Um social liberalismo à Brasileira

Balanço de oito anos do governo Lula

29/09/2010
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Entrevista com o politólogo Franck Gaudicahud
A poucos dias das eleições presidenciais e federais no Brasil, publicamos a versão atualizada de uma entrevista publicada na Revista Nouveaux Regards (Paris): fazer o balanço dos dois mandatos do governo Lula é também se projetar no próximo ciclo político de um país que tem uma importância maior na geopolítica regional e internacional. Como lembra um recente editorial, o jornalista do Le Monde diplomatique Renaud Lambert, já em 1971 Richard Nixon havia entendido que “Até onde vai o Brasil, irá a America Latina”.
Como se situa o Brasil numa perspectiva geopolítica, especialmente com respeito aos demais países latino americanos?
Algumas chifras são esclarecedoras: o Brasil representa emextensão a metade do território Sul Americano e sua população supera 190 milhões de habitantes. É um gigante em todos os pontos de vista. Sua economia se situa aproximadamente no oitavo ou nono lugar mundial, logo atrás da Espanha. Faz parte do grupo “BRIC”: Brasil, Rússia, Índia e China, acrônimo que designa os grandes países chamados emergentes. Mas os dirigentes brasileiros rejeitam esse término e consideram que representam uma economia “emergida”. É um país que, no plano diplomático e geopolítico, sempre buscoua autonomia, multilateralismo e certa independência. Desde que governa Lula, esse aspecto se acentuou ainda mais. O Brasil quer jogar na Primeira Divisão. Reclama, por exemplo, umlugar no Conselho de Segurança da ONU. Étambém um dos promotores do G-20, que foi concebido como umfórumeconômico mais amplo que o G-8 e aberto a alguns países do sul.
A vontade de se desenvolver de forma independente frente ao poder estadunidense levouo Brasil a dizer “não” ao projeto imperial da ALCA [1] em 2005, junto à Venezuela eàArgentina. É umfato que o voto do Brasil era absolutamente determinante já que dele dependia a continuidade do projeto. Por outro lado, não existe dúvida de que o Brasil desempenha um papel predominante no Mercosul [2] e em geral, é um país chave para pensar a integraçãoeconômica dos países da América Latina. Assim, o Brasil teve um papel essencial na recente entrada da Venezuela nesse mercado comum. No entanto, ainda que o Brasil preconize a autonomia, não defende um modelo de desenvolvimento alternativo ao capitalismo, exatamente o contrário. No campo econômico atua seguindo uma orientação capitalista desenvolvimentista, e inclusive em alguns aspectos neoliberal. Em suas relações com os países da região, se detecta um claro desejo de hegemonia de proximidade. Alguns autores falam de “semi-imperialismo” ou de “imperialismo periférico”. Várias empresas brasileiras são multinacionais que praticamuma política econômica agressiva com seus vizinhos: Petrobras com o petróleo ou Odebrecht noâmbito da construção, que provocaram conflitos importantes com países próximoscomo a Bolivia ou o Equador... A mesma relação desigual se da com o Paraguai concernente aos recursos hidroelétricos comuns em Itaipu, onde o Paraguai foi privado de sua soberania no setor. A burguesia financeira e industrial brasileira (em especial a de São Paulo) defende assim suas prerrogativas no mercado mundial, o que, por outro lado, não impede os acordos estratégicos entre Brasil e Estados Unidos, com respeito, por exemplo, aos agro-combustíveis.
Do ponto de vista diplomático, a presidência atual tentou se esconder apoiando os governos de esquerda ou centro-esquerda da região. Lula sempre apoiou Chávez (como, por exemplo, durante o golpe de Estado de abril de 2002),tambémmantém boas relações com o governo cubano e foimuito claro sobre asituação em Honduras diante do golpe contra o presidente Zelaya. Alem disso, Lula ameaçou não participar da CúpulaUE-América Latina de Madrid em maio se Lobo – o presidente hondurenho golpista- estivesse presente (este último teve que desistir). Sua diplomacia favorece as relaçõesSul-Sul no plano diplomático,mas tambémeconômico. A China veio a ser um dos principais sócioseconômicos: em 8 anos, o comércio desse país com o Brasil aumentou 750%... Seguindo um princípio de multipolaridade e buscando ter mais espaço no cenário mundial, o governo brasileiro rejeita as ingerências das grandes potencias do Norte em assuntos dos países do Sul, o que explica seu apoio ao Irã frente aos Estados Unidos ou a denúncia das novas bases militares estadunidensesnaColômbia.
O Brasil investe no desenvolvimento da Unsasur (União de naçõessul-americanas), que responde a sua preocupaçãode independência política econsolidaçãoeconômica, com um projeto que prevê instaurar uma moeda e um parlamento comuns. Se se materializa, a dita união concentrará uma população de 360 milhõesde habitantes e será, emextensão(17 milhões de km2), a maior uniãoeconômica, monetáriae política do mundo. Mas numerososobstáculosainda precisam ser superados, são eles devidos as múltiplascompetênciaseconômicasintra-regionais e as tensões existentes entre os diferentes setores do capital, obstáculos que paradoxalmente foram criados pelas elites brasileiras ao defender sistematicamente seus interesses em detrimento da perspectiva de cooperaçãoreal.
