espanhol na Revista América Latina en Movimiento No. 501: El Decenio Afrodescendiente 10/02/2015 |
A proclamação do Decênio para as pessoas afrodescendente tem a importância de apresentar uma visão prospectiva a um problema de longa data: o racismo. Suas causas e consequências persistem e mudam até os dias atuais. Portanto, faz-se necessário proceder ao seu combate através da desconstrução de estereótipos, estigmas, preconceitos, formas de discriminação, etc. Em resumo, constituem diversas manifestações da desigualdade que colocam as populações afrodescendentes da América Latina na base da pirâmide social. As maiorias pobres e excluídas do continente.
Trata-se de um tema de justiça histórica; dessa forma, é indispensável o reconhecimento da desvantagem em que vivem mais de 200 milhões de pessoas na América Latina e que tem afetado o continente africano, mantendo-o subdesenvolvido e oprimido. A pobreza extrema, as pandemias e a fome em que vive o continente mais rico do mundo não tem outra causa que não a exploração indiscriminada à qual foi submetido ao longo dos últimos 500 anos.
Racismo, que se sustenta em uma ideologia de supremacia de algumas pessoas sobre as outras, racismo instaurado nas estruturas de nossas sociedades, que se expressou material e culturalmente.
O processo expansionista iniciado pela Europa no século XVI, gerador do tráfico de pessoas escravizadas, resultou como o genocídio mais importante da história e o início do sistema capitalista através de sua fonte principal: a acumulação de capital através do comércio de pessoas, homens e mulheres retirados do continente africano.
Será o período colonial que vai estabelecer em suas estruturas de Estado/Nação, através dos valores, crenças, práticas discriminatórias, a situação que – apesar da forte resistência e resiliência – colocou milhões de pessoas nas margens das cidades em espaços segregados e as excluiu dos processos de desenvolvimento para os quais a América Latina e o mundo se encaminhavam.
Como contraofensiva às formas de opressão e exclusão vividas, as ações coletivas, organizadas pelos movimentos, organizações e lideranças, vêm gerando novos paradigmas emancipatórios.
Os diferentes contextos marcaram desafios entre os quais, em um quadro evolutivo, se destacam a batalha ideológica, a visão estratégica e um processo de alianças. Sua finalidade tem sido a busca pela incidência necessária para as transformações que devemos alcançar.
Por tudo isso, faz-se necessária uma tomada de consciência em que a “questão racial” deve ser abordada a partir dos Estados como garantidores dos direitos. Neste sentido, temos de propiciar uma tomada de decisões políticas que traduza de forma coerente os princípios que enuncia a carta de Direitos Humanos e também seu exercício efetivo.
O Decênio para as pessoas afrodescendentes não surgiu espontaneamente: ele é resultado de um longo processo histórico que nos últimos 100 anos transitou por lutas, ideias e ações; no qual as diferentes correntes teóricas construíram um aporte teórico rico, diverso (ainda que pouco conhecido) que se entrelaçou com outros movimentos como o feminista, o indigenista, com os processos revolucionários efervescentes que atravessaram o século XX.
Marcus Garvey e Aimee Cesaire, Frantz Fannon, Du Bois, MalcomX e Martin Luther King Jr, Nelson Mandela, Kwame Nekruma, Angela Davis, Andree Lorde, Patrick Lubumba, Bell Hooks, Leila Gonzalez, Abdias do Nacismento, formaram, entre outros/as, a “intelligentsia” emergente do desejo de liberdade e desenvolvimento dos nossos povos.
Mais recentemente, dando continuidade a essas lutas, a aprovação da Convenção contra o Racismo criou legislação internacional e nacional necessárias, às quais se unem os resultados da III Conferência Mundial Contra o Racismo, realizada no ano de 2001 em Durban – África do Sul, que marca uma inflexão determinante.
Um avanço e estímulo substantivo foi a Pré-conferencia de Santigo, no ano de 2000, onde se estabeleceram os enunciados mais importantes em termos de reconhecimento da escravidão como crime de lesa humanidade, incluíram-se as reparações como parte da dívida histórica e a necessidade de impulsionar ações afirmativas como ferramentas que permitem gerar igualdade de oportunidades para os nossos povos, compreendendo estes aspectos provavelmente como os mais significativos, assim como o conceito de interseccionalidade ao qual faremos referência mais adiante.
