Os desafios da reforma agrária integral e popular

Os camponeses vivem um processo permanente de disputa entre dois projetos na agricultura: um do capital e outro dos trabalhadores.
27/03/2015
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Artigo publicado em espanhol na Revista América Latina en Movimiento No. 502: Agricultura Campesina para la Soberanía Alimentaria 19/03/2015

Nas últimas décadas, em todo o Continente Latino Americano, os/as camponeses/as, indígenas e afrodescendentes vivem um processo permanente de disputa entre dois projetos na agricultura: um do capital e outro dos trabalhadores.

 

De um lado, defendendo o projeto do capital, estão os latifundiários, as empresas capitalistas nacionais e multinacionais, os bancos, os grandes meios de comunicação e os governos conservadores. Esse setor vem a todo custo tentando concentrar a terra, a água, os minérios e os produtos, produzindo em áreas de monocultivos com prioridade para exportação utilizando cada vez menos mão-de-obra e utilizando cada vez mais agrotóxicos, se apropriando das sementes e transformando-as em patentes privadas e utilizando-se da transgenia, bem como apropriando-se e disputando cada vez mais os territórios com as populações tradicionais, colocando em risco todos os bens da natureza. São os chamados agrohidronegócios e o mineralnegócio, com o principal objetivo de conquistar o lucro máximo.

 

De outro lado, estão os camponeses/as, comunidades indígenas, trabalhadores agrícolas, afrodescendentes, pescadores e mulheres tentando resistir e construindo um modelo de produção baseado no trabalho, na viabilização de suas vidas no campo, na produção de alimentos saudáveis para si e para os trabalhadores urbanos, na preservação e recuperação do meio ambiente.

 

Estes dois projetos nos deixam claro que o que está em disputa na agricultura é a luta de classes entre o capital e os trabalhadores. O agrohidronegócio e o mineralnegócio com o apoio dos governos através de políticas públicas de incentivo com grandes volumes de recursos, se tornaram hegemonia na sociedade, afinal passaram a priorizar os investimentos na produção de soja (se transformando nos maiores produtores e exportadores de soja do mundo), de milho, de cana-de-açúcar (com suas usinas para açúcar e etanol), no cultivo extensivo de eucalipto para celulose para produção de carvão vegetal (para usinas guseiras siderúrgicas de exportação do minério de ferro) e pecuária extensiva. Poucas empresas agroindustriais de capitais nacionais e estrangeiros passaram a controlar praticamente todo o comércio das commodities e houve uma crescente centralização do capital que atua na agricultura, pois passaram a controlar as sementes, os fertilizantes, os agroquímicos, o comércio, a industrialização de produtos agrícolas e o comércio de máquinas agrícolas. Tudo isso, trazendo sérias mudanças e consequências estruturais na propriedade da terra, da produção, do emprego e da renda para os trabalhadores do campo e da cidade, pois nessa correlação de forças o agronegócio segue em ofensiva na concentração dos bens da natureza, na disputa territorial e utilizando a mídia burguesa para fazer propaganda de seus feitos e contra os trabalhadores.

 

Para os movimentos camponeses, indígenas, afrodescendentes e pescadores organizados na América Latina, desde a Coordenação Latino Americana de Organizações do Campo – CLOC, está claro que para enfrentar esse modelo, hoje a luta passa por enfrentar o debate da Reforma Agrária Integral e Popular. Por quê? Porque a partir da realidade agrária atual, dominada pelo projeto do capital e da inviabilidade da Reforma Agrária clássica, sob hegemonia da burguesia, na qual se pretendia apenas dividir a terra para desenvolver as forças produtivas do campo e mercado e servir para o desenvolvimento do capitalismo, não é mais necessária, apesar de ser tido muito importante para a humanidade, especialmente nos países onde fora realizada. Hoje, com o sistema financeiro em vigência, a burguesia não quer mais fazê-la, abandonou-a, em outras palavras: não precisa mais dela. Porém, os governos não conseguiram resolver os conflitos sociais e naturais da sociedade capitalista: dos sem terras, das comunidades indígenas, dos quilombolas, dos atingidos pelas mineradoras e barragens, dos desmatamentos, da contaminação das águas e mananciais, da contaminação dos alimentos por agrotóxicos, da destruição ambiental, da falta de perspectiva da juventude do campo, da exploração e violência causada às mulheres, da eliminação da biodiversidade, da concentração da terra e todos os bens da natureza,  dentre outros.