As relações do Brasil com a UniãoEuropéia se inscrevem nessa preocupação de maior inserção competitiva no mercado mundial. O Brasil firmou com a França um importante contrato de armamento. O Mercosul está emnegociação com a UE, ainda que se choque com o protecionismo europeu, sobretudo no terreno da agricultura.
Qual balanço se pode fazer ao final de oito anos de governo Lula?
Segundo vários analistas, as enormes decepçõesque seguiram a chegada do PT e do Lula ao governo em 2002 eram previsíveis. É verdade que uma parte de esquerda e dos movimentos sociais não havia analisado até que ponto a natureza e a orientaçãopolítica do PT tinham mudado entre o começo dos anos oitenta e a vitória eleitoral de 2002. O PT foi fundado em fevereiro de 1980 a partir de uma oposição coletiva e popular radical à ditadura militar. Desde o final de 1978, sindicalistas, intelectuais, dirigentes de movimentos populares falavam da necessidade de criar no Brasil um novo partido independente, de classe e abertamente socialista. O PT foi um dos maiores partidos operários do mundo e continua sendo o partido de esquerda mais importante da América Latina.
No inicio, reuniu vários setores sociais mobilizados: sindicalistas, é certo que procedentes principalmente da CUT [3] , que representam sua coluna vertebral, militantes de movimentos associativos, de feministas, de bairros, mas também muitas comunidades cristãs de base, inspiradas na Teologia da Libertação. Em vinte anos e depois de três derrotas eleitorais sucessivas nas eleições presidenciais, o partido mudou muito. De um programa inicial anticapitalista, que prometia uma alternativa radical, o discurso se tornoucada vez mais moderado, de centro-esquerda. Em 2002, o slogan da campanha de Lula era “Paz e amor”... Temos aqui um novo exemplo do que o britânico Perry Anderson analisou na Europa: « a esquerda ganhou seus galões de partido de governo depois de ter perdido a batalha das ideias ». O PT sofreu umatransformação de suacomposição social, deixando um lugar cada vez maior para as classes médias e intelectuais num processo de institucionalização-burocratização do seu aparato e de sua direção, progressivamente ocupada pelos parlamentarese pelos diferentes eleitos em detrimento dos sindicalistas de ontem. Apesar de tudo, a vitória de Lula em 2002 despertou muitas esperanças no país e inclusive em toda América Latina. Mas chegou o momento de fazer umbalanço. O sociólogo Emir Sader fala do “enigma Lula”, que escaparia dos julgamentos já feitos. Outros sociólogos como Michael Löwy ou Atilio Boron sãomais críticos e este último aponta que esses dois mandatos foram marcados pelopossibilismo conservador”. Seguramente, é possívelconstatar que Lula renegouaos ideais do PT de 1980 em prol da estabilidademacroeconômicae dos interesses do capital que ficaram muitoacima das reformas sociais prometidas.
Ha sinais evidentes de continuísmoda política de F. H. Cardoso (o governante anterior), com o argumento de que a salvação do Brasil continua sendo o mercado mundial, a exploração massiva de matérias primas e a abertura do país (e de sua mão de obra) para as transnacionales.Neste sentido, o “êxito” econômico é real: a economia do Brasil éumadas maisdinâmicasdo mundo, commais de 5 % de crescimentoanual, e vista de Brasíliaa crise sófoi uma “marolinha”, empalavras dopróprio Lula. Sem tocar na estrutura social, ecom o aplauso dos grandes empresáriosedo FMI, o governo doBrasil praticataxas de jurosmuito elevadas, para grande beneficio dos capitais especulativos internacionais. Este “êxito” tem como contraponto a manutenção, inclusive o incremento, das desigualdades sociaise de renda, o que constituiumdos principais problemas democráticos reaisdo país. O Brasil éumaespécie de “Suiça-Índia”, que reúne no mesmo território rendas extremas. Mesmo assim, Lula nãoatuou sobre essas desigualdades estruturais: durante seu mandato, a rendados mais pobres aumentaram de maneira notável, porémados ricos ainda mais. Segundo o economista Pierre Salama, o número de brasileiroscommais de mil milhõesde dólares em ativos financeiros cresceu mais de 19% somente entre 2006 e 2007. Outro problema aindamaior é que o Brasil embarcou emuma política de agronegócios, que incluio cultivo intensivo de OGM e de agrocombustíveis, para grande alegria de empresas como a Monsanto, acolhidas com os braços abertos, mascomconseqüênciassociais eambientais desastrosas. Isto foi o que levou a Ministra do meio ambiente, Marina Silva, a se demitir ao fim de alguns meses.