A Declaração e o Plano de Ação de Durban pautam um tempo de transformações convertendo-se em um imperativo com uma clara definição em que os Estados se comprometeram a implementar ações, programas e políticas públicas.
Da mesma forma, se estabelece um programa preponderante para as organizações sociais, as quais deverão organizar um monitoramento permanente, assegurando dessa forma seu cumprimento e, por tanto, o alcance da igualdade.
Uruguay: As políticas de gênero e igualdade racial
Passaram-se quase 15 anos dessa instituição e, por isso, indubitavelmente, existem avanços de diferentes categorias.
Gostaria de me concentrar no que foi a realidade uruguaia, e particularizar o processo anteriormente citado em torno do debate e da construção de políticas que focaram a dimensão racial e de gênero. Sem dúvidas, me permito esta análise partindo da base de que se trata da particularidade de um país, cuja maioria afrodescendente teve um processo organizado de forte incidência política, tanto regional como nacionalmente.
Conforme a idiossincrasia altamente politizada da sociedade uruguaia, é inseparável a análise sócio-política de um contexto de transformações que levaram a esquerda uruguaia a ascender ao governo departamental e nacional nos últimos 20 anos.
Sob os princípios de igualdade e justiça que se erigiram desde o retorno da democracia, abre-se um cenário propício para iniciar uma etapa de inserção no Estado uruguaio de uma série de movimentos de negociação política. Os mesmos deram começo a um processo de instalação de mecanismos de igualdade racial no governo. A importância de um quadro institucional cobra uma nova dimensão colocando a interseccionalidade como principio regulador das políticas em uma matriz de proteção social levada adiante pelo governo da Frente Ampla.
A criação da institucionalidade racial em nossos países abre uma porta fundamental para as mulheres afrodescendentes. Os mecanismos de igualdade racial são majoritariamente liderados por mulheres afrodescendentes que já possuem uma longa trajetória na área, tanto na Secretaria de Igualdade Racial do Brasil como no Uruguai.
No Uruguai, se instalam mecanismos em âmbito departamental na Intendência de Montevideo e nos Ministérios de Desenvolvimento Social (Inmujeres e Inju), Ministério da Habitação, do Ordenamento Territorial e do Meio Ambiente, Ministério de Relações Exteriores.
Nem todos os mecanismos permaneceram ao longo desse processo institucional de mais de 10 anos. Diversos fatores originaram essa fraca sustentabilidade. Igualmente, chegaram ao presente as reflexões sobre intersecção de gênero e raça nas políticas públicas.
As primeiras definições foram as que denominamos “criação de condições necessárias” que possibilitaram dois objetivos fundamentais: a transversalização da perspectiva étnico-racial e de gênero no Estado e o empoderamento das mulheres afrodescendentes como sujeitas de direitos.
Foi necessário sensibilizar operadores e decisores, o que implicou em um processo de capacitação em relação à dimensão étnico-racial e de gênero. Para tanto, trabalhou-se fortemente com os organismos do Estado, particularmente com a Escola de Administração Pública, responsáveis pela formação do funcionariado público (nos últimos 10 anos foram capacitados mais de 10.000 funcionários/as).
Simultaneamente, foram criados dados estatísticos através do Sistema de Informação de Gênero, o que nos permitiu estarmos mais próximos da realidade da mulher afrodescendente.
Uruguai aprova, em 2013, a Lei de Ações Afirmativas; o Departamento de Mulheres Afrodescendentes do Inmujeres tem sido parte ativa na criação e regulamentação de tal lei. Este ano se iniciará sua implementação.
Foram criados protocolos de atuação para propiciar a mudança na Educação Formal a médio prazo, em um esforço de trabalho conjunto com os organismos correspondentes.
Neste sentido, a instalação do Diplomado Afrodescendente na Universidade da República tem sido um passo que reafirma esta visão prospectiva na qual a geração de conhecimento e o envolvimento de uma grande instituição de estudo asseguram e possibilitam um maior rigor científico, condição fundamental para a implementação das políticas públicas.