 

A Reforma Agrária Integral e Popular é uma concepção de Reforma Agrária que interessa não somente os camponeses, mas o conjunto da classe trabalhadora, especialmente dos trabalhadores e trabalhadoras que vivem nos grandes centros urbanos.  Sinaliza para o conjunto das bases dos movimentos e todos os aliados da sociedade, de que essa Reforma Agrária que defendem é sobretudo Popular!

 

Essa proposta de Reforma Agrária Integral e Popular requer medidas amplas, para além da distribuição da terra, que sintetiza o modelo de agricultura defendida pelos movimentos. É uma forma de resistência ao modelo de agricultura capitalista do agrohidronegócio e do mineralnegócio e propõe um processo de acúmulo de forças, tendo como objetivo a construção de um novo modelo de agricultura, voltado para as necessidades dos povos. Serve também para orientar os movimentos nas lutas, nas pautas de reivindicações e nas ações práticas por longos anos.

 

Os pilares da Reforma Agrária Integral e Popular consistem em:

 

  1. Democratização da terra: garantias de que a Reforma Agrária não seja somente a distribuição das terras, mas o acesso a todos os bens da natureza e os de produção na agricultura. Compreendendo tudo que esteja naquele território, como as matas, florestas, águas, minérios, sementes e toda biodiversidade, proibindo o desenvolvimento de projetos de extração mineral por parte de empresas nos territórios reformados, pois os minérios devem ser utilizados de forma sustentável, em benefício da comunidade e de todo o povo. Da mesma forma, exigir que a posse e o uso da água estejam subordinados aos interesses e necessidades de toda a população, pois a água é um bem na natureza e deve ser utilizada em benefício de toda a humanidade, por isso, a água não é mercadoria e não pode ter propriedade privada. Também a garantia a todos os trabalhadores e trabalhadoras do direito ao acesso a terra para morar e trabalhar.

 

  1. Organização da Produção Agrícola: priorizar a produção de alimentos saudáveis para toda a população, garantindo o princípio da soberania alimentar, livres de agrotóxicos e de sementes transgênicas. Desenvolver programas de soberania energética em todos os territórios, com base em fontes alternativas renováveis, como vegetais não alimentícios, energia solar, hídrica e eólica. Organizar a produção e comercialização com base em todas as formas de cooperação agrícola.

 

  1. Desenvolver uma nova matriz tecnológica de produção e distribuição da riqueza na agricultura: exigir dos Estados políticas de créditos, pesquisas e financiamentos voltados para uma produção agrícola baseados na agroecologia e com aumento de produtividade do trabalho e das áreas, em equilíbrio com a natureza. Garantir programas de reprodução, armazenagem e distribuição das sementes crioulas e agroecológicas de produção dos camponeses, inseridos no programa de soberania alimentar do país. Combater a propriedade privada intelectual das sementes, animais, bens naturais, biodiversidade ou sistemas de produção e combater a produção e comercialização de agrotóxicos e sementes transgênicas em todos os países.

 

  1. Industrialização e política agrícola: desenvolver pequenas agroindústrias no interior do país, garantindo agregar valor à produção e gerar maior renda para a população camponesa e promover um desenvolvimento equilibrado entre as regiões, assim como desenvolver centros de pesquisas, qualificação técnica e intercâmbio de conhecimentos, voltados para as atividades das agroindústrias e a preservação ambiental. Exigir do Estado políticas públicas que garantam os instrumentos de política agrícola para todos os/as camponeses/as – garantias de preços rentáveis, crédito rural adequado, seguro rural, assistência técnica e tecnológica, armazenagem, máquinas, equipamentos e insumos necessários para a atividade agrícola. Exigir que os/as camponeses/as tenham participação efetiva na formulação de todas as políticas públicas para a agricultura.

 

  1. Educação: o acesso à educação é uma das condições básicas da construção do projeto de Reforma Agrária Integral e Popular, pois a educação é um direito fundamental de todas as pessoas e deve ser atendido no próprio lugar onde elas vivem e respeitando o conjunto de suas necessidades humanas e sociais. Para isso, exigir do Estado e implementar programas massivos de alfabetização de jovens e adultos do campo,  universalizar o acesso à educação básica e ampliar o acesso de jovens e adultos à educação profissional de nível médio e superior com prioridade às demandas e de desenvolvimento do conjunto das comunidades camponesas.

