Uma tragédia que desnudou a justiça

02/08/2009
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Manhã de sábado, 1º de agosto, na capital do Paraguai. A esquina das avenidas Artigas e Santíssima Trinidad, no tradicional bairro de Trinidad, está fechada para o trânsito. Há um palco, centenas de cadeiras no meio da pista. Aos poucos, os vizinhos vão chegando. Crianças de uma escola da comunidade descem a rua em marcha, integrantes de uma organização de meninos de rua também. Caminhões de bombeiro se posicionam ao redor das pessoas. Estão presentes integrantes de partidos políticos, militantes de direitos humanos, dirigentes camponeses. Artistas amadores se revezam no palco, montado em frente ao que sobrou do supermercado Ycuá Bolaños.
 
Ycuá, em guarani, significa fonte de água. Porém, no dia 1º de agosto de 2004, numa manhã de domingo, o supermercado Ycuá Bolaños foi consumido pelo fogo, após uma explosão que teria começado na cozinha do restaurante, enquanto centenas de pessoas faziam suas compras e trabalhavam no local. Num fato inacreditável, se não tivesse sido flagrado por diversas testemunhas, os donos do supermercado mandaram que os seguranças trancassem as portas de saída, para que as pessoas não saíssem sem pagar.
 
Morreram cerca de 400 pessoas, sendo que outras ainda seguem morrendo, por seqüelas ou até mesmo por suicídio – recentemente, um adolescente órfão se matou. O presidente paraguaio, Fernando Lugo, decretou o 1º de agosto como “dia da solidariedade e da memória” e qualificou o acontecimento como “a pior tragédia ocorrida em tempos de paz” no Paraguai.
 
Cinco anos depois, ainda não houve justiça. O caso atualmente se encontra na Suprema Corte, que deve confirmar ou não a última condenação a Juan Pio Paiva, dono do supermercado, seu filho Victor Daniel Paiva e o chefe de segurança Daniel Areco, além de acionistas da rede de supermercados. Na última semana a Corte rechaçou os pedidos de extinção do caso, um dos temores dos familiares das vítimas. Ao longo de todo este tempo, o caso já teve uma série de episódios turvos, juízes se declarando incompetentes e uma longa espera por justiça. O prefeito de Assunção na época, referente do Partido Colorado cotado à presidência, sequer foi investigado.
 
“O caso Ycuá Bolamos desnudou a corrupção na Justiça paraguaia. Tudo o que nunca aconteceu de sujeira, aconteceu no caso Ycuá”, resume Carmen Rivarola, familiar de uma das vítimas.
 
Desde a tragédia, os familiares e sobreviventes do incêndio se reúnem todas as segundas-feiras no antigo estacionamento do supermercado, convertido em memorial. A cada dia primeiro, protestam em frente ao Palácio de Justiça. “Quatrocentos mortos, isso não se esquece, não fica impune”, é um dos lemas chamados pelos manifestantes.
 
Pela importância do acontecimento e por expor todas as contradições da Justiça paraguaia, o caso Ycuá Bolaños mobiliza a comunidade de Assunção e diferentes organizações sociais.
 
Neste sábado, centenas de pessoas participaram do ato pelos cinco anos da tragédia. Cada um ajudando como pôde: o músico Efrén Echeverría, 77 anos e andando em cadeira de rodas, fez questão de emprestar sua habilidade no violão em solidariedade às vítimas. Depois de apresentar-se, chorava ao ser entrevistado por uma rádio que manteve um estúdio no local.
 
Na última semana, o presidente Lugo fez um apelo para que a Suprema Corte chegasse à sentença com rapidez. Os juízes, que ao longo dos últimos cinco anos se negaram a julgar o caso Ycuá Bolaños, lançaram uma nota criticando a “ingerência” do Executivo no Judiciário.
 
Enquanto isso, um grupo de familiares tem passado a noite em frente ao Palácio de Justiça, esperando pela decisão final dos ministros. Caso a Suprema Corte absolva os denunciados, as vítimas já se preparam para levar o caso para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos. Porque, no Paraguai, já há pouca esperança, como diz um outro lema entoado: “Poder judicial, corrupto e criminal”.
 
- Daniel Cassol é Correspondente de Brasil de Fato em Assunção (Paraguai)
https://www.alainet.org/es/node/135493
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