A contribuição dos movimentos
Não queria terminar este artigo sem fazer menção ao programa fundamental da Rede de Mulheres Afrolatinas, Afrocaribenhas e da Diáspora, articulação regional que tem desempenhado um papel central nos processos avaliativos e propositivos das diferentes instituições internacionais que, durante os últimos 20 anos, marcaram o caminho dos movimentos feminista, de mulheres e em particular, das mulheres afrodescendentes, tais como Cairo+20, Beijing+20 Rio+20, Objetivos do Milênio: Agenda para o Desenvolvimento.
Portanto, a confluência de um processo estatal progressivo assim como uma sociedade civil de mulheres organizadas permite reconhecer avanços e ações de complementariedade, fatores indispensáveis para o avanço em direção à igualdade racial e de gênero.
O Decênio constitui uma oportunidade para recuperar os avanços metodológicos, conceituais e políticos acumulados até os dias de hoje pelos coletivos afrodescendententes. Devem elaborar planos de ação que estabeleçam metas e indicadores que permitam monitorar os avanços na área assim como o impacto na vida das pessoas.
Ressaltamos como aspecto central a recuperação das bases ideológicas próprias do movimento de mulheres feministas afrodescendentes no qual se coloca um debate político tanto no interior do movimento feminista como no movimento afro misto, a partir de uma perspectiva dos Direitos e onde a interseccionalidade tenha uma nova dimensão.
Trata-se de construir um processo emancipatório que, a partir das dimensões de gênero, raça e classe como de direitos fundamentais, sustente o avanço em direção à igualdade. Trata-se da felicidade e dignidade de nossos povos, imperativo que não admite a menor demora.
- Beatriz Ramírez Abella é Diretora do Instituto Nacional das Mulheres, Ministério do Desenvolvimento Social, Uruguay.
Quadro 1. EDUCAÇÃO: Distribuição percentual de pessoas maiores de 24 anos de acordo com sexo e descendência étnico-racial por nível educativo. Total país, 2011
| Afro | Não afro | ||
| Homens | Mulheres | Homens | Mulheres |
Sem instrução | 1,8 | 2,0 | 1,1 | 1,4 |
Primária (comum ou especial) | 45,1 | 42,1 | 34,5 | 33,9 |
Ciclo básico | 26,3 | 23,3 | 22,7 | 18,0 |
Ensino Médio | 13,7 | 16,3 | 19,0 | 20,4 |
Ensino Técnico/Formação Profissional | 6,2 | 4,3 | 6,2 | 3,8 |
Terciário não universitário | 2,3 | 5,3 | 3,6 | 8,7 |
Universidade e Pós-Graduação | 4,6 | 6,8 | 12,9 | 13,9 |
Total | 100,0 | 100,0 | 100,0 | 100,0 |
Fonte: Sistema de Informação de Gênero, Inmujeres-MIDES, com base no Censo 2011, INE (Uruguay). |
Quadro 2. MERCADO DE TRABALHO: Taxa de Atividade, Emprego e Desemprego segundo descendência afro. Total país, 2011
| Taxa de Atividade | Taxa de Emprego | Taxa de Desemprego | |||
| Homens | Mulheres | Homens | Mulheres | Homens | Mulheres |
Afro | 76,7% | 57,3% | 71,9% | 51,7% | 5,1% | 12,0% |
Não Afro | 72,1% | 52,7% | 71,0% | 51,3% | 4,3% | 8,4% |
Fonte: Sistema de Informação de Gênero, Inmujeres-MIDES, com base no Censo 2011, INE (Uruguay).
Quadro 3. POBREZA E INDIGÊNCIA: Porcentagem de pessoas vivendo em lares pobres segundo descendência étnico-racial. Total país, 2013
Afro | Não afro | Total | |
Pobre | 25,2% | 9,8% | 11,5% |
Indigente | 1,5% | 0,4% | 0,5% |
Fonte: Sistema de Informação de Gênero-Inmujeres, com base em ECH 2013 INE (Uruguay)
Artigo publicado na América Latina en Movimiento , No. 501: http://alainet.org/publica/501.phtml
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