 

  1. Lutas: sem um profundo processo de lutas, organização e pressão pelo conjunto da sociedade, não será possível conquistar esse projeto de Reforma Agrária Integral e Popular. Este, só será possível com enfrentamento do campesinato a esse modelo, através das lutas, das ocupações de terras, de resistência e de sobrevivência.  A realização deste projeto de transição dos bens da natureza e da agricultura latino-americana, só será superado quando for de fato uma bandeira defendida pelo conjunto da sociedade, em um contexto histórico de existência e aliança entre governos populares, que coloque o Estado a serviço das maiorias, com um movimento de massas, que coloquem os trabalhadores como sujeitos políticos permanentes pelas mudanças.

 

Diante desse quadro, vários desafios estão colocados nesse momento histórico, que são sentidos especialmente nesse período de preparação e realização do VI Congresso da CLOC, a realizar-se, de 10 a 17 de Abril, em Buenos Aires, Argentina.

 

Atuar prioritariamente, nas contradições do capital e do agrohidronegócio e do mineralnegócio. É necessário identificar em cada país os principais inimigos dos/as camponeses/as e fazer ações de denúncias sobre as contradições para toda a sociedade. Bem como realizar ocupações nos grandes latifúndios, enfrentando o debate da função social da terra;

 

Atualizar o estudo e debate sobre as experiências e processos de Reformas Agrárias existentes e aprofundar sobre o conceito de Reforma Agrária Popular;

 

Durante a realização do VI Congresso, debater temas importantes, que dialogam diretamente com as comunidades afetadas, como: povos originários, assalariados, barragens e trocas de experiências nos temas de soberania alimentar, agroecologia, feminismo popular e socialismo; bem como realizar lutas concretas em defesa da terra, água e Reforma Agrária;

 

Continuar a realização de missões e de solidariedade entre os países com mais conflitos de terras, como Guatemala, Honduras, Panamá, Colômbia e Paraguai, sobretudo ao Brasil em 2016, quando se completam 20 anos do Massacre de Eldorado dos Carajás, e a impunidade sobre o massacre perdura;

 

Continuar exigindo dos governos que cumpram as deliberações da Conferência Internacional sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural – CIRADR, em cada país e em nível internacional, realizada em Porto Alegre – Brasil, em março de 2006;

 

Massificar o processo de formação da juventude do campo e articular-se com a juventude urbana, buscando fortalecer os laços de organização e ações conjuntas;

 

Continuar trabalhando e acompanhando o tema dos Direitos Campesinos para garantir que em 2016, seja aprovado pela ONU;

 

Por fim, as raízes da Reforma Agrária Integral e Popular não estão somente no esgotamento objetivo da reforma agrária clássica. Elas brotam e crescem no enfrentamento dos sujeitos trabalhadores contra as forças do capital, que cada vez mais se apropria de todos os bens da natureza, da saúde e da cultura popular para transformar tudo em lucro. Por isso, essa proposta não se destina apenas aos trabalhadores do campo, ela abrange todas as forças e seguimentos que acreditam nas mudanças da sociedade. Por isso, acreditamos ser fundamental articular alianças com os trabalhadores das cidades, como forma de enfrentar a correlação de forças na luta de classes e buscar ter conquistas concretas para o avanço cada vez mais, nas bases dos movimentos e na sociedade em geral, da Reforma Agrária Integral e Popular. 

 

Marina dos Santos é da Direção Nacional do MST/Brasil e Membra da Comissão Política da Coordenação Latino Americana de organizações do Campo – CLOC, pela América do Sul.

 

Bibliografia consultada:

 

- Programa Agrário do MST; Secretaria Nacional do MST, 2013, São Paulo.

 

- Documentos de Trabajo Rumbo al VI Congreso Continental de Coordinadora Latino Americana de Organizaciones Del Campo; Secretaria Operativa, 2014, Argentina.

 

- Relatório da Reunião do Coletivo Terra, Água e Território da Via Campesina Internacional; Roma,  Janeiro/fevereiro 2015, Itália.

https://www.alainet.org/es/node/168502
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