Nestas condições, a grande reforma agrária tão esperada, tão anunciada durante a campanha, não foi cumprida. No Brasil, não poderá haver desenvolvimento alternativo, democrático esustentável semuma reforma agrária radical. Se trata de um problema incontornável. Toda esta política foium jato de água fria para osmovimentos sociaise em particular para o MST.- [4] , o maior movimento social do continente (que reúne vários milhões de militantes) é umdos mais interessantes por suas formas de auto-organizaçãoe daimpressionanteeducação popular.
Sem dúvida, essas políticas públicas conservadoras foram favorecidas pelos obstáculos institucionais doEstado Federal que é o Brasil. O PT é minoritário no Parlamento eno Senado e só é majoritário em três estados. Desde o princípio, tentou aliar-se coma direita liberal e latifundiária para governar, o que acentuou sua imobilidade, em particular do ponto de vista da política agrária. Ademais, a exigência de estabilidade econômica e o respeito à grande propriedade privada eram argumentos aos quais Lula era muito sensível no momento de sua eleição, como mostra a carta aos brasileiros que publicou durante a campanha. Seus principais assessores econômicos haviamsaídodas escolas do pensamento neoliberal estadunidense ea contra-reforma do sistema de pensões dos funcionários foi umadas primeiras medidas que tomou seu governo. Esta revisãodas conquistas sociaisdos funcionários conduziu a apariçãodas primeiras diferenças no seio do PT e levou àcriação do PSOL [5] em torno das figuras daesquerda como Heloisa Helena ou Plinio Sampaio. Mesmo assim, seria errado esquecer que o Lula continua sendo extraordinariamente popular, sobretudo entre as classes mais pobres (particularmente do Nordeste). Levou a cabo vários programas sociais assistencialistas (especialmente durante o segundo mandato), muito rentáveis eleitoralmente, como o Bolsa Família . [6]., programa de ajuda financeira condicionado àescolarizaçãoinfantil, que conseguiu tirar da miséria extremamais de 20 milhões de brasileiros. A cobertura social eos salários mínimos também foram ampliados eacriminalizaçãodos movimentos sociais por parte do Estado baixou consideravelmente, abrindo espaços de diálogo e inclusive de cooptação de muitos dirigentes sociaise sindicais. Não se deve ignorar que os grandes grupos mediáticos estão nas mãos de uma oligarquia arcaica, ainda ferozmente hostil a Lula, que continua a considerá-lo um sindicalista procedente daesquerda, e por isso tão potencialmente perigoso em razão da composição de sua base social.
Em resumo, poderia dizer que a política de Lula conjuga uma política macroeconômica neoliberal euma política social assistencialista centrada na luta contra a extrema pobreza, dando finalmente estabilidade ao sistema, razão pela qual o ex-sindicalista e considerado por Wall Street e porgrande parte das elites como umdos melhores presidentes da história democrática do país. Poderia qualificar sua gestão de “social liberalismo àbrasileira” ou talvez como fazem alguns autores de “liberal-desenvolvimentismo”, posto que o Estado brasileiro continua querendo regular uma parte da atividade econômica do país.
Como vêo futuro do país?
Lula não pode voltar a se apresentar nas próximas eleições de outubro. Para o PT, o desafio efazer “lulismo sem Lula”, captar sua popularidade, evidentemente com poucas mudanças na orientação política e econômica. A candidata atual é Dilma Roussef. Economista de formação, chefe do gabinete ministerial de Lula, uma espécie de Primeira Ministra, militou na juventude nos movimentos de luta armada contra a ditadura. Pouco carismática, subiu muito nas pesquisas graças ao apoio decidido de Lula e éprovável que ganhe as eleições no primeiro turno frente ao principal candidato da oposição, José Serra (social-democracia liberal). A esquerda do PT, o PSOL apresenta Plinio de Sampaio, lutador social incansável egrande defensor da reforma agrária. Masinfelizmente, não haverácandidato comumdaesquerda radical, em particular como PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado – trotskista) eo PCB (comunista). Marina Silva será a candidata dos verdes, encarnando a ecologia liberal.
Apesar da crítica de uma parte daesquerda, é provável que o PT consiga o apoio de importantes setores populares edaqueles que não querem a volta de uma direita repressiva e do centro neoliberal encarnado pela candidatura de Serra. A médio prazo, creio que é interessante ver o que sucede no Movimento Sem Terra, dos sem tetoedas organizações sindicais. Este verão se tentou criar uma nova central sindical classista, na perspectiva de um sindicalismo mais independente que a CUT frente o poder e que congregueoperários combativos junto a estudantes, feministas e coletivos afro-brasileiros e indígenas. Este primeiro passo não deu certo. Mas acredito que este tipo de recomposição “desde baixo” pode fazer surgir a esperança de uma renovaçãodas alternativas anticapitalistas no Brasil, terra do Fórum Social Mundial eda consigna “outromundo é possível”.
- Franck Gaudichaud , EvelyneBechtold-Rognon

(29 de setembro de 2010) 

https://www.alainet.org/es/node/144546
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